Um modelo é uma representação
esquemática e simplificada do mundo. É uma ferramenta heurística para nos
ajudar a entendê-lo, reduzindo sua complexidade a um nível mais elementar. Wright
Mills falava em A Imaginação Sociológica
que qualquer livro pode ter seu argumento básico resumido a duas ou três
páginas. Hoje reduzimos talvez a um gráfico.
O modelo abaixo é uma tentativa
de descrever o funcionamento de diversos processos e fenômenos criminais,
tomando uma recessão econômica como ponto de partida. Por trás de cada caixinha
do modelo existem hipóteses, algumas já corroboradas e outras ainda em nível de
conjecturas plausíveis, mas não testadas empiricamente. Existem mais de 40 hipóteses subjacentes neste
pequeno modelo: sobre o que afeta o que, em que sequência e com qual sinal. Pensando
nos possíveis relacionamentos entre duas ou mais variáveis, o pesquisador deve
se fazer uma série de perguntas para determinar de que maneira os fenômenos se
relacionam: A afeta B? Em que medida A
afeta B? Quanto tempo depois A afeta B? Em que sentido A afeta B (aumenta ou diminui)?
A afeta B diretamente ou indiretamente através de C? B afeta A? B é afetado
apenas por A ou também por outras variáveis? Será que não detectamos o efeito
de A em B porque B sofre efeitos contrários de C? Qual é a forma da relação
entre A e B? Em geral supomos que seja linear, mas pode assumir várias outras
formas (exponencial, logarítmica, etc.). O efeito é monotônico (isto é, cada
alteração de uma unidade de A afeta uma unidade de B) ou é preciso que se
ultrapasse certo limiar até que o efeito seja discernível, como a fervura da
água?
O relacionamento entre variáveis
é complexo e só procedimentos estatísticos robustos podem ajudar a esclarecer a
influência, peso, forma e direção dos fenômenos, considerados simultaneamente. Mas
aqui estamos exercitando apenas a boa e velha Imaginação Criminológica, uma
interpretação tentativa de como o mundo ao redor funciona, que todo analista
deve ter, antes de colocar a prova suas hipóteses. O modelo serve também como
uma mini agenda de pesquisa, para quem se interessar em validar ou refutar as
hipóteses aqui aventadas.
A utilidade em apresentar desta
forma é tornar visível algumas características relevantes:
1- os fenômenos ocorrem em geral
numa sequência temporal: às vezes quase imediatamente e outras com efeito
retardado, mas ainda assim há uma sequencia cronológica para que os efeitos se manifestem.
Uma recessão pode afetar rapidamente o consumo de drogas e álcool, mas só após
afetar os roubos, expectativa subjetiva do consumidor e a sensação de segurança
é que pode (eventualmente) afetar as decisões sobre os gastos públicos, às
vezes muito tempo depois.
2- existem forças conflitantes
atuando simultaneamente em muitos fenômenos. Argumentamos que a recessão e o
aumento dos roubos e insegurança podem implicar num aumento de gastos públicos
e privados em segurança mais a frente. Por outro lado, esta mesma recessão
implica numa diminuição da arrecadação e coloca restrições aos aumentos de
gastos. O aumento da sensação de insegurança pode gerar um aumento das armas de
fogo em circulação e dai a um aumento nos homicídios. Por outro lado, uma
diminuição no consumo de drogas – com origem na mesma recessão – pode implicar
numa diminuição dos homicídios, em especial os relacionados ao tráfico de
drogas. O aumento do desemprego e queda da renda pode gerar um esgarçamento do
tecido social e dai a um aumento no consumo de álcool, com implicações para os
homicídios domésticos e outros crimes interpessoais. Por outro lado, a recessão
e diminuição da renda pode significar uma diminuição no consumo de álcool,
diminuindo estes crimes. Em outras palavras, há frequentemente um “por outro
lado” para contrabalançar e diluir alguns efeitos, que frequentemente são a
resultante de forças com sinais contrários. Um objeto pode não se mover porque
um o empurra para frente e outro para traz. Isto não significa que não existam
forças atuando sobre ele. Apenas que não conseguimos ver seu efeito.
Obs: os números se referem às
hipóteses relacionadas no texto completo
3 - Se existem forças
conflitantes com sinais contrários que diluem alguns efeitos, existem outras
que se superpõem para reforçar um efeito, que pode ser o resultado direto e/ou
indireto de diversos fenômenos anteriores. Exemplificando: o aumento da
sensação de insegurança (gerado pelo aumento dos roubos e pela recessão) pode implicar
numa redução do consumo, na medida em que indivíduos e investidores mudam seus
hábitos: saem menos, gastam menos, etc. Mas esta mesma mudança de hábitos e
redução do consumo é também resultado da própria recessão. Ambos – insegurança
e recessão - contribuem direta ou indiretamente para a redução do consumo. O
aumento dos homicídios, por sua vez, pode estar sendo causado tanto pelo
aumento das armas em circulação quanto pelo desgaste do tecido social ou ainda
pelo aumento do consumo de álcool. Roubos
são crimes de oportunidade: uma diminuição nos roubos pode ser o fruto tanto de
mudanças no estilo de vida, que reduz a exposição das vítimas, quanto do
aumento dos gastos em segurança, que resulta em maior detecção ou prisões. Em
resumo, um mesmo efeito pode ser gerado por mais de um fator e a questão é
discernir quais e com que peso.
4 – Existem no modelo subsistemas
menores que se retro alimentam: o aumento da sensação de insegurança aumenta as
armas em circulação, que aumentam os homicídios, que por sua vez voltam a
incrementar a sensação de insegurança. Aumento do desemprego pode aumentar o consumo
de álcool que por sua vez afeta as condições de empregabilidade. O aumento dos
roubos e da sensação de insegurança se traduz em mudanças de hábitos e
diminuição do consumo, que por sua vez aumenta a recessão que aumenta os roubos
e assim por diante. Estes feedbacks ajudam a entender porque é difícil sair de
algumas espirais viciosas e onde é possível intervir para tentar interrompe-las.
5 - Alguns efeitos perduram no
tempo e se tornam “autônomos”, mesmo que algumas causas antecedentes tenham
deixado de existir. Pessoas que passaram
pelo sistema prisional tem dificuldade em conseguir voltar ao mercado formal de
trabalho: parte delas continua a delinquir, mesmo se o ciclo recessivo chegou
ao fim. Algo semelhante acontece com que começou a delinquir, a abusar de
drogas e álcool, com um grupo criminoso que se tornou organizado, com quem
perdeu a confiança na polícia, com quem comprou uma arma num momento de
insegurança, etc. Uma vez iniciado o processo, ele continua por si. Isto ajuda
a entender porque o volume de crimes cresce continuamente, mesmo quando o
contexto econômico melhora.
6 – A rigor, não existem limites
à expansão das caixas e flechas, que limitamos aqui para não aumentar a
complexidade do modelo. Cada uma delas implica em novos e múltiplos
antecedentes e consequentes, que podem ser acrescentados ao gosto de cada
autor. Alguém poderia dar sequência, por exemplo, acrescentando outras
implicações da diminuição da satisfação com a polícia na autoestima dos
policiais, das implicações da redução de notificações e denúncias na eficiência
da polícia, das implicações do aumento da população prisional, do crime
organizado, etc. etc. Um dia talvez seja possível produzir um grande modelo
incorporando estes outros passos, conforme avance nosso conhecimento sobre
estes temas. Neste exercício paramos por aqui, enquanto o modelo ainda cabe na
página, mas nada impede que ele continue a se expandir indefinidamente.
7 – Como está implícito, vários
destes fenômenos são cíclicos e em algum momento o ciclo vicioso se rompe e se
converte num ciclo virtuoso. Pessoalmente acredito que os fenômenos criminais
são bastante influenciados pelos fenômenos socioeconômicos e tanto o início
quanto o final dos ciclos criminais são provocados principalmente por mudanças
externas, como a retomada da economia. Mas alguns elementos internos ao sistema
de justiça criminal também contribuem para a mudança de mão: em algum momento, o
aumento dos gastos em segurança, se eficientes, se transformam em mais
apreensões de armas, mais prisões, novas tecnologias, novos modelos de gestão, etc.
que tem efeitos inibidores sobre o crime. Existem diversos exemplos na
literatura de que economia não é destino e que políticas de segurança exitosas
podem diminuir crime, independente do contexto socioeconômico.
Segurança pública é quase sempre
um paliativo para remediar fracassos em outras áreas. Para além da eficiência
ou ineficiência do sistema de justiça criminal, que pode sempre ser melhorado,
níveis de desemprego e de desigualdades elevados e recessões prolongadas são
claramente criminógenos. São 22,5% de jovens que nem trabalham nem estudam
segundo dados do IBGE de 2015. Não dá pra jogar as contas nas costas das
polícias. Os “inputs” para o crescimento do crime vêm quase sempre de fora
deste sistema. Este modelo é apenas um pequeno subsistema, dentro de uma
realidade bem mais complexa do que podemos capturar com nossas ferramentas
heurísticas. O conhecimento gradual de como ele funciona pode nos ajudar a
diminuir os efeitos mais danosos destes condicionantes.
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