Com os indicadores criminais observamos um processo semelhante. Tanto as ações criminais quanto as econômicas são sociais por natureza e ambas são afetadas pelo grau de interação social entre os membros da comunidade. Quanto maiores as interações sociais, maiores também as trocas nos mercados legais e ilegais e maiores as oportunidades para o cometimento de crimes. A criminalidade, além disso, tem a particularidade de ser afetada também, indiretamente, pelo nível das atividades econômicas.
Crimes definem atos bastante diversos em suas naturezas, modo de atuação e motivações. Assim como as atividades econômicas, alguns foram pouco afetados durante a pandemia, outros seguiram o padrão em “V” enquanto outros ainda se mantem em patamares baixos (“L”), em relação ao contexto pré-epidemia.
É interessante observar estas distintas trajetórias dos indicadores durante este período de mudanças bruscas, pois eles ajudam a entender como as dinâmicas sociais influenciam os diferentes tipos de crime.
Crimes “organizados” tendem a ser menos afetados pelas interações sociais: bancos permaneceram abertos e diversos tipos de cargas continuaram a circular durante o isolamento social, de modo que não houve redução drástica dos alvos disponíveis.
Pelos dados do SINESP, os roubos às instituições financeiras mantiveram-se nos mesmos patamares de 2019, ao redor de 40 casos por mês. Os roubos de carga caem em 2020 com relação a 2019. Mas não se notam nem uma queda brusca entre fevereiro e abril de 2020, típica dos demais crimes, nem uma retomada posterior. Na verdade, parece ter havido aqui uma continuidade da tendência de queda dos anos anteriores, iniciada em 2017. Não é possível dizer que a epidemia foi a responsável pela queda observada nos roubos de carga entre 2020 e 2019.
O mesmo não ocorreu, em contrapartida, com o tráfico de drogas, que é fortemente afetado pela variação na demanda. Medo e redução de renda podem ter afastado temporariamente consumidores eventuais dos pontos de venda. Supondo que as apreensões de droga sejam um indicador do volume de drogas em circulação, dados do ISP do RJ mostram claramente o padrão em “V” com queda súbita das apreensões em março de 2020 e a retomada aos níveis anteriores, a partir de agosto. Em São Paulo, as ocorrências de porte e tráfico caem entre março e abril e rapidamente retomam ao nível anterior.
Estas mudanças temporárias na renda do tráfico - além de outras como redução da vigilância natural, do policiamento e disputas com facções rivais – ajudam a entender em parte a dinâmica dos homicídios dolosos, muitos dos quais tem relação com o universo criminal: como já é sabido, não apenas os homicídios não caíram como tiveram mesmo um ligeiro crescimento durante a epidemia, apesar da redução drástica de pessoas circulando pelas ruas. Esta tendência de crescimento teve início antes da epidemia, já no segundo semestre de 2019.
Pelos dados do SINESP, em fevereiro de 2020, pouco antes do início da epidemia, tivemos nacionalmente 3654 homicídios (mais do que os 2967 observados em fevereiro de 2019). De março a julho de 2020, em todos os meses tivemos mais homicídios do que em 2019 e apenas em agosto eles parecem arrefecer e voltar ao patamar anterior. Neste período tivemos uma continuidade da tendência anterior de aumento e nem mesmo a epidemia, que tirou nos momentos mais intensos metade da população das ruas, foi capaz de derrubar os homicídios. Estudos mais robustos sugerem que a epidemia teve um impacto significativo no aumento dos homicídios, mesmo levando em conta as tendências da série histórica (Justos, Kahn e Conti, em estudo para o BID, não publicado).
Isto nos induz a crer que os homicídios neste período decorreram especialmente da dinâmica criminal e menos de dinâmica interpessoal. Evidência adicional é que se mantiveram em alta, não obstante a queda na apreensão de armas, que é um indicador indireto do número de armas em circulação. Normalmente estes indicadores andam colados, mas neste período observamos trajetórias diferentes. Deve se levar em conta também a probabilidade de aumento dos homicídios de natureza doméstica, como os feminicídios, que podem ter aumentado em decorrência da convivência social forçada e estresse resultante do isolamento prolongado e perda de empregos.
É interessante comparar os homicídios dolosos com a dinâmica das tentativas de homicídio, que se assemelham em geral aos homicídios de “fraca intencionalidade” e que estão mais vinculados às dinâmicas interpessoais: consumo de álcool, uso de instrumentos menos letais, atingindo órgãos menos letais do corpo, maior porcentagem de vítimas do sexo feminino, não planejados, etc. (em contraste, os homicídios com “forte intencionalidade” são caracterizados por uso predominante de arma de fogo, disparos múltiplos, atingindo partes letais do corpo, planejamento antecipado, etc.). As tentativas de homicídio, diferente dos homicídios, caem de 2979 casos em fevereiro para 2604 em abril, voltando a crescer apenas em agosto (2571 casos),quando retoma os níveis pré-pandemia. Seguiram assim o padrão em “V”, diferente dos homicídios.
Sendo corretas estas observações, podemos conjecturar que as tentativas de homicídio foram afetadas diferentemente dos homicídios dolosos com as mudanças de rotina impostas pelo isolamento social. Como no caso do roubo a banco e roubo de carga, parte dos homicídios dolosos seguiu uma dinâmica criminal própria, independente das interações sociais cotidianas. Saliente-se que nos dois indicadores o problema de subnotificação é praticamente inexistente, ao contrário de outros crimes como lesões corporais, estupros e furtos.
Os estupros parecem ter seguido também o padrão em “V”, com quedas e recuperações rápidas aos patamares anteriores. Segundo os dados do SINESP, depois de caírem de 3.761 em fevereiro de 2020 para 2.632 em abril, os estupros voltam ao patamar de 3.997 em agosto, pouco abaixo dos anos anteriores. Este padrão me parece de certo modo pouco compreensível, uma vez que a maioria dos estupros é cometida por pessoas conhecidas das vítimas e em ambientes domésticos. O fato das pessoas estarem convivendo forçadamente próximas, isoladas em suas casas, deveria ter o efeito contrário, de “V” invertido. O esperado seriam mais estupros e não menos. O mesmo, alias, vale para os indicadores de lesão corporal dolosa, que apresentam o mesmo perfil dos crimes sexuais. Segundo o ISP, as lesões corporais dolosas despencam no Rio de 5.408 casos em fevereiro para 2.429 em maio e a partir daí, voltam praticamente ao patamar anterior em setembro (ligeiramente abaixo). O mesmo movimento em São Paulo, onde caem de 10.510 em fevereiro para 7.132 em abril de 2020 e voltam a crescer a partir de setembro. Aqui também o esperado seria um padrão inverso e podemos estar diante de um problema de notificação.
Uma explicação plausível é o aumento da subnotificação durante a epidemia, seja por receio da contaminação, vigilância próxima do autor ou diminuição da identificação externa por profissionais de saúde e educação, que frequentemente identificam e reportam os casos de violência física ou sexual. Em outras palavras, pode ter ocorrido redução do registro de casos e não do fenômeno. Esta hipótese só pode ser confirmada futuramente, através de pesquisas de vitimização que investiguem o fenômeno neste período.
Roubo e furto de veículos, diferentemente, não sofrem praticamente com o problema da notificação. Ambos apresentam um curioso padrão em “L”, isto é, mantiveram-se em patamares baixos após a queda inicial, mesmo com a retomada progressiva das atividades econômicas e sociais. Segundo o SINESP, os furtos de veículos estavam em 18.105 casos em fevereiro, caíram abruptamente para 12.114 em abril e mantem-se em 12898 em agosto. Os roubos de veículos, por sua vez, eram 14.667 em fevereiro de 2020, caíram para 12.130 em abril e caíram ainda mais para 9.193 agora em agosto. Por algum motivo, a retomada da economia e da circulação de veículos, confirmada pelos indicadores de trânsito, não impactou na retomada dos furtos e roubos de veículos. Há diversas hipóteses: nem todas as atividades retornaram, como as escolares. Universidades costumam ser hot spots de roubo de veículos. É possível que o mercado de peças usadas tenha diminuído, com a paralização dos meses anteriores? Migração para novos alvos? Diminuição das fraudes contra as seguradoras?
Como já discutimos anteriormente, crimes são fenômenos diversificados em termos de natureza, motivações e suas tendências são afetadas de forma desigual pelos fatores sociais. A resultante, em cada caso, virá do confronto entre variáveis “de proteção” e variáveis “de risco”.
Do lado da proteção temos a intensificação do trabalho e do estudo em casa, que reduzira permanentemente o fluxo de pessoas nas ruas, diminuindo as oportunidades criminais. Temos também os efeitos positivos dos programas sociais na manutenção da renda dos setores mais pobres da população, diminuindo a oferta de ofensores. Por outro lado, os aumentos do desemprego e da evasão escolar, pelo que se conhece de pesquisas sobre outros períodos, tenderão a aumentar o risco de entrada no mundo do crime de parcelas da população que tiveram as opções no mercado legal diminuídas. A resultante destas forças sobre cada tipo de crime é ainda desconhecida.
O que já se observa e pode especular com algum grau de confiança é que veremos uma “migração” de alvos, locais e modus operandi. As pessoas ficarão mais em casa, aumentando a vigilância natural e irão menos aos bancos. O crescimento dos serviços de entrega domiciliar representam novas oportunidades para golpes e roubos. O aumento do tempo na internet e a digitalização dos serviços implicarão em novos golpes e crimes cibernéticos. A estrutura da polícia precisará se adaptar a estas novas dinâmicas e isso tende a ser feito lentamente. Uma destas mudanças certamente deverá ser a atenção aos crimes cibernéticos. Outra deve ser na forma de identificação dos crimes que ocorrem entre quatro paredes e não chegam ao conhecimento das autoridades. E estas mudanças deverão ser feitas num contexto de contenção dos orçamentos, afetados pela redução da arrecadação e aumento dos gastos sociais e em saúde resultantes da epidemia. Tudo isso sob a égide de um governo federal inoperante, que agrava o quadro geral de violência com uma política irresponsável de liberação de armas.
Com ou sem epidemia, o melhor, por enquanto, é ficar em casa...Aos que comemoraram antecipadamente a "queda da criminalidade" em 2020, lembro que não se trataou de uma queda sustentada, fruto de uma política planejada de segurança e que este "V" tem mais conotação de Vergonha que de Vitória.
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