Reconheço que dá para aprender
mais sobre a natureza dos homicídios através do romance de Thomas de Quincey (“Do
assassinato como uma das belas artes”), do que lendo muitas teses acadêmicas escritas
sobre o tema. Para além da ciência, o conhecimento sobre um fenômeno qualquer pode
vir da literatura, das artes, da experiência religiosa e diversas outras fontes.
A diferença entre conhecimento
científico e as outras formas de conhecimento não está no objeto do estudo, mas
no método: alquimia e química se dedicam ambas aos elementos fundamentais da matéria
e astrologia e astronomia aos corpos celestes. Mas apenas a química e a
astronomia formulam leis, experimentos replicáveis, previsíveis,
generalizáveis, etc.- que são característicos do conhecimento científico. Ainda
que a alquimia e astrologia tenham sido as precursoras destas modernas
disciplinas e muitos acreditem nelas, particularmente prefiro tomar remédios
elaborados com os pressupostos da química e experimentados em laboratórios.
Mas não são todos que pensam
assim e certas crenças e superstições resistem ao tempo, não obstante sua
fragilidade conceitual, evidências pouco robustas e dificuldade de falseamento,
no sentido popperiano do termo. A astrologia é uma delas. Cerca de quatro em
cada dez americanos acreditam que astrologia é “muito” ou “algo” científico,
crença ainda maior entre os mais jovens (68%, segundo o National Science
Foundation, 2017: https://www.popsci.com/what-americans-know-about-science#page-8).
Uma pesquisa de opinião encomendada pela União Europeia em 2001 encontrou que
52,7% dos europeus acreditavam que astrologia é científica. (Eurobarometro, European
Commission, 2001, citado em Burke).
Acho divertido ler o horóscopo
vez por outra, publicados diariamente em quase todos os grandes jornais.
Algumas características de personalidade do meu “signo” de fato parecem existir
em mim e creio que muitos reconheçam esta sensação, uma vez que são traços
humanos genéricos que quase todos compartilhamos. A literatura psicológica
define esta sensação como efeito Barnum. (Burke, 2012, p.22)
Mas não acho tão divertido quando
o/a responsável pelo RH de uma empresa pergunta qual o meu signo ou quando sou
passado por uma parceira em potencial no aplicativo de paquera porque nossos
“signos” são pouco compatíveis. [1]
Há casos ainda mais graves do uso da astrologia, com possíveis consequências práticas:
os adeptos da “astrologia forense”, por exemplo, acreditam que podem dar pistas
concretas sobre a autoria de crimes, podendo levar à condenação de inocentes ou
à soltura de culpados. A crença na astrologia deixa de ser uma brincadeira
inocente quando passa a provocar consequências práticas no bolso, na alma e na
liberdade individual.
Há quem acredite, como mencionado,
que os signos ajudam a entender a predisposição de algumas pessoas para certos
crimes e que o mapa astral pode ser usado como técnica forense para identificar
assassinos e pessoas desaparecidas. Os astrólogos forenses se dedicam a análise
de mapas astrais individuais para o esclarecimento de crimes e mistérios.
Vários livros de “astrologia forense” estão disponíveis na internet para os
interessados. Como sugere um dos autores, “os agentes da Lei sempre lutam para
conectar os pontos para identificar alguém como um assassino além da dúvida
razoável. A astrologia forense pode servir a uma necessária função cívica e
legal – ela ajuda a conectar os pontos entre o crime e o perpetrador. As
estrelas, afinal, não mentem” (Salerno, B.D.) Outros menos radicais sugerem que
a carta natal ou o alinhamento dos astros no momento dos crimes podem gerar
probabilidade e insights sobre os motivos psicológicos por traz dos eventos,
gerando pistas para resolvê-los. A astrologia forense seria um misto de arte e
ciência e “como manchas no carpete, marcas de sangue e impressões digitais, a
astrologia forense pode revelar uma grande quantidade de detalhes sobre um
evento”. Ele permitiria apontar ou eliminar suspeitos, encontrar objetos
perdidos, pessoas desaparecidas e ajudar em casos de sequestro (Salerno,
Campbell, Crystal, Luley, op. Cit).
Não obstante meu ceticismo
(típico de leonino), como pesquisador, é preciso manter a mente aberta e
submeter estas conjecturas ao crivo da ciência, ao invés de rejeitá-las à
priori. Mesmo duvidando da influência dos astros, é possível que os signos
afetem a personalidade daqueles que conhecem e acreditam no horóscopo. Como
mostrou Levi Strauss no estudo clássico sobre magia (e psicologia), a crença na
eficácia da magia faz com que o enfeitiçado tenha reações fisiológicas bastante
reais, levando à morte do enfeitiçado (O feiticeiro e sua magia, Levi-Strauss,
1949).
Recentemente, uma falsa notícia
circulou pelas redes, segundo a qual o FBI tinha feito um estudo correlacionando
signos zodiacais e assassinatos em série. (https://dailyoccupation.com/2017/03/07/fbi-shares-statistics-zodiac-signs-dangerous/).
Na verdade, alguém simplesmente coletou as datas dos aniversários dos
criminosos disponíveis nos arquivos do FBI e computou os signos mais
frequentes. Segundo a “pesquisa”, geminianos seriam os menos perigos, pois
preferem atormentar as pessoas com conversas chatas do que matá-las. Leoninos (terceiro
menos perigoss) cometem assassinatos para chamar a atenção, virginianos são
mais propensos ao roubo e à fraude, piscianos tem tendência ao vício, arianos
sofrem de acessos de raiva, sagitarianos cometem crimes em massa, escorpianos
são assassinos sádicos e finalmente, os mais perigosos: cancerianos, que matam
por ciúmes e sofrem de mudanças de humor.
A ordem de periculosidade dos
signos não coincide, porém, com o levantamento atribuído à polícia de
Chatham-Kent, Ontário, com 1986 pessoas presas em 2011. Talvez por não levar em
conta os “ascendentes” ou, mais provavelmente, os antecedentes, dos criminosos!
E nenhuma das anteriores coincide com o ranking feito pelo astrólogo Trudi
Mentior (https://www.yourtango.com/2017308569/horoscope-zodiac-signs-most-likely-become-criminals-ranked),
provavelmente porque os estudos anteriores não observaram a posição de Urano no
mapa astral. Como argumenta o astrólogo, “seria ótimo se houvesse algum meio
que pudesse dizer, com antecedência, quais pessoas tem a maior probabilidade de
se tornarem criminosos. Estatísticas e dados demográficos são úteis, mas eles
apenas mostram um retrato genérico e não dizem muito sobre se um indivíduo irá
desenvolver comportamentos antissociais sérios conforme crescem”. Há pouca
relação também com a ordenação das última coluna, onde computei os signos mais
frequentes de 401 assassinos seriais disponibilizados na internet.
Tabela 1 - Lista de signos “mais
perigosos”, ordenados do maior para o menor
Suposto FBI (serial killers, N= ?)
|
Chatham-Kent Police (presos em geral, N= 1986)
|
Trudi Mentior
|
Kahn (serial killers, N = 401)
|
Câncer
|
Áries
|
Escorpião
|
Capricórnio
|
Touro
|
Libra
|
Áries
|
Escorpião
|
Sagitário
|
Virgem
|
Aquário
|
Peixes
|
Áries
|
Leão
|
Gêmeos
|
Leão
|
Capricórnio
|
Peixes
|
Peixes
|
Câncer
|
Virgem
|
Escorpião/Capricórnio
|
Capricórnio
|
Virgem
|
Libra
|
Gêmeos
|
Leão
|
Libra
|
Peixes
|
Câncer
|
Sagitário
|
Aquário
|
Escorpião
|
Touro
|
Libra
|
Gêmeos
|
Leão
|
Aquário
|
Touro
|
Sagitário
|
Aquário
|
Sagitário
|
Câncer
|
Aries
|
Gêmeos
|
Virgem
|
Touro
|
Para não dizer que a ordem é
totalmente aleatória, parece que as classificações concordam grosso modo no que
diz respeito à periculosidade de Áries, que piscianos estão no meio da escala e
tourinos no final da lista. Mas a ordenação geral, não surpreendentemente, é
bastante errática. A comparação, todavia, não é totalmente justa, pois os dados
do FBI foram extraídos de serial killers norte americanos, a polícia de Kent,
Ontário, usou uma amostra de presos em geral, Trudi Mentior baseou-se apenas
nas características intrínsecas dos signos e minha amostra foi extraída de serial killers de
todo o mundo. Assim, não é possível com base nesta comparação jocosa entre
bananas e laranjas refutar a conjectura segundo a qual existe uma associação
entre signos e criminalidade. Existem pesquisas acadêmicas sérias sobre o tema que
chegaram à conclusão de que a associação é inexistente e quando é encontrada é
baixa e se deve provavelmente ao acaso. (Burke, 2012; Koich, 2014; Sachs, 1999;
Von Eye, 2003)
A astrologia tem importância
histórica e muitas pessoas encontram satisfação nela diariamente. Assim como as
crenças religiosas, ela não precisa ser cientificamente válida. Mas deve se
manter no terreno das mitologias e não como ferramenta para selecionar
funcionários, parceiros ou entender crimes e criminosos. Tanto pela carência de
evidências científicas sólidas quanto pela limitada praticidade enquanto
política de segurança pública, o melhor a fazer é manter o horóscopo como um
entretenimento inocente, até que se consiga eventualmente mostrar sua utilidade
heurística para prever traços de personalidade e comportamentos criminais...
Pelo que se conhece até o
momento, a culpa pelos crimes não está nas estrelas, de modo que os
criminólogos e analistas forenses devem continuar procurando evidências
terrenas para explicar o comportamento criminal.
Bibliografia
·
BURKE, Keith. BIG FIVE PERSONALITY TRAITS AND
ASTROLOGY: THE RELATIONSHIP BETWEEN THE MOON VARIABLE AND THE NEO PI-R. Tese de
doutorado, 2012.
·
Campbell, Dave
and Brandt Riske, Kris. Forensic Astrology, Nov 24, 2014.
·
Campbell, Garret. True Crime and Astrology, Jul
9, 2012.
·
Crystal, Linda. Jaycee Dugard: How Forensic
Astrology Can Help In Abductions May 18, 2015
·
Crystal, Linda. The Mystery: Amelia Earhart, The
Answers: Forensic Astrology Feb 22, 2015.
·
Henningsen, David Dryden and Henningsen, Mary
Lynn Miller. It’s not you, it’s Capricorn: Testing Astrological Compatibility
as a Predictor of Marital Satisfaction. Northern Illinois University. Human
Communication. A Publication of the Pacific and Asian Communication
Association. Vol. 16, No. 4, pp.171 - 183.
·
Koich Miguel, Fabiano; de Francisco Carvalho,
Lucas. Relações entre traços de personalidade mensurados por testes
psicológicos e signos astrológicos. Psico-USF, vol. 19, núm. 3*,
septiembre-diciembre, 2014, pp. 533-545, Universidade São Francisco, São Paulo,
Brasil.
·
Levi-Strauss, Claude. O feiticeiro e sua magia,
1949.
·
Luley, Caroline J Celebrity Mysteries and Cold
Cases (Forensic Astrology in Action Book 1) Apr 14, 2016.
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Luley, Caroline J. Forensic Astrology For
Everyone Workbook 1: Beginners Edition (Volume 1)Aug 10, 2014.
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Luley, Caroline. Forensic Astrology for
Everyone, Sep 23, 2013.
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McIntosh, Kirsty L. Criminal Astrology: Volume I
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·
Sachs, G. (1999). The astrology file. London:
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Salerno, B.D. Exploring Forensic Astrology: The
Secrets Behind Famous Family Murders, Jun 23, 2016.
·
Salerno, B.D. Forensics by the Stars: Astrology
InvestigatesOct 25, 2012.
·
VON EYE, Alexander (VIRGO), LÖSEL,
FRIEDRICH (LEO) e MAYZER, Roni
(CAPRICORN). Is it all written in the stars? A methodological commentary on
Sachs’ astrology monograph and re-analyses of his data on crime statistics. Psychology
Science, Volume 45, 2003 (1), p. 78-91
[1] Novas
modas entre os gestores de RH incluem não apenas o uso do horóscopo como
ferramenta de avaliação de candidatos, mas também a numerologia, grafologia e
outras ferramentas similares. Sem falar no uso do Feng Chui, Sinestesia e
outras práticas para melhorar o ambiente de trabalho.
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