sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

‘Metas e números cabalísticos’

Tulio Kahn: ‘Metas e números cabalísticos’

27-01-2016
Túlio Kahncientista político e colaborador do Espaço Democrático
Já há alguns anos, ao comentar as estatísticas de homicídio, diversos jornais brasileiros observam que a taxa está acima ou abaixo do “limite recomendado pela OMS”, que equivaleria a 10 homicídios por 100 mil habitantes. Acima deste patamar, a violência assumiria características epidemiológicas, de modo que abaixo de 10 teríamos algo como um nível aceitável pelos especialistas.
De fato, para um pais como o Brasil que em média ostenta taxas de homicídio 3 vezes superiores, o pretenso limite OMS é um ideal a ser perseguido e que apenas alguns Estados – como São Paulo ou Santa Catarina – alcançam. No Nordeste, as taxas atuais chegam a 50 por 100 mil, bastante longe, portanto da suposta recomendação.
Ocorre o seguinte: como eu mesmo e diversos jornalistas e pesquisadores já notaram, este limite ou recomendação não existe em nenhuma documentação oficial da OMS e seus representantes afirmam que jamais ouviram falar de qualquer recomendação ou classificação neste sentido.
Trata-se provavelmente de um daqueles números místicos, tão comuns na cobertura jornalística sobre segurança, e que provavelmente se deve a um conjunto de fatores coincidentes: a suposta recomendação da OMS começa a circular por volta de 2007/2008, quando a taxa de homicídios em São Paulo girava ao redor de 12:100. Naquele ano, a SSP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo) sugeriu como meta o número de 10:100 mil para os próximos anos, algo que a tendência histórica indicava que atingiríamos em breve, mantidas as condições anteriores.
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A taxa de 10:100 coincidentemente seria também bastante próxima da média mundial, segundo os dados coletados pela pesquisa Crime Trends da ONU, realizada pela UNODC, mas nunca a entidade recomendou a média como “meta”.
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Dentro da ONU quem trabalha com metas, recomendações e linguajar epidemiológico é a Organização Mundial de Saúde. E, com efeito, aparentemente a OMS faz recomendações bastante parecidas, como por exemplo um limite tolerável de 10 mortes por mil nascidos, ao analisar o tema da mortalidade infantil. (Mesmo aqui, a referência foi encontrada em matérias jornalísticas e seria necessário consultar as fontes originais para corroborar a existência desta recomendação / classificação da OMS, pois é possível que estejamos diante de mais um número cabalístico!).
Assim, é bastante provável que alguém tenha misturado uma série de informações desconexas e criado a tal “recomendação da ONU” e o argumento de autoridade – pois quem ousaria discutir com a ONU – passou a ser reproduzido pelos meios de comunicação. Na época consultei Alex Butchard, da OMS, com quem participei de reuniões conjuntas, mas ele assegurou que a tal regra jamais existiu.
O critério não foi fabricado pela SSP, até porque as taxas de homicídio em São Paulo ainda estavam na ocasião acima da suposta recomendação. Mas para o governo estadual, foi uma confusão bastante útil, pois dava uma aura de legitimidade externa à meta escolhida, de modo que nunca se questionaram as matérias que adotavam esta classificação: em breve atingiríamos este limite simbólico e para as polícias era importante ter um número que servisse de “meta”, na falta de recompensas financeiras…
O número cabalístico foi útil, pois as polícias passaram a ser cobradas – interna e externamente – em função deste critério e acredito que tenha funcionado como um importante incentivo para que diversas localidades baixassem seus índices até este patamar, tanto em São Paulo quanto nos demais Estados. Coincidência ou não, a taxa de homicídios em São Paulo estabilizou-se em torno deste patamar nos últimos 7 ou 8 anos e vinha encontrando dificuldades para romper esta barreira histórica, até recentemente.
Ouvi dizer por aí que segundo a Organização Pan-americana de Saúde, o Ibope e o físico Albert Einstein, o verdadeiro patamar epidemiológico é de 5 homicídios por 100 mil…não sei se é verídico mas o mais importante é ter uma meta, independente da “autoridade” que a estipula!

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