Trabalhando há muitos anos com dados criminais, notei que parece existir
uma espécie de relação inversa, ainda que tênue, entre os registros de tráfico
de droga e de roubo de veículos: em outras palavras, quando as ocorrências de
tráfico sobem as de roubo de veículos caem, e vice-versa. Este achado empírico
é confirmado em parte quando averiguamos
as estatísticas recentes de São Paulo e Rio de Janeiro. (Pegando os últimos 28
meses, a relação em São Paulo é de R =-.67 e do Rio de R= -.58)
A questão é como interpretar este resultado: o que existe por traz desta
relação invertida? Vejamos em primeiro lugar o que significam na prática estes
registros. O roubo de veículos não guarda grandes ambiguidades. Trata-se na
maioria esmagadora dos casos de uma vítima, que pessoalmente ou através da
internet, comunica o roubo à polícia, por diversos motivos: ressarcimento do
seguro, tentativa de recuperar o bem, evitar que o mau uso do veículo traga
consequências legais e financeiras, etc. Existe uma pequena parcela de fraudes
contra seguradoras neste meio e alguma subnotificação, mas de modo geral, o
roubo de veículos é considerado um dos indicadores criminais mais robustos, com
taxas de notificação em torno de 97%. Temos aqui (no mínimo) um autor, uma
vítima, um bem subtraído, um caso típico de crime patrimonial. Existem os casos
que os americanos chamam de “joy riding”,
em que o carro é roubado apenas por diversão e depois abandonado, mas a
motivação mais frequente é sem dúvida patrimonial. Os carros mais antigos ou
populares para desmanche de peças e os mais modernos e potentes para uso em
outras atividades criminais.
Os registros de tráfico de droga ou de apreensão de droga no caso
carioca, são mais complexos de interpretar. Não existe aqui uma vítima
específica, exceto se pensarmos na sociedade como um todo. Tanto o traficante
quanto o consumidor estão em conluio para não serem detectados. Ninguém vai à
delegacia para registrar uma queixa de tráfico de drogas. Existem sim denúncias
de terceiros: quase metade dos registros recebidos pelos serviços de Disque
Denúncia anônimos diz respeito ao tráfico. São vizinhos incomodados,
concorrentes, alguém que quer que a polícia vá ao local por variados motivos,
etc. Mas em que pesem as denúncias, na maioria das vezes o registro de tráfico
e apreensão de drogas é o resultado de uma atividade policial. Assim, sabemos
que estes registros são em pequena parte uma medida do fenômeno em si (no caso
das denúncias) e em grande parte um indicador de produtividade da polícia. Aumentos
e diminuições significam quase sempre que a polícia agiu ou deixou de agir e, eventualmente,
aumento ou diminuição do consumo.
Certa vez na SSP me dei ao trabalho de georeferenciar os endereços das
denúncias de tráfico recebidas pelo serviço de Disque Denúncia e comparar com
os registros feitos pelas polícias. Como esperado, os mapas eram bastante
diferentes, com as denúncias espalhadas pelas periferias e os registros
oficiais dos B.O.s concentrados nas áreas centrais. Mais uma evidência de que
estamos falando de dois fenômenos diferentes.
Não dá para medir automaticamente a quantidade de tráfico de drogas, o
nível de consumo ou se o fenômeno está aumentando ou diminuindo apenas com base
nos registros oficiais de tráfico ou apreensão de drogas. Para isto existem
outras ferramentas, como as pesquisas de uso auto reportadas, tais como as
realizadas esporadicamente pela Unifesp, que medem anonimamente a incidência e
prevalência do uso de álcool e drogas entre estudantes, no último mês, último
ano ou alguma vez na vida. Este é o motivo pelo qual hoje, muitos órgãos de
segurança, colocam as estatísticas de drogas entre os indicadores de atividade
policial e não mais entre os indicadores criminais.[1]
Agora que temos uma noção um pouco melhor do significado destes
indicadores, como interpretar que exista uma relação inversa entre eles? Será
que temos uma migração de criminosos entre estas modalidades criminais, de modo
que quando um mercado está em baixa eles passam a se dedicar a outro? Ou é o
cerco policial ao tráfico que força esta suposta “migração”? Quem conhece o universo criminal sabe que a
migração entre crimes, especialmente os que exigem alguma organização, não é
tão simples como aparenta. Cada crime exige o conhecimento de locais
apropriados, receptadores, lavadores de recursos, modus operandi, parceiros
certos, etc. Não dá para simplesmente começar uma nova atividade a cada
oscilação no “mercado”: o estelionatário não virá ladrão de banco, o latrocida
não vira ladrão de carga e assim por diante. Obviamente que existem migrações e
adaptações conhecidas na literatura criminal: quando um local fica ruim o
criminoso parte para outro, quando uma forma de agir é detectada muda-se para
outra, quando um alvo é reforçado busca-se uma alternativa. Mas tais mudanças
não são tão fáceis e é por isso que uma política de segurança com foco
consistente consegue efetivamente diminuir crimes e não apenas deslocá-los.
A polícia também adapta parcialmente sua atuação em função dos
indicadores criminais. Ao notar o crescimento sistemático de uma modalidade
criminal é possível alocar recursos para novas áreas e tipos de crime. Mas
estas reorientações são lentas e raras enquanto as mudanças observadas aqui são
de curto prazo e cíclicas. Novamente, quem trabalha com os órgãos de segurança
sabe o quanto é difícil modificar comportamentos, táticas e orientações
costumeiras. Tanto crime quanto policiamento são “atividades de rotina”. Provavelmente,
estes ciclos invertidos entre roubo de veículos e tráfico não se devem nem a
migração criminal nem a realocação de efetivos e recursos policiais.
A resposta deve ser procurada em outro lugar. A interpretação mais
provável é que ambos os fenômenos respondem a um mesmo fator subjacente, qual
seja, o contexto econômico. Como sugerimos em diversas ocasiões, existem
evidências robustas de que as variações nos roubos de veículos seguem de perto
os ciclos econômicos: crescem nas recessões e caem nas fases de crescimento.
É bastante provável que os ciclos econômicos afetem também o consumo de
drogas, mas com o sinal inverso: como qualquer outra mercadoria, o consumo de
drogas diminuiria durante as crises econômicas e voltaria a crescer na
recuperação. Isto explicaria a relação invertida entre roubo de veículos e
tráfico de drogas, conforme o esquema.
No exemplo abaixo usamos uma pequena série histórica de 27 meses
cobrindo o período de julho de 2014 a setembro de 2016. Como indicador de ciclo
econômico pegamos o número de cheques sem fundo por milhão (Serasa), além do
número apreensão de drogas e os registros de roubo de veículos divulgados
mensalmente pela ISP para o Rio de Janeiro, onde o fenômeno é mais nítido.
** correlação significativa ao nível 0.01
Conforme aventado, o contexto econômico recessivo faz aumentar os roubos
de veículos (.74) e diminuir as apreensões de drogas (-0.56), tomada aqui hipoteticamente
como uma variável substituta do consumo em baixa. Assim, a explicação para
relação inversa entre roubo de veículos e tráfico seria dada pelo fator comum
subjacente (ciclo econômico), tendo pouca relação com migração criminal ou
atuação policial. Quando calculamos o coeficiente de correlação parcial entre
registos de roubo de veículos e apreensão de drogas, controlando por cheque sem
fundos, a correlação cai de -.058 para -.30 e deixa de ser significativa, o que
é uma evidência adicional de que o contexto econômico pode estar por traz da
relação invertida entre roubo de veículos e drogas.
A conclusão é precária e para corroborá-la precisaríamos de séries históricas
mais longas, incluir outros Estados, usar outros indicadores de ciclo econômico
e principalmente encontrar uma boa medida de consumo de drogas, pois como
discutido apreensão é contaminada pela atividade policial. Em todo caso, é
interessante notar que as séries de roubo de veículos em São Paulo e Rio variem
concomitantemente e que em ambos os Estados, com todas as suas diferenças, roubo
de veículos e tráfico apareçam invertidos. Algo provoca isso. Como de costume,
desconfio da economia.
[1] Todavia, se considerarmos, por hipótese, que a atuação policial é
constante no tempo, então as variações no registro de tráfico refletiriam
variações no consumo. Para isso precisaríamos de evidências de que a atuação
policial com relação ao tráfico é aproximadamente constante no tempo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário