terça-feira, 26 de julho de 2016

"Ho, ho, ho e uma garrafa de rum" - antiga canção pirata

“Bandeira preta e branca
Caveiras e carrancas
E a voz do capitão
Ho, ho, ho
E uma garrafa de rum
Ho, ho, ho
É deus e nós por nenhum”

Bobbio narra um diálogo curioso entre Alexandre, O Grande e um pirata, em seu livro A Teoria das Formas de Governo.  A certa altura Alexandre pergunta ao pirata por que ele insiste em atacar seu império com seu bando. Pelos mesmos motivos que você – responde ele: só que como tenho apenas um só navio me chamam de pirata e como você tem uma frota, te chamam de Almirante.

Trata-se de uma resposta perspicaz: ele insinua que o comportamento deles é qualitativamente igual e que a única diferença entre eles é quantitativa. Ambos saqueavam, abusavam e barbarizavam seus inimigos. O Império não se pautava pela Lei, mas se impunha pela força bruta.

Fazendo um paralelo, esta é mais ou menos a situação quando vemos alguns confrontos recentes entre policiais e suspeitos nas ruas das grandes metrópoles brasileiras. Se o comportamento policial não é pautado pela Lei e desobedece aos procedimentos de engajamento num confronto, então temos apenas uma diferença quantitativa entre policiais e criminosos: os primeiros têm apenas mais viaturas, armas e efetivos, mas atuam frequentemente ao arrepio das regras do direito, que delimitam os confrontos legítimos dos ilegítimos, os legais dos ilegais.

Sim, em determinadas situações, o agente estatal pode fazer uso da força letal, como último recurso, baseado nos princípios da necessidade e proporcionalidade. Necessidade quando se trata de salvaguardar a própria vida ou a de um terceiro. E proporcional: não se atira num suspeito porque ele fugiu de um bloqueio ou ameaçou o policial com uma caneta.

É muito difícil na prática tomar estas decisões, no calor da hora. Eu mesmo participei em diversas ocasiões do treinamento policial na pista de tiro, adotando o método simulado “Giraldi”, e mais de uma vez atirei sem querer numa testemunha ou suspeito desarmado, que colocava a mão no bolso para mostrar um documento e não para pegar uma arma... A decisão precisa ser rápida e num contexto de stress elevado. Não é fácil como imaginam as cartilhas de direito humanitário!

Mas ai reside todo o drama da atividade policial: ao contrário dos criminosos, o policial precisa seguir a Lei, seguir os procedimentos que estipulam a progressividade no uso da força (sinalização verbal, armamento não letal, tiro de advertência, etc.). Saber se proteger durante a abordagem, não forçar o confronto.  Os procedimentos corretos de abordagem estão descritos nos POPs (procedimento operacional padrão) e o treinamento adequado deveria servir para evitar a perda dos bens mais preciosos, as vidas de policiais e suspeitos nestes eventos. É arriscado para o policial. Mas, se ele não segue as regras estabelecidas e determinadas pela Lei, a diferença entre polícia e bandido acaba por ser a mesma diferença do pirata para Alexandre Magno, apenas quantitativa. Esse é o sacrifício: do outro lado vale tudo, para o agente da Lei valem as regras do Estado de Direito.

No Brasil, as mortes em confronto (ou mortes em decorrência de intervenção policial) representam aproximadamente 5% do total de mortes. Em Estados como São Paulo e Rio de Janeiro esta porcentagem é de respectivamente 10% e 18%, usando valores médios de 2013 e 2014. São porcentagens elevadíssimas para os padrões internacionais. Outros indicadores sugerem também que existe um excesso nas mortes em confronto: morrem muito mais suspeitos do que policiais nestes confrontos e a quantidade de mortos supera a quantidade de feridos, padrão inverso ao esperado. Estes padrões são conhecidos e em conjunto evidenciam que o uso da força letal tem sido utilizado de forma equivocada pelas polícias brasileiras, de maneira sistemática.

Dentro do Brasil, existe muita variabilidade na incidência de confrontos: em alguns Estados é baixa e em outros elevada. O que explica esta variabilidade? Esta é questão que com dois colegas (Vania Ceccato e Silas Melo) estamos procurando responder num artigo sobre o tema, usando a taxa de confrontos como variável dependente e diversos preditores como variáveis explicativas: taxa de homicídios no Estado, IDH, existência de Ouvidoria, capacitação em direitos humanos, confiança na polícia, gasto per capita em segurança,  quantidade de armas em circulação, taxa de encarceramento de homicidas, proximidade espacial, taxa de mortalidade policial e diversas outras. A letalidade policial também varia consideravelmente no tempo, de acordo com o perfil da gestão (Comandante Geral, Secretário de Segurança) e em seguida a incidentes dramáticos (Carandirú, Favela Naval, etc.).

Adiantando aqui alguns resultados, a capacitação em direitos humanos parece não surtir muito efeito, mas a existência de uma Ouvidoria de Polícia, maiores gastos em segurança per capita e punição de homicidas com prisão apresentaram efeitos significativos. Isto significa que é possível atenuar o problema através de políticas públicas. Quanto mais sofisticado, qualificado e eficiente o sistema de justiça criminal, menor a incidência de mortes em confronto.


É difícil controlar a criminalidade levada a cabo pelos criminosos, mas ao menos as mortes cometidas em situação de confronto, com a participação de policiais, podemos controlar. A confiança da população na polícia é um dos elementos chave para a melhoria da segurança e a violência e despreparo nas abordagens policiais em nada contribuem para melhorar esta confiança mútua. Os criminosos devem temer a Justiça e a polícia, não a população. Aqui no Brasil, ao contrário, a criminalidade parece não ter medo da polícia. O povo é que tem. Isto acontece quando o pirata e o imperador se comportam segundo os mesmos códigos morais.

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