segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Estelionato Digital no Brasil: Uma Análise Ampliada com Base na Economia do Crime e em Evidências Recentes

 


Resumo

Este artigo integra conceitos da Teoria Econômica do Crime, evidências empíricas internacionais e dados recentes do Brasil para analisar a dinâmica do estelionato digital. Utilizamos métricas nacionais (2018–2024) e um parâmetro regional de lucratividade mediana (R$ 2.000 no estado de São Paulo), a probabilidade efetiva de prisão aproximada e estimativas de custo social. Propomos um modelo de custo‑benefício e simulamos cenários de políticas que combinam aumento da certeza da punição e redução da lucratividade. Os resultados indicam que ampliar a probabilidade de punição, aliada a medidas de desmonetização dos golpes, apresenta a melhor relação custo‑efetividade para reduzir a incidência.

1. Introdução

O estelionato digital ganhou centralidade na paisagem criminal brasileira. Em 2024, foram registradas cerca de 2,17 milhões de ocorrências no país. Estudos de vitimização sugerem que 24% dos brasileiros com mais de 16 anos perderam dinheiro em golpes digitais no último ano, indicando subnotificação relevante. Sob a ótica da economia do crime, a decisão de delinquir responde a incentivos: benefícios esperados (lucro) versus custos esperados (probabilidade × severidade). Neste trabalho, convergimos (i) dados oficiais; (ii) estimativas independentes de custo social; e (iii) literatura de dissuasão e prevenção situacional.

2. Referencial Teórico

A formulação seminal de Becker (1968) modela a ofensa como uma escolha racional: o agente compara o ganho esperado (B) ao custo esperado (C = p × T), em que p é a probabilidade de punição e T é a severidade efetiva (tempo de privação de liberdade, multa etc.). Revisões posteriores enfatizam que a certeza da punição (p) tende a produzir efeitos dissuasórios mais robustos do que aumentos na severidade (T), cuja elasticidade frequentemente é menor.

Em paralelo, a Prevenção Situacional do Crime (Clarke) recomenda reduzir oportunidades e recompensas, aumentar riscos e esforços para o ofensor. Na fronteira de otimização, jogos de segurança (Stackelberg Security Games) fornecem instrumentos para alocação estratégica de fiscalização e inspeção — úteis para direcionar investigações e ações coordenadas contra hubs de cash‑out e redes de “laranjas” no ecossistema de fraudes.

3. Contexto Normativo (Lei 14.155/2021)

A Lei 14.155/2021 tipificou a fraude eletrônica no art. 171, §2º‑A, do Código Penal, com pena de 4 a 8 anos de reclusão, além de multa, e previu majorantes. Embora a severidade nominal seja elevada, a baixa certeza de punição limita o poder dissuasório agregado.

4. Dados e Medidas

Baseamo‑nos nos dados anuais de estelionato (2018–2024) e no estoque de pessoas presas por estelionato, bem como no lucro mediano de R$ 2.000 em São Paulo. Adicionalmente, usamos estimativas de custo social médio por incidente (R$ 4.590) reportadas para o Brasil em 2024.

Tabela 1 – Ocorrências, presos e proporção de presos (2018–2024)

Ano

Ocorrencias

Presos

Pct_Preso

2018.0

426799.0

4173.0

0.98

2019.0

523820.0

4310.0

0.82

2020.0

927898.0

3791.0

0.41

2021.0

1312964.0

3427.0

0.26

2022.0

1816438.0

3844.0

0.21

2023.0

2000960.0

3782.0

0.19

2024.0

2166552.0

4112.0

0.19


5. Método de Estimação do Custo Esperado

Adotamos uma aproximação de estado estacionário que relaciona o estoque de pessoas presas por estelionato ao fluxo anual de ocorrências, obtendo uma estimativa do tempo de prisão esperado por incidente. Para 2024, tem‑se p ≈ Presos/Ocorrências e C = p × 365 dias. Com 4112 presos e 2,166,552 ocorrências, p ≈ 0.001898 e C ≈ 0.693 dias por incidente. A razão de custo por benefício (dias por R$ 1 mil) é ≈ 0.346.

6. Custo Social e Dimensão Econômica

Utilizando o custo social médio por fraude (R$ 4,590), o custo social agregado do estelionato digital em 2024 é da ordem de R$ 9,944,473,680. Tal medida reforça a assimetria entre o baixo custo esperado individual e o elevado prejuízo social.

7. Cenários de Política Pública

Simulamos cenários combinando aumento da certeza de punição (multiplicadores de p) e redução do lucro mediano (por desmonetização do golpe), mantendo o restante constante. A Tabela 2 resume os resultados em custo esperado (dias) e em “dias por R$ 1 mil”.

Tabela 2 – Cenários (certeza × lucro)

Mult_Certeza(p)

Lucro_Mediano(R$)

Custo_Esperado_Dias

Dias_por_R$1k

2000

0.693

0.346

1500

0.693

0.462

1000

0.693

0.693

2000

1.386

0.693

1500

1.386

0.924

1000

1.386

1.386

2000

2.078

1.039

1500

2.078

1.386

1000

2.078

2.078

2000

2.771

1.386

1500

2.771

1.847

1000

2.771

2.771



8. Implementação: de Princípios a Ações

À luz da evidência de que certeza supera severidade para dissuasão média, priorizamos: (i) fortalecer núcleos de investigação digital; (ii) cooperação banco‑fintech com KYC reforçado, confirmação do recebedor e monitoramento de contas “mulas”; (iii) retenções escalonadas e janelas de contestação no PIX/transferências de risco; (iv) alocação estratégica de esforços de fiscalização inspirada em jogos de segurança; (v) campanhas dirigidas a públicos vulneráveis e desenho de “fricções” úteis (nudge) nas jornadas de pagamento. Além dessas diretrizes, recomenda-se ainda: (vi) criação de uma base nacional integrada de contas e transações suspeitas, acessível mediante protocolos interinstitucionais, permitindo bloqueios preventivos coordenados; (vii) desenvolvimento de parcerias com plataformas digitais para a detecção proativa de anúncios e comunicações fraudulentas; (viii) capacitação e ampliação de quadros especializados em perícia digital e análise de dados para acelerar investigações; (ix) campanhas massivas de conscientização sobre engenharia social e golpes emergentes, com segmentação por perfis de risco; (x) monitoramento e avaliação contínua das políticas implementadas, com publicação periódica de indicadores de efetividade e relatórios de transparência. Essas ações, articuladas e sustentadas no tempo, ampliam a probabilidade de punição percebida e reduzem substancialmente a atratividade econômica do crime, alinhando-se às melhores práticas internacionais em cibersegurança e prevenção situacional.


A aproximação estacionária simplifica a dinâmica de entradas/saídas do sistema prisional. Futuras pesquisas devem incorporar estimativas de tempo efetivo de cumprimento, taxas de condenação a partir de inquéritos e processos, e heterogeneidade de lucros por modalidade de golpe, além de avaliações experimentais ou quasi‑experimentais do impacto das intervenções propostas.

Referências (com links)

Becker, G. S. (1968). Crime and Punishment: An Economic Approach. Journal of Political Economy. https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/259394

Nagin, D. S. (2013). Deterrence in the Twenty-First Century. Crime and Justice. https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/670398

Chalfin, A., & McCrary, J. (2017). Criminal Deterrence: A Review of the Literature. Journal of Economic Literature. https://www.aeaweb.org/articles?id=10.1257/jel.20141147

Clarke, R. V. (Ed.). (1997/2010). Situational Crime Prevention: Successful Case Studies. ASU POP Center (capítulos). https://popcenter.asu.edu/sites/g/files/litvpz3631/files/scp2_intro_0_0.pdf

Newman, G. R., & Clarke, R. V. (2003). Superhighway Robbery: Preventing E-Commerce Crime. Preview: https://api.pageplace.de/preview/DT0400.9781134000074_A23756872/preview-9781134000074_A23756872.pdf

Tambe, M. (2011). Security and Game Theory: Algorithms, Deployed Systems, Lessons Learned. Cambridge. Preview: https://api.pageplace.de/preview/DT0400.9781139200622_A23866901/preview-9781139200622_A23866901.pdf

Fang, F., Stone, P., & Tambe, M. (2016–2017). PAWS/Green Security Games. IAAI/AIM. https://www.cais.usc.edu/wp-content/uploads/2017/07/Fang-et-al-IAAI16_PAWS-1.pdf

Lei nº 14.155/2021 (fraude eletrônica, art. 171, §2º-A, CP). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14155.htm

DataSenado (2024): 24% da população vitimada por golpes digitais. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/10/01/golpes-digitais-atingem-24-da-populacao-brasileira-revela-datasenado

FBSP – Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 (sínteses e indicadores). https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/

FBSP – 19ª edição (2025): síntese 2,2 milhões de estelionatos (2024). https://fontesegura.forumseguranca.org.br/19a-edicao-do-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica-revela-22-milhoes-de-casos-de-estelionato-no-pais-em-2024-com-crescimento-de-78-em-relacao-ao-ano-anterior/

LexisNexis Risk Solutions (2024). True Cost of Fraud™ – Brazil (R$3,59 por R$1). https://risk.lexisnexis.com/global/en/about-us/press-room/press-release/20240620-true-cost-of-fraud-brazil

Nenhum comentário:

Postar um comentário

keepinhouse

Arquivo do blog

Seguidores