quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Legalização do aborto e a redução da criminalidade, tese polêmica do economista Steven Levitt

Legalização do aborto e a redução da criminalidade, tese polêmica do economista Steven Levitt

Fonte: Revista Época
Nas décadas de 1970 e 1980, os crimes violentos haviam crescido até 80% nos Estados Unidos. As previsões para o futuro eram catastróficas. No começo dos anos 1990, para surpresa de todos, os índices começaram a cair. Em alguns deles, a queda foi de mais de 40%. No primeiro momento, os especialistas ficaram desconcertados. Depois começaram a tentar apontar as razões mais óbvias para o recuo da criminalidade: endurecimento da polícia, tolerância zero com pequenos delitos, leis mais rígidas e melhora na economia. O economista Steven Levitt testou a maioria dessas hipóteses. Os resultados decepcionaram – eles apontavam influências apenas residuais desses fatores nos índices de violência. Quando relacionou os números do crime com a legalização do aborto, em 1973, Levitt levou um susto. Havia uma forte ligação entre os dois fenômenos.
O aborto seria, segundo Levitt, responsável por 25% da queda na criminalidade. De acordo com ele, a legalização da prática teria servido, indiretamente, para evitar o nascimento de crianças pobres, fadadas a viver uma infância de abandono e candidatas a entrar para o mundo do crime. Como era previsível, Levitt foi atacado por sustentar essa tese. Muitos a consideraram absurda, não apenas de tom “politicamente incorreto”, mas de teor quase fascista. Outros o criticaram com base nos argumentos morais contrários ao aborto. Alguns poucos questionaram a metodologia usada. Até agora, porém, a tese de Levitt não foi derrubada. “Levitt é um sujeito capaz de enxergar dados de um jeito como ninguém viu antes”, diz o economista brasileiro José Alexandre Scheinkman, professor da Universidade Princeton. Levitt é hoje um dos economistas mais respeitados no mundo acadêmico. É professor da Universidade de Chicago, que reúne a maior concentração de vencedores do Prêmio Nobel em Economia, onde ocupa a cadeira que já foi de Scheinkman. Em 2003, Levitt ganhou a medalha John Clark, concedida ao mais destacado economista com menos de 40 anos.
No Brasil, a delicada discussão levantada por Levitt sobre o aborto está prestes a começar. Numa dissertação de mestrado aprovada em outubro do ano passado na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ), o economista Gabriel Hartung sugere que a legalização do aborto seria uma alternativa para reduzir os altos índices de criminalidade no Brasil. Inspirado em Levitt, o trabalho de Hartung sugere o aborto como um recurso capaz de diminuir o número de potenciais criminosos na sociedade. “Estudos como esse são importantes para abrir um debate”, diz Scheinkman. “Eles suscitam discussões, geram novos trabalhos. É o acúmulo de experiências que conta.”
Por mais provocadora ou incendiária que possa parecer, a tese de Hartung merece ser discutida. Antes de julgar sua conclusão por convicções, é preciso conhecer em detalhes seu trabalho. Assim como o de Levitt, ele segue uma linha inovadora da economia, menos conhecida que o tradicional mundo da inflação e das taxas de juro. Desde os anos 50, uma vertente de economistas passou a usar para outros fins os amplos recursos aprendidos com o estudo de temas como política monetária ou contas públicas. O pioneiro foi Gary Becker, ganhador do Prêmio Nobel em 1992. Becker usou os instrumentos matemáticos e as teorias econômicas para desvendar questões práticas da vida comum. Fundou uma espécie de “economia da vida cotidiana”. Hoje, o saber dos economistas é aplicado para explicar assuntos como estabilidade de casamentos, mecanismos de preconceito racial e até esportes. Levitt, com o livro Freakonomics, tornou-se uma celebridade no mundo dessa “economia da vida cotidiana”. No Brasil, poucos economistas se dedicam a essa área. É o caso do pesquisador Ricardo Paes de Barros, no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e, mais recentemente, de Hartung. “O uso dos métodos econômicos pode ajudar a discutir causas e efeitos dos problemas”, afirma o economista, ex-presidente do Banco Central e colunista de ÉPOCA Gustavo Franco. “A aplicação da estatística melhorou a economia e pode melhorar as políticas contra o crime.”
Durante dois anos, Hartung leu dezenas de livros e artigos científicos econômicos relacionados à criminalidade. Depois foi em busca de dados estatísticos sobre crimes. Recolheu informações de 643 cidades do Estado de São Paulo, entre 1999 e 2001 – na penúria estatística do Brasil, elas eram as únicas que preenchiam as exigências de seu trabalho. Desenvolveu então uma metodologia para comparar os dados e cruzou os dados de criminalidade paulistas com dados populacionais e socioeconômicos brasileiros do período entre 1980 e 2000. Em sua pesquisa, ele testou todos os fatores normalmente associados à criminalidade: pobreza, desigualdade social e baixo crescimento econômico. No julgamento isento e frio dos números, nenhum deles era responsável pelos índices de criminalidade como um todo. De acordo com os resultados obtidos por Hartung, fatores econômicos podem explicar parcialmente por que bandidos cometem crimes contra o patrimônio, como roubo ou furto. Mas não crimes violentos, como assassinato ou estupro. “Seria impossível combater a criminalidade apenas com o crescimento econômico”, diz Hartung. “Nos testes, o efeito do crescimento é baixo.”
Três fatores, em seus testes, manifestaram uma relação consistente com as taxas de criminalidade:
1) a alta taxa de fecundidade;
2) o número de crianças que viviam com apenas um dos pais;
3) o número de mães adolescentes.
Tais fatores, segundo Hartung, estão relacionados tanto aos crimes contra o patrimônio quanto aos crimes violentos. “O número de pessoas nessas situações em 1980 foi o fator mais influente nos índices de criminalidade 20 anos depois”, afirma Hartung. Na prática, nos lugares onde havia mais filhos indesejados, nascidos de mães solteiras, de mães adolescentes ou abandonados por um dos pais, a criminalidade era maior. “São justamente mulheres nessas situações que costumam optar pelo aborto”, diz Hartung. “Minha tese conclui que a fecundidade desse tipo de mãe afeta a criminalidade. Uma política pública que consiga reduzir a fecundidade delas, como o aborto, reduziria a criminalidade.”
Outras pesquisas parecem confirmar os resultados de Hartung. Nos países onde o aborto é legal, as mulheres que o buscam são, em geral, mães solteiras, adolescentes e de regiões com altas taxas de fecundidade – os mesmos fatores relacionados à criminalidade, segundo Hartung. A fragmentação das famílias, levantada por ele como fator que favorece o crime, também já apareceu em outras pesquisas. Em 2003, depois de ouvir as histórias de 682 presidiários em Brasília, estudiosos concluíram ser possível explicar crimes violentos pela herança familiar dos autores, enquanto os crimes contra o patrimônio estavam relacionados às condições econômicas. Nos Estados Unidos, 14% dos presos são órfãos, enquanto na população em geral esse número é de apenas 3%. Quase metade dos detentos no país, ou 43%, foi criada sem o pai ou sem a mãe – na população, esse índice é de 24%. A ausência do pai, especialmente, parece ser o maior problema, porque, segundo os estudos, ela afetaria mais a formação do menino – e a maioria dos criminosos são homens.
Após a aprovação da lei de interrupção da gravidez, em 1973, a fecundidade nos Estados Unidos caiu 5,4%. Entre as adolescentes, a queda foi de 13%. Entre as mães solteiras, de 7%. Como o aborto não é legal no Brasil, é impossível realizar uma comparação com os dados americanos. Em complemento a seu trabalho, com base nos dados paulistas, Hartung fez uma projeção que considera conservadora do que aconteceria se o aborto fosse legalizado no Brasil. Segundo ele, poderia haver uma queda de 10% na taxa de homicídios e de 8% nos crimes contra o patrimônio. “Esse número poderia ser ainda maior”, diz Hartung. “No Brasil existem mais mães solteiras e adolescentes, que poderiam optar pelo aborto.”
As afirmações de Hartung, um jovem economista, despertam desconfiança entre os especialistas em criminalidade – a maioria deles egressos das ciências sociais. Sociólogos não costumam enxergar a questão apenas pela lente fria dos números, tão cara aos economistas. De acordo com Tulio Kahn, sociólogo que pesquisa o tema há mais de uma década e hoje coordena uma área da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo, pesquisas recentes questionam a capacidade de explicar a criminalidade apenas com a “teoria do aborto”. “Essa teoria, levantada pelo trabalho de Levitt, pode ser interessante para entender o fenômeno entre alguns grupos sociais”, afirma Kahn. “Mas não para explicar mudanças nas tendências da criminalidade ao longo do tempo.” Mesmo com essa ressalva, Kahn considera estudos como o de Hartung importantes para orientar o trabalho do governo na área de segurança. Nos Estados Unidos, afirma Kahn, foram criados grupos de acompanhamento de mães adolescentes solteiras como forma de prevenção ao crime. Os resultados, até agora, mostram uma redução no envolvimento desses grupos com a criminalidade. “Não é preciso legalizar o aborto para reduzir o crime”, diz Kahn. “É possível adotar outras medidas preventivas.”
Outros especialistas condenam teses como a de Hartung por enxergar nelas uma carga de preconceito. “As implicações de um trabalho assim são delicadas”, afirma o sociólogo Ignacio Cano, do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Segundo ele, a associação do aborto à redução da criminalidade poderia sugerir uma espécie de limpeza social a partir da eliminação preventiva de bandidos. “Ela pode soar como uma tentativa de tirar mais um direito dos pobres – ter filhos. Também é preciso tomar cuidado para não suscitar discussões sobre eugenia (teoria de seleção e controle social).” Finalmente, justificar a legalização do aborto sob o argumento de evitar mais crimes esbarra em resistências religiosas. Qualquer vida, mesmo a criminosa, é sagrada do ponto de vista religioso.
Trabalhos como os de Hartung e Levitt chocam não apenas por tocar em questões emocionais ou religiosas, mas também por contrariar o senso comum. Em debates acadêmicos, programas de televisão ou mesas de bar, causas e soluções do crime são apontadas aos montes. Normalmente, fala-se em pobreza, desigualdade, desemprego, educação deficiente ou baixo crescimento econômico. As soluções mais populares são prisão, pena de morte, educação e crescimento econômico. A questão do planejamento familiar, em cujo contexto se insere o debate sobre o aborto, nem costuma ser lembrada.
A tese de Hartung não pode ser vista como um argumento definitivo em prol da legalização do aborto. “Trabalhos empíricos são sempre muito discutidos, mas não são definitivos”, diz o economista Scheinkman. A ciência econômica também não leva em conta julgamentos morais, crenças religiosas nem a viabilidade política. Ela usa modelos matemáticos e testes exaustivos para comprovar ou demolir uma teoria. É certo que os debates em torno do aborto e da criminalidade devem levar em conta pesquisas como a de Hartung. Mas também outras, inclusive as que vierem a contestá-la. Só não é recomendável deixar de examinar todos os argumentos por correção política ou preconceito.

Um comentário:

  1. Só um detalhe...mais uma vez, eu nunca dei esta entrevista nem falei as bobagens nela reproduzidas...
    Tulio Kahn

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