sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Notas sobre o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017


Como de costume, gosto de fazer alguns comentários por ocasião do lançamento do Anuário Nacional de Segurança Pública, matizando a cobertura da imprensa sobre os dados e procurando tirar algumas lições.

Antes de tudo, gostaria parabenizar o FBSP e equipe pela nova edição do Anuário. O Ministério da Justiça divulga em sua página dados criminais limitados, e de 2014. Por incrível que pareça para um país com 61 mil homicídios, para ter informações mais detalhadas e recentes sobre os números do crime, só consultando o anuário de uma ONG, que se utiliza da LAI para coletar os dados junto aos órgãos públicos, que deveriam ser transparentes com relação aos dados. E para dados de 2017, só através desta ING  (indivíduo não governamental, como definiu alguém jocosamente este trabalho), que coleta mensalmente os dados junto aos sites de algumas Secretarias de Segurança. Difícil fazer e avaliar política pública assim.

Os dados do anuário são anuais e relativos a 2016. Assim, não conseguem sempre captar as tendências mais recentes, que começam a mudar a partir do segundo semestre de 2016. O resultado é que quando o anuário é divulgado no final do ano, estamos olhando a situação pelo retrovisor. O anuário mostra os roubos subindo em 2016 com relação a 2015. Se olharmos para os dados mais atuais, que já refletem em parte a mudança no contexto econômico, a análise muda parcialmente: roubos caem -9,7% em agosto em São Paulo com relação ao mesmo período do ano anterior, desaceleram fortemente no Rio de Janeiro, caem -12,8% em Minas, caem -3,6% no Rio Grande do Sul,  diminuem -12,2% no Mato Grosso do Sul e -38,2% no Mato Grosso. Diminuem  -26,5% em Goiás e -19% no Paraná. Roubo de veículos caem -21% no DF e -22% na Bahia (dados da Capital). Em Rondônia, a queda é -10% com relação a setembro de 2017. A tendência de queda nos roubos prevaleceu durante quase todo ano de 2017 no Ceará, apesar do aumento de 8% em setembro. Em geral, como previsto pela relação entre ciclos econômicos e crimes patrimoniais, boa parte dos Estados mostra queda nos roubos e roubos de veículos com relação ao ano anterior.

Feitas estas observações, vemos no anuário que as mortes violentas intencionais cresceram 3,8% no país. Mas não foi generalizado: tivemos queda em 10 Estados. Quem puxa a alta são RJ, PE, PA, RS, BA e RN. Rio de Janeiro puxa os números para cima não só nas mortes, mas também nos outros indicadores criminais. De modo geral, a crise econômica iniciada em 2014 e a crise fiscal e moral carioca explicam boa parte dos aumentos observados nos dados de 2016. O impacto carioca nas tendências nacionais pode ser notado em diversos crimes: furto e roubo de veículos crescem 7,3% em 2016, puxados por uma alta de 21,8% no Rio (Em SP, houve queda de 0,2%). O Roubo de carga é altamente concentrado no Rio e São Paulo e dos 4239 casos a mais em 2016, 2645 devem-se ao Rio. No roubo em geral observou-se um aumento nacional de 13,9%, inflacionado novamente pelo caso carioca, onde o crescimento foi de 40% (em SP, aumento de 3,1%). Em resumo, 11 trimestres consecutivos de queda do PIB, cortes nos orçamentos de segurança e a piora no desempenho do RJ explicam em boa parte as tendências de 2016.

Os casos do aumento das mortes no RJ e em PE chamam a atenção, pois vinham ambos de uma tendência de queda consistente nos anos anteriores. Homicídios no Rio caíram durante quase uma década, a partir de 2005. São bons exemplos de como a gestão pode influenciar as taxas de criminalidade para cima ou para baixo, quando políticas de segurança são adotadas e depois abandonadas. Desagregando os dados, vemos que as mortes em confronto com a polícia são responsáveis por boa parte do crescimento das mortes violentas no RJ. As mortes em confronto estavam estabilizadas na casa dos 2 mil casos nos anos anteriores mas disparam depois da crise de 2014. Em resumo, a crise aumentou a quantidade de roubos, que impactou nos confrontos com a polícia, que por sua vez impactou nas estatísticas gerais de mortes violentas. É importante detalhar o contexto das mortes, pois o tratamento do problema das mortes em decorrência da atividade policial é diferente do tratamento do problema dos homicídios em geral. São Paulo reduziu drasticamente estas últimas e como consequência, parcela expressiva das mortes no Estado ocorre hoje no contexto dos confrontos com a polícia.

Como também previsto pela teoria, que sugere uma relação inversa entre estatísticas de tráfico e de roubo de veículos, o anuário mostra uma queda nas estatísticas de tráfico de drogas de -7,2% em 2016, enquanto os roubos de veículos cresceram 7,3%. Dos 25 Estados analisados, encontramos tendências inversas entre tráfico e roubo de veículos em 18. Parecem corroborar espacialmente o que vimos ocorrer temporalmente quando tomamos os dados de Rio e São Paulo: quando roubo de veículo cresce as estatísticas de tráfico caem e vice-versa. A diminuição de renda observada nas crises, aparentemente, reduz o consumo de drogas como o de qualquer mercadoria. Com menos consumo, caem as apreensões e ocorrências de tráfico. E aumenta de demanda por peças de reposição de veículos no mercado paralelo, impactando no roubo de veículos.

O anuário mostra uma redução geral no orçamento destinado a segurança pública da ordem de -2,6%, esperado num contexto de diminuição da arrecadação. Em São Paulo, a queda foi de -10,2%. Apesar disso, o desempenho médio de São Paulo foi superior à maioria dos Estados. Em longo prazo os cortes nos orçamentos implicam em diminuição do desempenho, mas a relação entre ambos não é tão direta. São Paulo gasta 5,7% do orçamento com segurança enquanto o Rio gasta 16%. O gasto per capita é de 245 reais em São Paulo e de 550 no Rio. A análise não é tão simples, claro. Mas sugere que gestão é elemento importante e que precisamos aprofundar os estudos da relação entre gastos com segurança e tendências criminais. Como se gasta talvez seja uma variável mais relevante do que quanto.

E por falar em qualidade dos gastos, o anuário mostra que o custo médio anual das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) executadas pelas Forças Armadas é de 255 milhões de reais. O custo da Força Nacional de Segurança Pública está em torno de 212 milhões, de modo que, somadas, gasta-se anualmente 467 milhões com estas operações. É muito dinheiro invertido em políticas pouco avaliadas com relação ao custo-benefício. Para efeitos de comparação, o Fundo Penitenciário Nacional gasta em média 428 milhões e o Fundo Nacional de Segurança Pública 513 milhões. Talvez fosse preferível transferir recursos das operações GLO e da Força Nacional para os fundos nacionais. O fato é que ninguém avalia estes gastos, que são insuficientes de modo geral (o orçamento anual de SP equivale a cerca de 10 bi) e eventualmente, mal alocados.

Em resumo, não temos informações suficientemente amplas e atualizadas para propor e avaliar políticas de segurança no Brasil. Quando existem, as avaliações não são feitas, por deficiências de capacidade institucional do governo federal. Algo semelhante ocorre nos Estados e não apenas na esfera da segurança. Isto quando vemos, através dos dados do anuário, que gestão é um elemento crucial para obtenção de bons resultados. Para que tenhamos boas novas nas edições futuras, algo urgente precisa ser feito para sanar estas deficiências. A agenda de reformas é grande em algum momento teremos que lidar com a espinhosa questão da reforma das polícias. Mas aumentar o orçamento da segurança em nível federal, melhorar as bases de informações criminais e recuperar a capacidade institucional do governo nacional nesta área não é tão complicado assim. Falta disposição  para desarmar esta bomba atômica.





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