Os dados de homicídios de 2017
acabam de ser publicados no anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e
mostram a continuidade de tendências iniciadas na década passada. Se tomarmos,
por exemplo, o período 2007 a 2017, identificamos um forte incremento dos homicídios nos
Estados do Nordeste (60%) e Norte (76%), crescimento moderado no Centro Oeste
(37%), baixo nos estados sulinos (6,5%)
e queda no Sudeste (-11%).
Obviamente que existem casos
discrepantes em cada região. No Nordeste, Estados como Alagoas e Pernambuco
mostram desempenho melhores que a média regional enquanto no Sudeste, Minas
Gerais destoa negativamente dos demais estados. Como entender estas diferentes dinâmicas regionais?
Em 2013 publiquei na Revista do
FBSP um artigo procurando explicar parcialmente o fenômeno.
Resumidamente, no Norte e Nordeste observamos rápido crescimento da renda nas
últimas décadas, que gerou aumento no crime oportunista patrimonial, como o
roubo - além de crescimento desordenado e desigual na periferia das grandes cidades. Este aumento do roubo fez crescer a sensação de insegurança e com ela o
uso da arma de fogo como meio de proteção. Como resultado do aumento das armas
em circulação, vimos simultaneamente o crescimento dos homicídios. Isto num
contexto onde o sistema de Justiça Criminal funcionava já muito precariamente. Em
contraste, no Sudeste principalmente, presenciamos nas últimas duas década um
ciclo virtuoso de crescimento econômico moderado, estabilidade do crime
patrimonial e da sensação de insegurança, diminuição de armas em circulação e
melhorias relevantes na eficiência das polícias, num contexto de diminuição da
população jovem. (Kahn, Crescimento econômico e criminalidade: uma interpretação
da queda dos crimes no Sudeste e aumento no Norte/NordesteRev. bras. segur.
pública | São Paulo v. 7, n. 1, 152-164 Fev/Mar 2013)
Analisando posteriormente os
dados do Atlas da violência no período 2005 a 2015, mostrei dois fenômenos que corroboram a relevância do papel das armas de neste processo: 1) a variação dos homicídios entre 2005 e 2015 acompanha a
variação na proporção de homicídios cometidos com armas de fogo. Em São Paulo
55% das mortes por agressão tem a arma de fogo como instrumento e a média
nacional é de 71,6%. Todo o Nordeste está bem acima destes patamares. Em
Alagoas, a porcentagem é de 87%, 79% na Bahia, 82% no Ceará, 81% na Paraíba,
75% em Pernambuco, 82% no Rio Grande do Norte e em Sergipe 2) as taxas de homicídios
seguem um padrão em formato “U”, isto é, são maiores nas cidades pouco e muito
populosas e menores nas cidades de população média. Não por acaso, a % de homicídios
cometidos com armas de fogo (medindo aqui, simplesmente, armas em circulação),
segue o mesmo formato em U, sugerindo novamente que homicídios, qualquer que
seja a Região do país, seguem de perto a disponibilidade de armas, como
previsto.( https://tuliokahn.blogspot.com/2017/07/por-que-as-taxas-de-homicidios-seguem.html)
Uma explicação alternativa,
bastante comum entre as “autoridades” de segurança pública, argumenta que os homicídios cresceram no Norte
e Nordeste em razão do aumento do tráfico de drogas - especialmente do crack - e dos problemas correlatos que esta modalidade
de crime acarreta: morte entre traficantes por disputas de mercado, morte de
usuários que não pagam suas dívidas, morte de traficantes e usuário em
confronto com as polícias e assim por diante.
Com efeito, droga é uma “mercadoria”
como outras e seu consumo é afetado pelo nível geral da renda. O crescimento
econômico rápido e intenso no Norte e Nordeste nas últimas décadas pode de fato
ter contribuído para o aumento do consumo e apreensão de drogas na Região. Este
aumento do consumo, por sua vez, gerado uma disputa pelo mercado crescente,
endividamento de usuários, confrontos com a polícia, etc. Mas não temos dados,
infelizmente, que corroborem este aumento específico do tráfico e uso de drogas
no Norte e Nordeste, mas apenas os dados dos homicídios, que seriam a “consequência”.
De modo que estamos diante da típica falácia da afirmação do consequente, uma
vez que não existem evidências do aumento do consumo e tráfico especificamente
no período e regiões mais afetadas pela epidemia de homicídios. [1]
Esta explicação não consegue dar
conta de muitas evidências encontradas. As taxas de homicídios, como vimos, são
mais elevadas nas cidades pouco e muito populosas, mas caem nas cidades de
população médias. Vimos que a disponibilidade de armas consegue explicar este
fenômeno. Mas por que motivos o tráfico (e as mortes correspondentes) seria
maior nas cidades pequenas e grandes do que nas médias? Dados das pesquisas da
UNIFESP sobre prevalência de uso do crack, por sua vez, mostram que o uso da
substância é ínfimo no Norte (1%) – onde os homicídios explodiram nos últimos
anos – e elevado no Sudeste (35%), onde os homicídios caíram. (http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2012/09/nordeste-concentra-40-do-consumo-de-crack-no-brasil-aponta-estudo.html).
As taxas de tráfico por 100 mil habitantes, mesmo que tenham aumentado de forma
generalizada, ainda são bem inferiores à média nacional justamente nos Estados
do Norte e do Nordeste e maiores no Sudeste. Como compatibilizar estes fatos
com a “hipótese das drogas”?[2]
Ligada parcialmente a esta
hipótese do crescimento do tráfico e uso de drogas no Norte e Nordeste, encontramos
agora uma sugestiva explicação da dinâmica dos homicídios nas regiões baseada
na maior ou menor presença do PCC nos Estados. Os pesquisadores Camila Dias e
Bruno Manso estudaram a queda dos homicídios em São Paulo e em suas pesquisas
sugerem que a facção criminosa teve um papel regulador importante para explicar
a queda dos homicídios no Estado. Em trabalho conjunto mais recente, procuram aplicar
aos demais estados uma hipótese semelhante: quanto mais forte a presença do PCC
num estado, maior seu poder regulador sobre os homicídios. Mas a violência num
estado, complementam, pode aumentar durante o processo de consolidação do domínio da facção.
Assim, o impacto da facção criminosa sobre os homicídios dependeria do grau de
presença do PCC no Estado. ( Camila Dias e Bruno Manso. A Guerra: A Ascensão do
PCC e o Mundo do Crime no Brasil)
Se entendi corretamente através
do pouco que foi divulgado pelos jornais (o livro ainda não foi publicado), os
autores basearam-se em evidências policiais e documentos da facção para
classificar os estados segundo a presença do PCC, gerando quatro diferentes
situações: muito alta, alta, média e baixa. Onde a presença do PCC é muito
alta, observaríamos queda nos homicídios. Uma presença média, por outro lado, pode ser indício de disputa com outras facções locais, que pode implicar em aumento da
violência. Uma presença “alta”, supomos, implicaria em algo intermediário entre
o “muito alto” e a “média”, com índices decrescentes de criminalidade. Uma
presença “baixa” por sua vez, implicaria em impactos não significativos sobre a
criminalidade ou em queda, no caso de monopólio de alguma outra facção.
Graficamente, se colocarmos os níveis de presença do PCC num eixo e as taxas de
homicídio no outro, teríamos uma curva logarítmica truncada, como abaixo:
Presença do PCC e impacto sobre
os homicídios
A conjectura faz sentido do ponto
de vista lógico e pode ser colocada à prova empiricamente. Na discussão do caso
paulista, vimos que a conjectura da regulação dos homicídios via PCC falha em
explicar diversas evidências: a queda em São Paulo começa num período anterior,
ocorre de forma generalizada no Estado, mesmo onde não existe a facção, as
mortes caem entre vítimas de todas as idades e gêneros, diminuem as mortes
interpessoais, que guardam pouca conexão com as mortes em dinâmicas criminais,
etc.
(https://www.researchgate.net/publication/305653088_O_Misterio_de_Sao_Paulo''_e_o_Papel_do_PCC_na_Reducao_de_Homicidios_nos_anos_2000). Domínio dentro dos presídios é uma coisa e capacidade de influenciar os
homicídios na sociedade mais ampla é outra. Frente a conjecturas alternativas,
a explicação via regulação do PCC é fraca e residual, impactando eventualmente
a dinâmica criminal de algumas comunidades na Capital. Mas é possível que a conjectura PCC explique melhor a dinâmica dos homicídios em outros estados.
De todo modo, para testar (muito)
apressadamente a hipótese, colocamos na tabela abaixo a classificação dos
autores sobre a presença do PCC nos Estados e as variações nas taxas de
homicídios entre 2007 e 2017.[3]
Antes de aprofundarmos os argumentos, vejamos o que sugerem os dados.
Os estados classificados como de
presença “muito alta” do PCC são SP, PR e MS e todos eles apresentaram queda
nos homicídios na década, corroborando a hipótese dos autores sobre o papel
regulador da facção num contexto monopolista. Nos estados classificados como
presença “alta”, supomos que deveríamos também ver alguma influência deste
poder regulador, embora em menor medida. Mas não é isso que encontramos:
enquanto os homicídios caem ligeiramente em Alagoas, sobem bem acima da média
nacional nos outros quatro (AC, RR, PI e SE). Assim, se é verdade que a
presença do PCC influencia as taxas de homicídio, isto parece ocorrer apenas a
partir de certo estágio de presença, quando ela passa para a categoria “muito
alta” (efeito threshold?).
Uma presença “média” do PCC,
segundo a conjectura, poderia implicar em conflito com outras facções e aumento
da violência. Temos 14 estados neste grupo e dentre estes observamos quedas nos
homicídios no DF e ES no período, que refutam o argumento. Dois outros estados
apresentam variações menores do que a média nacional (RO e PE). Finalmente, em
10 estados vemos crescimentos elevados dos homicídios na década, como sugere a
conjectura.
Por último, temos cinco estados
classificados como de “baixa” presença do PCC e neles a evolução dos homicídios
foi variada: acima da média nos estados da Região Norte (AM, PA, TO), abaixo da
média no MT e queda no RJ - onde várias facções convivem no sistema prisional)
e disputam o mercado de drogas na cidade;
Vemos assim que a evidência é
mista, corroborando as hipóteses em alguns casos e rejeitando em outros. Seria
preciso aprofundar melhor as dinâmicas estaduais para compreender estas possíveis
exceções à regra. Isto supondo que a “regra”
seja válida, algo que ainda não foi razoavelmente demonstrado, como sugere o
caso paulista.
Entre outras questões relevantes,
é possível, baseado em evidência qualitativa, estimar a presença do PCC dentro
das prisões, mas será possível extrapolar esta presença interna para estimar a capacidade
de regular os homicídios nas comunidades, fora das prisões? As quedas ou
aumentos dos homicídios nos estados coincidem temporalmente com os avanços da
presença do PCC? Outras facções monopolistas não deveriam gerar os mesmos
efeitos sobre os homicídios? Como explicar o crescimento dos homicídios
especialmente nas pequenas cidades? Qual o perfil de quem esta morrendo, apenas
homens jovens ligados ao universo do crime? Qual o papel da historicidade, como
políticas públicas específicas de combate aos homicídios adotadas com sucesso em
alguns estados? É preciso que a teoria se adeque a estas características morfológicas
dos homicídios, se tem pretensão a validade.
Como em toda explicação, existem
ainda muitas lacunas a serem preenchidas. A hipótese é criativa e os autores
fizeram mais uma vez um excelente trabalho mapeando a força da facção nos
estados e oferecendo uma explicação coerente para as diferentes dinâmicas
estaduais, superior à hipótese simplista do “crescimento do crack”. Desconfio
novamente que o papel regulador do PCC neste processo de aumentos e quedas, externo
aos presídios, seja novamente residual. Mas as ideias estão (e muito bem)
colocadas e aos pesquisadores resta o desafio de coloca-las ao crivo das
melhores evidências!
[1] O raciocínio
legítimo é se A, então B. Encontramos evidência de A, logo B é corroborado. O raciocínio
falacioso é Se A, então B. Encontramos evidência de B, “logo”, A. É a famosa
falácia da afirmação do consequente.
[2] Estatísticas
de tráfico são tanto um indicador de renda local quanto de atividade policial.
Deste modo, não podemos utiliza-las para estimar o consumo. Precisaríamos de
novas pesquisas de incidência e prevalência para verificar a evolução do
consumo por estado.
[3] A
tabela do FBSP continha lacunas, que foram preenchidas (em vermelho) com os dados de homicídio do Datasus ou
estimadas pelas médias dos anos próximos.
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