Resumo
Este artigo integra conceitos da Teoria
Econômica do Crime, evidências empíricas internacionais e dados recentes do
Brasil para analisar a dinâmica do estelionato digital. Utilizamos métricas
nacionais (2018–2024) e um parâmetro regional de lucratividade mediana (R$
2.000 no estado de São Paulo), a probabilidade efetiva de prisão aproximada e
estimativas de custo social. Propomos um modelo de custo‑benefício e simulamos
cenários de políticas que combinam aumento da certeza da punição e redução da
lucratividade. Os resultados indicam que ampliar a probabilidade de punição,
aliada a medidas de desmonetização dos golpes, apresenta a melhor relação
custo‑efetividade para reduzir a incidência.
1. Introdução
O estelionato digital ganhou centralidade
na paisagem criminal brasileira. Em 2024, foram registradas cerca de 2,17
milhões de ocorrências no país. Estudos de vitimização sugerem que 24% dos brasileiros
com mais de 16 anos perderam dinheiro em golpes digitais no último ano,
indicando subnotificação relevante. Sob a ótica da economia do crime, a decisão
de delinquir responde a incentivos: benefícios esperados (lucro) versus custos
esperados (probabilidade × severidade). Neste trabalho, convergimos (i) dados
oficiais; (ii) estimativas independentes de custo social; e (iii) literatura de
dissuasão e prevenção situacional.
2. Referencial Teórico
A formulação seminal de Becker (1968)
modela a ofensa como uma escolha racional: o agente compara o ganho esperado
(B) ao custo esperado (C = p × T), em que p é a probabilidade de punição e T é
a severidade efetiva (tempo de privação de liberdade, multa etc.). Revisões
posteriores enfatizam que a certeza da punição (p) tende a produzir efeitos
dissuasórios mais robustos do que aumentos na severidade (T), cuja elasticidade
frequentemente é menor.
Em paralelo, a Prevenção Situacional do
Crime (Clarke) recomenda reduzir oportunidades e recompensas, aumentar riscos e
esforços para o ofensor. Na fronteira de otimização, jogos de segurança
(Stackelberg Security Games) fornecem instrumentos para alocação estratégica de
fiscalização e inspeção — úteis para direcionar investigações e ações
coordenadas contra hubs de cash‑out e redes de “laranjas” no ecossistema de
fraudes.
3. Contexto Normativo (Lei 14.155/2021)
A Lei 14.155/2021 tipificou a fraude
eletrônica no art. 171, §2º‑A, do Código Penal, com pena de 4 a 8 anos de
reclusão, além de multa, e previu majorantes. Embora a severidade nominal seja
elevada, a baixa certeza de punição limita o poder dissuasório agregado.
4. Dados e Medidas
Baseamo‑nos nos dados anuais de estelionato
(2018–2024) e no estoque de pessoas presas por estelionato, bem como no lucro
mediano de R$ 2.000 em São Paulo. Adicionalmente, usamos estimativas de custo
social médio por incidente (R$ 4.590) reportadas para o Brasil em 2024.
Tabela 1 – Ocorrências, presos e proporção de presos
(2018–2024)
Ano |
Ocorrencias |
Presos |
Pct_Preso |
2018.0 |
426799.0 |
4173.0 |
0.98 |
2019.0 |
523820.0 |
4310.0 |
0.82 |
2020.0 |
927898.0 |
3791.0 |
0.41 |
2021.0 |
1312964.0 |
3427.0 |
0.26 |
2022.0 |
1816438.0 |
3844.0 |
0.21 |
2023.0 |
2000960.0 |
3782.0 |
0.19 |
2024.0 |
2166552.0 |
4112.0 |
0.19 |
5. Método de Estimação do Custo Esperado
Adotamos uma aproximação de estado
estacionário que relaciona o estoque de pessoas presas por estelionato ao fluxo
anual de ocorrências, obtendo uma estimativa do tempo de prisão esperado por
incidente. Para 2024, tem‑se p ≈ Presos/Ocorrências e C = p × 365 dias. Com
4112 presos e 2,166,552 ocorrências, p ≈ 0.001898 e C ≈ 0.693 dias por
incidente. A razão de custo por benefício (dias por R$ 1 mil) é ≈ 0.346.
6. Custo Social e Dimensão Econômica
Utilizando o custo social médio por fraude
(R$ 4,590), o custo social agregado do estelionato digital em 2024 é da ordem
de R$ 9,944,473,680. Tal medida reforça a assimetria entre o baixo custo
esperado individual e o elevado prejuízo social.
7. Cenários de Política Pública
Simulamos cenários combinando aumento da
certeza de punição (multiplicadores de p) e redução do lucro mediano (por
desmonetização do golpe), mantendo o restante constante. A Tabela 2 resume os
resultados em custo esperado (dias) e em “dias por R$ 1 mil”.
Tabela 2 – Cenários (certeza × lucro)
Mult_Certeza(p) |
Lucro_Mediano(R$) |
Custo_Esperado_Dias |
Dias_por_R$1k |
1× |
2000 |
0.693 |
0.346 |
1× |
1500 |
0.693 |
0.462 |
1× |
1000 |
0.693 |
0.693 |
2× |
2000 |
1.386 |
0.693 |
2× |
1500 |
1.386 |
0.924 |
2× |
1000 |
1.386 |
1.386 |
3× |
2000 |
2.078 |
1.039 |
3× |
1500 |
2.078 |
1.386 |
3× |
1000 |
2.078 |
2.078 |
4× |
2000 |
2.771 |
1.386 |
4× |
1500 |
2.771 |
1.847 |
4× |
1000 |
2.771 |
2.771 |
8. Implementação: de Princípios a Ações
À luz da evidência de que certeza supera
severidade para dissuasão média, priorizamos: (i) fortalecer núcleos de
investigação digital; (ii) cooperação banco‑fintech com KYC reforçado,
confirmação do recebedor e monitoramento de contas “mulas”; (iii) retenções escalonadas
e janelas de contestação no PIX/transferências de risco; (iv) alocação
estratégica de esforços de fiscalização inspirada em jogos de segurança; (v)
campanhas dirigidas a públicos vulneráveis e desenho de “fricções” úteis
(nudge) nas jornadas de pagamento. Além dessas diretrizes, recomenda-se ainda:
(vi) criação de uma base nacional integrada de contas e transações suspeitas,
acessível mediante protocolos interinstitucionais, permitindo bloqueios
preventivos coordenados; (vii) desenvolvimento de parcerias com plataformas
digitais para a detecção proativa de anúncios e comunicações fraudulentas;
(viii) capacitação e ampliação de quadros especializados em perícia digital e
análise de dados para acelerar investigações; (ix) campanhas massivas de
conscientização sobre engenharia social e golpes emergentes, com segmentação
por perfis de risco; (x) monitoramento e avaliação contínua das políticas
implementadas, com publicação periódica de indicadores de efetividade e
relatórios de transparência. Essas ações, articuladas e sustentadas no tempo,
ampliam a probabilidade de punição percebida e reduzem substancialmente a
atratividade econômica do crime, alinhando-se às melhores práticas
internacionais em cibersegurança e prevenção situacional.
A aproximação estacionária simplifica a
dinâmica de entradas/saídas do sistema prisional. Futuras pesquisas devem
incorporar estimativas de tempo efetivo de cumprimento, taxas de condenação a
partir de inquéritos e processos, e heterogeneidade de lucros por modalidade de
golpe, além de avaliações experimentais ou quasi‑experimentais do impacto das
intervenções propostas.
Referências (com links)
Becker, G. S. (1968). Crime and Punishment:
An Economic Approach. Journal of Political Economy.
https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/259394
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Twenty-First Century. Crime and Justice.
https://www.journals.uchicago.edu/doi/10.1086/670398
Chalfin, A., & McCrary, J. (2017).
Criminal Deterrence: A Review of the Literature. Journal of Economic
Literature. https://www.aeaweb.org/articles?id=10.1257/jel.20141147
Clarke, R. V. (Ed.). (1997/2010).
Situational Crime Prevention: Successful Case Studies. ASU POP Center
(capítulos).
https://popcenter.asu.edu/sites/g/files/litvpz3631/files/scp2_intro_0_0.pdf
Newman, G. R., & Clarke, R. V. (2003).
Superhighway Robbery: Preventing E-Commerce Crime. Preview:
https://api.pageplace.de/preview/DT0400.9781134000074_A23756872/preview-9781134000074_A23756872.pdf
Tambe, M. (2011). Security and Game Theory:
Algorithms, Deployed Systems, Lessons Learned. Cambridge. Preview:
https://api.pageplace.de/preview/DT0400.9781139200622_A23866901/preview-9781139200622_A23866901.pdf
Fang, F., Stone, P., & Tambe, M.
(2016–2017). PAWS/Green Security Games. IAAI/AIM.
https://www.cais.usc.edu/wp-content/uploads/2017/07/Fang-et-al-IAAI16_PAWS-1.pdf
Lei nº 14.155/2021 (fraude eletrônica, art.
171, §2º-A, CP). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14155.htm
DataSenado (2024): 24% da população
vitimada por golpes digitais.
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/10/01/golpes-digitais-atingem-24-da-populacao-brasileira-revela-datasenado
FBSP – Anuário Brasileiro de Segurança
Pública 2025 (sínteses e indicadores).
https://forumseguranca.org.br/publicacoes/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/
FBSP – 19ª edição (2025): síntese 2,2
milhões de estelionatos (2024).
https://fontesegura.forumseguranca.org.br/19a-edicao-do-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica-revela-22-milhoes-de-casos-de-estelionato-no-pais-em-2024-com-crescimento-de-78-em-relacao-ao-ano-anterior/
LexisNexis Risk Solutions (2024). True Cost
of Fraud™ – Brazil (R$3,59 por R$1). https://risk.lexisnexis.com/global/en/about-us/press-room/press-release/20240620-true-cost-of-fraud-brazil
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