A rotina nas comunidades cariocas é ditada pelo som dos tiros e pela presença constante, e muitas vezes opressiva, de dois poderes: as facções criminosas (ou milícias) e a polícia do Estado. A questão da segurança pública na cidade é um barril de pólvora, com as operações policiais nas favelas sendo o estopim frequente de violência, mortes e um debate acalorado sobre a eficácia da repressão e o papel do Estado. 
No centro dessa discussão está a ADPF das Favelas (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635), a ação judicial que tenta, a duras penas, impor limites à letalidade policial e ditar novas regras para o confronto em áreas densamente povoadas. O cenário é de um conflito persistente, onde a busca por soluções de curto prazo muitas vezes se choca com a necessidade premente de estratégias estruturais de longo prazo.
A ADPF 635, ajuizada em 2019 pelo PSB e diversas entidades da sociedade civil, nasceu da constatação de um padrão alarmante de violência. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro revelaram um recorde histórico de mortes por intervenção policial em 2019, com 1.810 óbitos. Essa letalidade brutal e sistêmica, concentrada em comunidades periféricas, evidenciava uma política de segurança pública falida, que priorizava o confronto em detrimento da preservação da vida e dos direitos humanos.
A ação no STF buscou, essencialmente, obrigar o Estado a reconhecer a dignidade humana dos moradores de favelas. A decisão liminar do ministro Edson Fachin, que inicialmente suspendeu as operações policiais durante a pandemia da COVID-19, demonstrou um impacto imediato. Estudos e dados de organizações como o Instituto Fogo Cruzado indicaram uma redução significativa na letalidade e no número de operações no período.
No entanto, a flexibilização das regras e a realização de megaoperações que resultaram em tragédias, como o massacre do Jacarezinho em 2021 (27 civis mortos) e a operação mais recente nos Complexos da Penha e do Alemão em outubro de 2025 (121 mortos, oficialmente), demonstram que as determinações judiciais enfrentam resistência e que o modelo de confronto continua a prevalecer em diversos momentos. O padrão de letalidade, embora tenha apresentado reduções anuais em alguns períodos, permanece como uma das marcas da segurança pública do Rio, com as vítimas sendo, em sua maioria, jovens negros e moradores das próprias comunidades.
No calor da batalha diária, as autoridades de segurança pública enfrentam o desafio de cumprir mandados de prisão e desmantelar a estrutura do crime organizado. A pressão por resultados rápidos e a necessidade de capturar criminosos perigosos levam à busca por soluções imediatas.
Garantir o cumprimento de mandados no curto prazo, como a prisão de chefes de facções, exige inteligência, coordenação e planejamento meticuloso. Especialistas sugerem o uso de forças-tarefa integradas entre a Polícia Civil e Militar, com o apoio da Polícia Federal para crimes de maior complexidade. O uso de tecnologia, como reconhecimento facial, monitoramento das comunicações, uso de informantes e denúncias, pode facilitar na captura dos forajidos .
No entanto, essas ações imediatas muitas vezes esbarram na realidade territorial do Rio. A presença de facções fortemente armadas, que dominam o território e impõem seu "governo" paralelo, transforma o cumprimento de um simples mandado em uma operação de guerra. A ADPF 635 tenta mitigar isso, exigindo que as operações sejam planejadas, proporcionais e que a letalidade seja a última opção. A crítica da sociedade civil é que as autoridades frequentemente ignoram essas regras, resultando em banhos de sangue que traumatizam as comunidades e afastam a população da polícia.
A Tentação da "Solução Mágica": O Debate sobre a Equiparação ao Terrorismo
Diante da complexidade do problema, surgem propostas que buscam uma "solução mágica" ou simbólica. Uma delas é a equiparação das facções criminosas a grupos terroristas. A ideia é que, ao aplicar a Lei Antiterrorismo, o Estado teria mais poder e penas mais severas para combater o crime.
No entanto, a maioria dos especialistas e juristas é cética quanto à eficácia dessa medida e alerta para os riscos. A principal distinção é a motivação: o crime organizado busca o lucro, enquanto o terrorismo tem motivações políticas ou ideológicas. Confundir os conceitos poderia desvirtuar a lei antiterrorismo e, pior, abrir brechas para abusos, como o uso indiscriminado da legislação contra movimentos sociais ou moradores de favelas. 
O Brasil já possui uma legislação robusta para combater o crime organizado. O problema não é a falta de leis severas, mas a aplicação ineficaz das leis existentes e a corrupção dentro do próprio sistema de segurança, que vaza informações sobre as operações para as lideranças do crime. A equiparação seria, na visão de muitos, uma medida meramente simbólica que desviaria o foco das reais necessidades do problema.
A proposta do MJ de criação do tipo qualificado de organização criminosa poderia ser um meio-termo entre considerar as ações das facções como crime comum ou terrorismo.
O Longo Prazo: A Necessidade de Políticas Estruturais
A resposta duradoura para o problema do crime organizado e do domínio territorial das facções no Rio de Janeiro não está nas operações de confronto ou em leis simbólicas, mas em estratégias de longo prazo que ataquem as raízes do problema.
Segurança pública deve ser indissociável das políticas sociais. As estratégias de longo prazo incluem:
- Urbanização e Presença Estatal: Levar infraestrutura básica, saúde, educação e serviços públicos de qualidade para as comunidades. A ausência do Estado é o principal fator que permite às facções ocuparem o vácuo de poder.
- Geração de Renda e Oportunidades: Criar programas de qualificação profissional e incentivar o empreendedorismo local, oferecendo alternativas reais ao aliciamento de jovens pelo crime.
- Reestruturação da Polícia: Focar em um modelo de polícia comunitária e de inteligência, que construa confiança e atue na desarticulação financeira das facções, em vez de priorizar o confronto armado.
- Reforma do Sistema Prisional: Impedir que as prisões continuem sendo centros de comando do crime organizado e investir em ressocialização efetiva.
A guerra contra o crime organizado nas favelas do Rio de Janeiro só será vencida quando o Estado decidir, de fato, ocupar esses territórios com políticas públicas abrangentes e duradouras, e não apenas com a força das armas.
 
 
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