quinta-feira, 6 de novembro de 2025

“Do baile à cobrança: a mutação do tráfico e o apoio a operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro”

 


Há alguns anos, moradores de favelas cariocas frequentemente manifestavam simpatia — ou pelo menos tolerância — com as organizações de tráfico que passavam a funcionar como provedores informais de bens culturais, econômicos e sociais: bailes funk, facilitação do acesso a serviços alternativos, proteções comunitárias, empregos informais. 

Em troca, as facções armadas ganhavam legitimidade local, ou pelo menos minimizavam a resistência popular à sua presença. No entanto, uma guinada parece estar em curso: diante de uma série de ações policiais de larga escala — como a gigantesca operação realizada nos complexos do Complexo do Alemão e da Complexo da Penha, no Rio de Janeiro — pesquisas de opinião apontam suporte majoritário das comunidades às intervenções do estado. 

Esse fenômeno levanta hipóteses de causalidade: será que o tráfico mudou de perfil, se aproximando do tipo de comportamento das milícias, com cobrança de taxas por internet, gás, TV a cabo, transporte alternativo, barracas e “pedágios” sobre moradores e comerciantes? E será essa mudança econômica-operacional parte da razão pela qual o apoio às operações policiais aumentou entre os próprios moradores das favelas? Ao mesmo tempo, quais alternativas explicativas devem ser consideradas? Este artigo reúne evidências recentes e avalia a hipótese da “milicialização do tráfico”, juntamente com contrapontos e hipóteses alternativas.

Apoio crescente às operações policiais

Os dados mais recentes sobre a megaoperação de 28 outubro 2025 — que deixou cerca de 121 mortos — revelam que, contrariamente à expectativa de retaliação massiva ou medo generalizado, a população do Rio de Janeiro manifestou apoio significativo às ações policiais. Uma pesquisa do instituto AtlasIntel apontou 62% de aprovação entre os moradores do Rio, e esse índice saltou para cerca de 88% entre os habitantes de favelas. (Financial Times) Esse apoio elevado entre moradores de favelas — território tradicionalmente controlado por facções do tráfico — é um dado relevante para a hipótese aqui estudada.


A hipótese: tráfico que vira milícia e erosão do “consenso comunitário”

A hipótese aqui é que, nos últimos anos, parte das facções — em especial no Rio de Janeiro — passou por uma metamorfose que as aproxima do modus operandi das milícias: controle territorial, cobrança de taxas ou tarifas clandestinas, oferta ou imposição de serviços (internet, TV a cabo pirata, gás, transporte clandestino), e ação coercitiva contra quem se opõe. Essa “milicialização” implicaria menos tolerância social e mais resistência popular — o que tornaria mais viável o apoio às operações policiais como expressão de desejo por alguma liberação desse domínio armado.

Há várias evidências que empurram nessa direção:

  • Estudos recentes, como o relatório Fundação Heinrich Böll “Milícias, facções e precariedade: um estudo comparativo…” demonstram que em territórios periféricos do Rio, as dinâmicas de controle de facções e milícias variam, mas em muitos casos há imposição de taxas e restrições à economia formal local. (ResearchGate)

  • Em termos de tráfico, há relatos jornalísticos de que a facção Comando Vermelho (CV) passou a atuar também na cobrança de serviços de internet/clandestina (“gatonet”), gás, transporte e outros “pedágios” em favelas que antes estavam sob disputas ou sob controle direto.

Sob esse prisma, o contrato social entre comunidade e grupo armado muda: deixa de haver apenas tolerância ou cumplicidade tácita para haver cobrança direta, desgaste econômico e opressão territorial. Isso pode gerar ressentimento, cansaço ou desejo de intervenção do estado e assim explicar o apoio elevado às operações.

Evidências contrárias e hipóteses alternativas

Entretanto, embora a hipótese seja atraente, ela não explica tudo sozinha e há fatores que precisam ser ponderados.

Cansaço com a violência armada em geral: A população de favelas convive cotidianamente com tiroteios, mortes, barricadas, interrupções de serviços e alto nível de insegurança. Esse desgaste pode levar a uma mudança de preferência: “prefiro policiais a confronto permanente”. Ou seja, o apoio à operação pode refletir o desejo de restauração da ordem — independentemente da origem do controle violento. 

Limitações de amostragem e definição: Os percentuais altos (≈ 88% de apoio entre favelas) são frequentes em notas de imprensa, mas os relatórios completos de metodologia não estão publicamente detalhados no momento. Portanto, não se pode afirmar com segurança que essa é uma tendência estável ou generalizável para todas as favelas.


Síntese e implicações

Consolidando os pontos acima: os dados mostram um apoio significativo às operações policiais entre moradores de favelas cariocas. A hipótese é que isso decorre, ao menos em parte, da transformação dos grupos de tráfico em organizações de tipo miliciano (com cobrança de serviços, taxas, regime de dominação territorial). 

Se o tráfico realmente adota práticas de milícia transformando o “serviço” em “cobrança”, então a lógica comunitária muda: o que antes podia ser tolerado como “mal menor” agora passa a ser percebido como exploração, e o Estado (ou a polícia) passa a ser visto como agente de intervenção desejado. Esse descolamento entre morador e grupo armado pode explicar o apoio maior às operações.

Por outro lado, se o apoio é principalmente reflexo de trauma, insegurança, espetáculo midiático ou esperança de mudança, então o aspecto da cobrança direta (internet, gás, transporte) talvez seja menos decisivo do que a urgência por ordem e pacificação.

Uma política eficaz deveria considerar  converter o apoio social gerado por esses eventos em ganhos institucionais de longo prazo para as comunidades. Esse apoio pode se converter em informações de inteligência através de denùncias e outros contatos, sobre rotina, paradeiro, organização, modus operandi das facções. 

Em conclusão, a mudança de opinião nas favelas cariocas que agora se inclina mais favoravelmente à intervenção estatal pode refletir uma importante virada: não apenas o desejo de “polícia no lugar do crime”, mas, mais profundamente, o esgotamento de um modelo de dominação que deixou de render benefícios visíveis à comunidade e passou a extrair deles. Essa mudança, se verdadeira,  exige que políticas públicas aproveitem a janela de oportunidade para consolidar presença estatal, serviço público e economia formal como antídotos à “milicialização” e à repetição cíclica de violência e controle armado.

terça-feira, 4 de novembro de 2025

O Cerco Invisível: Como Capturar Chefes do Crime Organizado em Territórios Armados sem Entrar em Guerra

 


Tulio Kahn

O cumprimento de um mandado de prisão, algo que deveria ser rotineiro em qualquer Estado de Direito, transformou-se no Brasil em uma das missões mais arriscadas e complexas da segurança pública. Em parte das grandes cidades brasileiras, sobretudo no Rio de Janeiro, lideranças criminosas vivem entrincheiradas em comunidades sob domínio armado, onde o Estado só entra sob fogo cerrado. Executar a lei nesses territórios significa desencadear uma pequena guerra urbana.

Não é um problema exclusivamente brasileiro. México, Colômbia, El Salvador, África do Sul e Filipinas enfrentam dilemas semelhantes: como capturar chefes do crime organizado que se escondem entre civis, cercados por comparsas com armamento pesado e ampla rede de proteção? A resposta, aprendida a duras penas por diversos países, é que o confronto direto é a pior das estratégias — e que inteligência, paciência e precisão valem mais do que blindados e helicópteros.

Em cidades como o Rio, a execução de ordens judiciais depende da avaliação do risco tático — se a incursão for em área conflagrada, a operação exige aparato bélico, autorização judicial específica e comunicação prévia ao Ministério Público, conforme determinou o Supremo Tribunal Federal na ADPF 635.

A letalidade das operações  é alta: só em 2023, foram 3.151 mortos por intervenções policiais no país, a maior parte em regiões de vulnerabilidade social. Pesquisas indicam que tais incursões raramente resultam na prisão do alvo principal, mas em perdas humanas e desgaste institucional.

Poucos países enfrentaram organizações criminosas tão poderosas quanto a Colômbia dos anos 1990. O confronto entre o Estado e os cartéis de Medellín e Cali ensinou que nenhuma força é eficaz sem inteligência. Após a sangrenta “Operación Orión”, em 2002, Medellín abandonou incursões massivas e investiu em vigilância aérea, interceptações e infiltrações. O resultado foi a captura de dezenas de líderes com mínimo confronto direto.

A Itália seguiu caminho semelhante. As prisões de chefes da máfia siciliana, como Bernardo Provenzano e Matteo Messina Denaro, foram precedidas por anos de investigações financeiras e de monitoramento de familiares e intermediários. Nenhum tiro foi disparado. “Desarticular o entorno é mais eficaz que invadir o reduto”, dizia Giovanni Falcone, magistrado assassinado pela Cosa Nostra em 1992, cuja metodologia inspirou a atual Direzione Investigativa Antimafia (DIA).

Nos Estados Unidos, o FBI adota abordagem combinada: task forces interagências, infiltrações e capturas em locais neutros, como estradas ou estacionamentos. A prioridade é preservar a vida e a integridade processual, evitando confrontos em áreas civis.

No Brasil, o desafio é mais intricado porque as facções controlam espaços densamente povoados. Nesses territórios, o cumprimento de um mandado de prisão não é apenas uma questão policial, mas política, social e moral.

O Estado enfrenta um dilema: se não entra, perde autoridade; se entra, pode ser acusado de massacre. Por isso, ao invez de apenas reduzir o danos das operações, como pretende a ADPF 365, propomos uma mudança tática baseada em “capturas inteligentes” — operações de precisão baseadas em dados e inteligência, em vez de ocupações generalizadas e pontuais. Elas envolvem monitorar rotinas, rastrear comunicações, identificar deslocamentos previsíveis e agir fora da área conflagrada. Essa tática, já usada por unidades de elite, reduz drasticamente os riscos. El algum momento o criminoso sai da comunidade e nesta ocasião ele fica vulnerável.

Tecnologias como drones, reconhecimento facial,  análise de rede social, escutas telefônicas, leitores de placas, etc.  vêm ampliando a capacidade de identificar essas oportunidades. A militarização do enfrentamento, embora popular entre parte da opinião pública, como mostraram as pesquisas no caso da Operação Contenção no Complexo do Alemão, mostrou-se ineficaz e contraproducente: 121 mortos, nenhum deles alvo dos mandados, 4 policiais mortos, vazamento da operação, interrupção das aulas e dos negócios, falhas na pericia das cenas de crime.

Para além de 40 anos da política do “sobe-mata-desce” no Rio de Janeiro, que não parece ter contribuído para a expansão do CV, o caso mexicano é também emblemático desta estratégia: após quase duas décadas de “guerra ao narcotráfico”, o país acumula mais de 360 mil mortos e o poder dos cartéis permanece intacto (INEGI, 2023).

“O Estado não pode competir com o crime no terreno da brutalidade”, alerta o jurista Eugenio Zaffaroni. “A vitória só vem quando o Estado se mostra racional, não quando se iguala ao inimigo.” Essa racionalidade exige mudança cultural: ver a captura não como ato heroico de combate, mas como resultado de um processo de inteligência, paciência e profissionalismo.

A experiência internacional sugere que cumprir mandados de prisão com eficiência e legalidade depende menos de armamento e mais de integração, dados e legitimidade perante a comunidade. Um plano estratégico nacional poderia seguir cinco eixos:

  1. Unidades especializadas em capturas de alto risco, pequenas e interagências, com treinamento em operações de precisão, negociação e proteção de provas;
  2. Integração entre polícias e órgãos de inteligência financeira, para atingir as redes econômicas das facções;
  3. Uso de tecnologia e vigilância discreta, priorizando capturas fora das áreas dominadas;
  4. Critérios de sucesso baseados % de cumprimento de mandados de prisão, e não em número de mortes, prisões ou apreensões;
  5. Transparência e controle social, com auditoria independente e prestação de contas após cada operação.

O modelo aproxima-se da lógica das forças antimáfia italianas e das task forces do FBI, adaptadas à realidade brasileira. Não se trata de proteger criminosos, mas de profissionalizar o Estado.

O Brasil vive uma encruzilhada. De um lado, a pressão pública por resultados rápidos e o apoio às incursões que acumulam corpos; de outro, o imperativo de respeitar o Estado de Direito e  o princípio da eficiência . Cumprir um mandado de prisão em uma favela não pode ser uma sentença de morte — nem para o criminoso, nem para o morador, nem para o policial. O verdadeiro desafio é restaurar o monopólio legítimo da força sem transformar o cumprimento da lei em guerra.

As soluções existem e estão documentadas em experiências internacionais. Falta decisão política para implementá-las, coragem institucional para reformar estruturas arcaicas e visão estratégica para enxergar além do confronto. Enquanto o Estado insistir em invadir territórios com blindados, o crime continuará a conduzir seus negócios como de costume, substituindo facilmente os mortos do dia anterior.

 

sábado, 1 de novembro de 2025

O que o “modelo fundamental” diz sobre a eleição presidencial de 2026

 


Em meio a cenários incertos, pesquisas que oscilam e disputas narrativas, há uma ferramenta que tenta prever o resultado das eleições antes mesmo do início da campanha: o modelo fundamental. Diferente das sondagens de intenção de voto, ele não mede preferências momentâneas, mas parte da ideia de que os eleitores julgam o governo sobretudo por fatores estruturais, como o desempenho da economia, a popularidade presidencial e o tempo que um partido já está no poder.

O modelo fundamental, amplamente usado nos Estados Unidos e na Europa, vem sendo adaptado ao Brasil por cientistas políticos que buscam entender como variáveis como aprovação líquida, crescimento do PIB e fadiga partidária influenciam o voto no candidato governista — o chamado incumbente.

A lógica é simples: governos bem avaliados e que entregam crescimento tendem a ser premiados nas urnas; já partidos que permanecem muito tempo no poder enfrentam um “cansaço eleitoral”, perdendo apoio mesmo com a economia estável.

Como funciona o modelo

Na sua forma mais direta, o modelo parte de uma equação que relaciona a votação esperada do governo com esses três fatores: a aprovação líquida (diferença entre aprovação e reprovação), o crescimento do PIB e o número de mandatos consecutivos do partido. Cada um desses elementos tem um peso médio, estimado com base em estudos internacionais e na experiência brasileira.

De acordo com a literatura, um ponto percentual a mais de aprovação líquida costuma render entre 0,6 e 0,8 ponto percentual a mais de votos para o candidato do governo. Já o PIB, quando cresce, também ajuda: cada ponto a mais tende a adicionar algo entre 1 e 1,5 ponto percentual. O efeito da fadiga, por outro lado, é negativo — em média, dois pontos a menos a cada mandato seguido do mesmo partido.

Esses números vêm de décadas de estudos em diversos países, mas o modelo pode ser recalibrado com dados nacionais. Quando se faz isso com as eleições brasileiras de 1989 a 2022, surgem nuances interessantes: a economia, por si só, não explica tanto quanto a percepção política do seu desempenho. Em outras palavras, o que importa não é apenas se o PIB cresce, mas se os eleitores sentem que a vida está melhorando.

O caso brasileiro

Rodando o modelo com dados das nove eleições presidenciais brasileiras, o resultado é coerente com a intuição popular. A aprovação do governo aparece como o principal determinante da votação, enquanto a fadiga partidária pesa muito mais do que em outros países. Cada mandato consecutivo adicional reduz, em média, quase oito pontos percentuais do voto do governo — um efeito poderoso. Já o PIB, embora importante, tem impacto estatisticamente fraco, provavelmente por se confundir com a popularidade do presidente.

O que esperar de 2026

Partindo de um cenário moderado — aprovação líquida de +5 pontos, PIB crescendo 1,8%, e uma fadiga de dois mandatos consecutivos (já que Lula e o PT retornaram ao poder em 2023, depois de quatro governos anteriores entre 2003 e 2016) —, o modelo projeta que o incumbente deve obter cerca de 38% dos votos válidos no primeiro turno de 2026.

Esse número vem da combinação de dois modelos: um teórico, baseado em estudos internacionais, e outro empírico, calculado com os dados históricos do Brasil. O resultado é convergente: ambos indicam uma votação entre 36% e 40% — suficiente para colocar o governo na disputa, mas distante de uma vitória no primeiro turno.

O que isso significa

Em linguagem simples, o modelo diz que o governo chega competitivo, mas sem favoritismo automático. A popularidade moderada e um crescimento econômico modesto ajudam a manter uma base sólida, porém a fadiga política — o “cansaço” com o partido no poder — deve limitar o teto de votos.

Isso não significa que a eleição esteja decidida. O modelo fundamental não capta fatores de campanha, debates, escândalos ou candidaturas alternativas. Ele descreve apenas o terreno estrutural sobre o qual a eleição será disputada. Campanhas excepcionais, crises inesperadas ou alianças políticas podem mudar o quadro.

Um termômetro de contexto, não de resultado

Em resumo, o modelo fundamental não substitui as pesquisas, mas as complementa. Ele não diz quem vai ganhar, e sim qual seria o resultado “esperado” se os eleitores votassem apenas com base no desempenho do governo e no contexto econômico. Em 2026, esse cenário esperado coloca o atual presidente em torno de 38% dos votos — competitivo, mas vulnerável.

Como todo modelo, ele simplifica a realidade, mas oferece uma bússola útil: enquanto a política oscila, a matemática dos fundamentos continua mostrando que a popularidade ainda é a moeda mais valiosa em uma eleição presidencial.


Fontes consultadas:
Lewis-Beck & Stegmaier (2013), Public Choice; Fair (2009), Cowles Foundation; Powell & Whitten (1993), American Journal of Political Science; Nadeau, Lewis-Beck & Bélanger (2017), Comparative Political Studies; Fernandes (2019), Opinião Pública.


sexta-feira, 31 de outubro de 2025

A Guerra Sem Fim: A Luta Contra o Crime Organizado nas Favelas do Rio e o Impasse da ADPF 635


A rotina nas comunidades cariocas é ditada pelo som dos tiros e pela presença constante, e muitas vezes opressiva, de dois poderes: as facções criminosas (ou milícias) e a polícia do Estado. A questão da segurança pública na cidade é um barril de pólvora, com as operações policiais nas favelas sendo o estopim frequente de violência, mortes e um debate acalorado sobre a eficácia da repressão e o papel do Estado. 
No centro dessa discussão está a ADPF das Favelas (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635), a ação judicial que tenta, a duras penas, impor limites à letalidade policial e ditar novas regras para o confronto em áreas densamente povoadas. O cenário é de um conflito persistente, onde a busca por soluções de curto prazo muitas vezes se choca com a necessidade premente de estratégias estruturais de longo prazo.
A ADPF 635, ajuizada em 2019 pelo PSB e diversas entidades da sociedade civil, nasceu da constatação de um padrão alarmante de violência. Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro revelaram um recorde histórico de mortes por intervenção policial em 2019, com 1.810 óbitos. Essa letalidade brutal e sistêmica, concentrada em comunidades periféricas, evidenciava uma política de segurança pública falida, que priorizava o confronto em detrimento da preservação da vida e dos direitos humanos.
A ação no STF buscou, essencialmente, obrigar o Estado a reconhecer a dignidade humana dos moradores de favelas. A decisão liminar do ministro Edson Fachin, que inicialmente suspendeu as operações policiais durante a pandemia da COVID-19, demonstrou um impacto imediato. Estudos e dados de organizações como o Instituto Fogo Cruzado indicaram uma redução significativa na letalidade e no número de operações no período.
No entanto, a flexibilização das regras e a realização de megaoperações que resultaram em tragédias, como o massacre do Jacarezinho em 2021 (27 civis mortos) e a operação mais recente nos Complexos da Penha e do Alemão em outubro de 2025 (121 mortos, oficialmente), demonstram que as determinações judiciais enfrentam resistência e que o modelo de confronto continua a prevalecer em diversos momentos. O padrão de letalidade, embora tenha apresentado reduções anuais em alguns períodos, permanece como uma das marcas da segurança pública do Rio, com as vítimas sendo, em sua maioria, jovens negros e moradores das próprias comunidades.
No calor da batalha diária, as autoridades de segurança pública enfrentam o desafio de cumprir mandados de prisão e desmantelar a estrutura do crime organizado. A pressão por resultados rápidos e a necessidade de capturar criminosos perigosos levam à busca por soluções imediatas.
Garantir o cumprimento de mandados no curto prazo, como a prisão de chefes de facções, exige inteligência, coordenação e planejamento meticuloso. Especialistas sugerem o uso de forças-tarefa integradas entre a Polícia Civil e Militar, com o apoio da Polícia Federal para crimes de maior complexidade. O uso de tecnologia, como reconhecimento facial, monitoramento das comunicações, uso de informantes e denúncias, pode facilitar na captura dos forajidos .
No entanto, essas ações imediatas muitas vezes esbarram na realidade territorial do Rio. A presença de facções fortemente armadas, que dominam o território e impõem seu "governo" paralelo, transforma o cumprimento de um simples mandado em uma operação de guerra. A ADPF 635 tenta mitigar isso, exigindo que as operações sejam planejadas, proporcionais e que a letalidade seja a última opção. A crítica da sociedade civil é que as autoridades frequentemente ignoram essas regras, resultando em banhos de sangue que traumatizam as comunidades e afastam a população da polícia.
A Tentação da "Solução Mágica": O Debate sobre a Equiparação ao Terrorismo
Diante da complexidade do problema, surgem propostas que buscam uma "solução mágica" ou simbólica. Uma delas é a equiparação das facções criminosas a grupos terroristas. A ideia é que, ao aplicar a Lei Antiterrorismo, o Estado teria mais poder e penas mais severas para combater o crime.
No entanto, a maioria dos especialistas e juristas é cética quanto à eficácia dessa medida e alerta para os riscos. A principal distinção é a motivação: o crime organizado busca o lucro, enquanto o terrorismo tem motivações políticas ou ideológicas. Confundir os conceitos poderia desvirtuar a lei antiterrorismo e, pior, abrir brechas para abusos, como o uso indiscriminado da legislação contra movimentos sociais ou moradores de favelas. 
O Brasil já possui uma legislação robusta para combater o crime organizado. O problema não é a falta de leis severas, mas a aplicação ineficaz das leis existentes e a corrupção dentro do próprio sistema de segurança, que vaza informações sobre as operações para as lideranças do crime. A equiparação seria, na visão de muitos, uma medida meramente simbólica que desviaria o foco das reais necessidades do problema.
A proposta do MJ de criação do tipo qualificado de organização criminosa poderia ser um meio-termo entre considerar as ações das facções como crime comum ou terrorismo.
O Longo Prazo: A Necessidade de Políticas Estruturais
A resposta duradoura para o problema do crime organizado e do domínio territorial das facções no Rio de Janeiro não está nas operações de confronto ou em leis simbólicas, mas em estratégias de longo prazo que ataquem as raízes do problema.
Segurança pública deve ser indissociável das políticas sociais. As estratégias de longo prazo incluem:
  1. Urbanização e Presença Estatal: Levar infraestrutura básica, saúde, educação e serviços públicos de qualidade para as comunidades. A ausência do Estado é o principal fator que permite às facções ocuparem o vácuo de poder.
  2. Geração de Renda e Oportunidades: Criar programas de qualificação profissional e incentivar o empreendedorismo local, oferecendo alternativas reais ao aliciamento de jovens pelo crime.
  3. Reestruturação da Polícia: Focar em um modelo de polícia comunitária e de inteligência, que construa confiança e atue na desarticulação financeira das facções, em vez de priorizar o confronto armado.
  4. Reforma do Sistema Prisional: Impedir que as prisões continuem sendo centros de comando do crime organizado e investir em ressocialização efetiva.
A guerra contra o crime organizado nas favelas do Rio de Janeiro só será vencida quando o Estado decidir, de fato, ocupar esses territórios com políticas públicas abrangentes e duradouras, e não apenas com a força das armas.

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O fim da era dos jovens infratores? Por que as internações juvenis estão caindo no Brasil e no mundo

 

Tulio Kahn[1]

Nos últimos sete anos, o número de adolescentes brasileiros internados em unidades socioeducativas despencou. Segundo dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), compilados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), havia 23.424 adolescentes do sexo masculino em regime de internação em 2018. Em 2024, esse número caiu para 11.506 — uma redução de mais de 50% no período. O dado chama atenção não apenas pela magnitude, mas também pela consistência da tendência. A curva é descendente ano após ano, com pequenas oscilações e uma discreta alta em 2024 (+2% em relação ao ano anterior). O ritmo de queda foi mais acentuado entre 2019 e 2021, coincidindo com o período de pandemia, quando o confinamento social e a redução de atividades presenciais influenciaram praticamente todos os indicadores sociais do país.

 



Essa redução, porém, não é um fenômeno isolado do Brasil. Pesquisas internacionais apontam que o envolvimento de jovens em crimes de rua e delitos violentos vem caindo há mais de duas décadas em diversos países — dos Estados Unidos e do Reino Unido à Finlândia, Alemanha e Canadá. O estudo “The International Youth Crime Drop”, publicado em 2025 por Dirk Oberwittler e Robert Svensson, mostra que a maioria das nações desenvolvidas registrou declínio contínuo nas taxas de crimes juvenis desde meados dos anos 1990. Os autores atribuem essa transformação a uma combinação de fatores sociais, culturais e tecnológicos: mudanças nos hábitos de lazer dos jovens, aumento do tempo gasto em atividades virtuais, melhoria da supervisão familiar e da educação, e reformas nos sistemas de justiça juvenil.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o número de jovens em centros de detenção caiu cerca de 75% entre 2000 e 2022, segundo o relatório Youth Justice by the Numbers, do Sentencing Project. O mesmo movimento foi observado no Reino Unido, onde o Youth Justice Board aponta uma redução de 70% nas internações desde 2010. Na Finlândia, pesquisas baseadas em delinquência autorrelatada mostram que o percentual de adolescentes envolvidos em furtos ou brigas graves caiu pela metade entre 1995 e 2020. Na Alemanha e na Escandinávia, as prisões e condenações de jovens também se reduziram de forma consistente. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu relatório sobre violência juvenil, destaca ainda que as taxas de homicídio entre pessoas de 15 a 29 anos diminuíram globalmente entre 2000 e 2019, sobretudo em países de renda média e alta.

A pergunta inevitável é: o que está por trás desse fenômeno?

As interpretações são múltiplas. Alguns pesquisadores falam em mudança geracional de valores, com jovens menos inclinados a comportamentos de risco. Outros enfatizam a “revolução digital”: adolescentes passam hoje muito mais tempo em redes sociais, jogos e interações online, o que reduz a exposição a situações de conflito e à vida nas ruas.

Há também o argumento institucional: sistemas de justiça mais humanizados e políticas de alternativas à internação, que priorizam medidas educativas, mediação e justiça restaurativa em lugar do confinamento. E, finalmente, há fatores estruturais: maior escolarização, envelhecimento demográfico e queda geral da criminalidade violenta em boa parte dos países.

No Brasil, o declínio das internações juvenis coincide com mudanças importantes na legislação e na gestão das medidas socioeducativas. Em 2012, foi aprovada a Lei 12.594, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE). A norma introduziu princípios de educação, reintegração e responsabilização progressiva, estabelecendo que a internação deve ser usada apenas em último caso e por prazo determinado. Desde então, diversos estados passaram a investir em medidas alternativas, como liberdade assistida, prestação de serviços à comunidade e acompanhamento psicossocial. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em seu Relatório sobre a Redução de Adolescentes em Medidas Socioeducativas (2024), afirma que parte da queda no número de internações se deve a mudanças institucionais e à aplicação mais ampla de medidas não privativas de liberdade.

Há também fatores sociais e comportamentais que parecem convergir para o mesmo sentido. O Brasil vive, assim como outros países, uma mudança nos hábitos de lazer e sociabilidade dos jovens. A pesquisa TIC Kids Online Brasil, realizada pelo Comitê Gestor da Internet (CGI.br) e pelo Cetic.br, mostra que 93% das pessoas de 9 a 17 anos usavam a internet em 2023, e 83% tinham perfis em redes sociais. Isso significa que a vida dos adolescentes hoje se passa, em grande medida, no ambiente virtual — onde a interação social é mediada por telas, e não por praças, esquinas ou festas. Embora não haja evidência direta de que isso reduza crimes, a relação é plausível: menos tempo em espaços públicos pode significar menos exposição a conflitos e delitos de rua.

Paralelamente, o Brasil atravessa uma transição demográfica acelerada. A população jovem (de 10 a 19 anos) representa hoje uma fatia menor do total do que há 20 anos. Segundo o IBGE, a idade mediana do brasileiro subiu de 29 anos em 2010 para 35 em 2022. Há, portanto, menos adolescentes em proporção à população, o que naturalmente reduz o contingente potencial de envolvidos em infrações. Outro ponto importante é a mudança educacional. Nos últimos 15 anos, o Brasil registrou avanços discretos, mas consistentes, em indicadores de escolarização. A taxa de distorção idade-série no ensino médio caiu de 22,2% em 2022 para 19,5% em 2023 (INEP). A frequência escolar entre jovens de 15 a 17 anos também aumentou, e programas de transferência de renda e ampliação do ensino médio integral contribuíram para manter adolescentes mais tempo na escola.

A literatura criminológica é unânime em reconhecer a educação como um fator protetivo contra o envolvimento em atividades ilegais. Jovens que permanecem mais tempo na escola têm menos disponibilidade temporal e maior inserção em redes sociais institucionalizadas. Há, ainda, a melhoria gradual da supervisão familiar. A mesma pesquisa TIC Kids Online revela que 61% dos responsáveis afirmam supervisionar o uso de celulares e internet dos filhos, impondo regras e restrições. Esse dado pode parecer trivial, mas traduz um movimento mais amplo de controle social informal, que inclui maior presença dos pais e percepção de risco nas ruas.

Enquanto o número de adolescentes internados cai, o Atlas da Violência 2024, produzido pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostra que o país registrou em 2023 a menor taxa de homicídios dos últimos 11 anos: 21,2 por 100 mil habitantes. O recorte por faixa etária confirma que também há redução de homicídios entre jovens, embora o Brasil ainda ostente índices elevados em comparação internacional. Esse ambiente menos violento tende a se refletir em menor recrutamento juvenil para práticas criminosas, especialmente em periferias urbanas. Com menos homicídios e menos oportunidades no mercado ilícito, há também menos motivos para o jovem ingressar ou permanecer no ciclo infracional.

As evidências, embora fragmentadas, compõem um quadro coerente. O Brasil parece reproduzir, com algum atraso e peculiaridades, a tendência internacional de declínio do crime juvenil e da punição severa de adolescentes infratores.

Mas há também novos desafios. O deslocamento da vida juvenil para o ambiente virtual abre espaço para outras formas de risco — crimes cibernéticos, exploração sexual online, fraudes e cyberbullying. O “declínio da delinquência de rua” não significa o fim da delinquência juvenil; apenas sua transformação. O dado de 2024 — leve alta de 2% nas internações — serve como alerta. Pode ser apenas uma oscilação, mas também pode indicar saturação da tendência de queda. Fatores econômicos, aumento da desigualdade e o enfraquecimento de políticas de prevenção social podem reverter parte dos ganhos recentes.

O desafio, segundo o próprio CNJ, é consolidar o paradigma da socioeducação, garantindo que as medidas alternativas não sejam vistas como “impunidade”, mas como responsabilização inteligente, que evita o estigma e reduz a reincidência. Em paralelo, é preciso compreender que a redução do encarceramento juvenil é apenas um sintoma de mudanças mais amplas na juventude brasileira — mudanças culturais, tecnológicas e institucionais que alteram profundamente a forma como o país lida com seus adolescentes.

Referências

  • Conselho Nacional de Justiça (2024). Relatório sobre a Redução de Adolescentes em Medidas Socioeducativas (2013–2022).
  • IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2024). Atlas da Violência 2024.
  • Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) / Cetic.br (2023). TIC Kids Online Brasil 2023.
  • Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo Escolar 2023 / Indicadores Educacionais.
  • Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Projeções da População 2024.
  • Oberwittler, D.; Svensson, R. (2025). The International Youth Crime Drop: Evidence and Explanations. Max Planck Institute for the Study of Crime, Security and Law.
  • Sentencing Project (2024). Youth Justice by the Numbers.
  • World Health Organization (2023). Youth Violence Fact Sheet.

 



[1] Este artigo foi escrito com ajuda do ChatGPT.  O processo de escrita que desenvolvi funciona da seguinte maneira:  para cada tema crio um novo projeto e  alimento o LLM com dados e textos sobre o tema de interesse. Em seguido, faço vários questionamentos sobre o material, buscando lacunas, hipóteses, referencias teóricas, etc. Ao final do processo, que pode levar dias, peço para o Chat resumir os principais pontos da discussão, destacando questões que considero relevantes. Faço finalmente uma revisão do texto, retirando ou mudando parágrafos e expressões. O processo  de escrita com estas novas ferramentas mudou radicalmente: cabe ao “autor” alimentar o sistema com dados e fontes confiáveis, fazer as perguntas certas, orientar o caminho da conversa e ter bom senso para avaliar e editar partes do texto sugerido. O processo é parecido com o de um orientador acadêmico ( o co-autor) que ajuda seu orientado (LLM) na redação do artigo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

O Dólar Digital do Crime: como o USDT virou a nova fronteira da lavagem de dinheiro

 Nos últimos anos, o Brasil assistiu ao nascimento de uma nova fronteira financeira: o mercado de criptomoedas deixou de ser um território de poucos especialistas para se transformar em uma engrenagem importante da economia digital. Segundo dados da Receita Federal do Brasil, que desde 2019 coleta informações detalhadas sobre operações com criptoativos por meio da Instrução Normativa n.º 1.888, o país registra milhões de transações mensais. Mas, por trás desse crescimento acelerado, há uma transformação silenciosa — e preocupante — no modo como o dinheiro circula fora do sistema bancário tradicional.

Os dados mais recentes revelam um cenário dividido entre moedas com papéis distintos. O BRZ, stablecoin lastreada em reais, é a mais usada em número de operações e serve como moeda doméstica, movimentando pequenas quantias entre investidores, traders e plataformas nacionais. Já o USDT, o chamado Tether, atrelado ao dólar, domina em valor total movimentado. Ele se tornou o “dólar digital” do mundo cripto, usado tanto por investidores legítimos quanto por redes criminosas para enviar valores para fora do país sem passar por bancos. O BUSD, emitido pela Binance, aparece com o maior valor médio por operação, indicando que é o preferido em transações de grande porte e perfil

 institucional.



Essa especialização das moedas digitais mostra que o mercado brasileiro amadureceu, mas também revela brechas. A Instrução Normativa da Receita obriga exchanges brasileiras a informar todas as operações realizadas em suas plataformas e impõe o mesmo dever a pessoas físicas e jurídicas que utilizem corretoras estrangeiras ou façam transações diretas entre si, sempre que o volume mensal ultrapassar trinta mil reais. Com base nessas declarações, é possível mapear o tamanho e o ritmo do mercado. No entanto, as próprias regras deixam espaços onde a luz do Estado não chega. Transações menores que o limite de trinta mil reais, operações em exchanges estrangeiras sem integração com autoridades brasileiras, negociações diretas entre usuários e movimentações em plataformas descentralizadas continuam a escapar do monitoramento.

O problema não está apenas nas falhas da norma, mas na natureza das novas tecnologias. As transações on-chain, feitas diretamente na blockchain, podem saltar entre redes, passar por serviços que misturam fundos, utilizar moedas com camadas de privacidade e nunca tocar uma corretora domiciliada no país. Quando isso acontece, desaparece o elo que permitiria o rastreamento automático. As autoridades só conseguem seguir o rastro quando os valores retornam a exchanges reguladas ou são convertidos em moeda nacional.

Foi nesse vácuo que o crime organizado encontrou um terreno fértil. Durante anos, o Bitcoin foi o ativo preferido de hackers, doleiros e esquemas de pirâmide. Mas à medida que as ferramentas de rastreamento se aprimoraram e as corretoras passaram a exigir identificação de clientes, o Bitcoin deixou de oferecer o anonimato desejado. O trono foi tomado pelo USDT, a stablecoin que vale um dólar e circula livremente em redes como Ethereum, BNB Chain e, sobretudo, Tron. Relatórios recentes da Chainalysis e da TRM Labs mostram que as stablecoins já representam mais de 60% do volume de transações ilícitas no mundo, e o USDT lidera com ampla vantagem.

A preferência tem explicação simples. O Tether oferece estabilidade cambial, liquidez global e custo de transação quase nulo. Ele é aceito em praticamente todas as exchanges e pode ser convertido em reais por meio de plataformas P2P ou mesas OTC em questão de minutos. Na rede Tron, as taxas são tão baixas que grandes quantias podem ser divididas em dezenas de transferências pequenas, dificultando a identificação de padrões suspeitos. O resultado é um sistema eficiente e barato para movimentar recursos entre países, inclusive para atividades ilegais.

No Brasil, as autoridades já identificaram o uso crescente do USDT em operações de câmbio paralelo, pirâmides financeiras e lavagem de dinheiro ligada ao tráfico e ao contrabando. O ativo não é ilegal, mas sua estrutura descentralizada permite que criminosos se aproveitem da falta de controle sobre o fluxo internacional de valores. O BRZ, por outro lado, tem um papel mais local e transparente: por ser lastreado em reais e supervisionado por empresas nacionais, ele funciona como uma ponte entre o sistema bancário e o mundo cripto. Ainda assim, também pode servir de etapa intermediária para mascarar a origem de recursos antes que sejam convertidos em stablecoins internacionais.

O BUSD, que opera sob regulamentação americana, aparece como o ativo das grandes transações. Ele é usado por empresas, fundos e arbitradores que buscam liquidez em dólar sem recorrer ao sistema financeiro tradicional. A concentração de valores altos em poucas operações faz dele um instrumento eficiente para a movimentação de grandes somas, inclusive aquelas que não deveriam atravessar fronteiras sem registro.

Essas três moedas — BRZ, USDT e BUSD — criaram um ecossistema complementar. O BRZ movimenta recursos dentro do país, o USDT exporta capital e o BUSD serve como via de liquidação internacional. Para quem opera dentro da lei, esse sistema é sinônimo de agilidade e integração global. Para quem atua à margem, é a combinação perfeita para lavar dinheiro, evadir divisas e ocultar patrimônio com rapidez e discrição.

Apesar de o Brasil estar à frente de muitos países no monitoramento de criptoativos, as brechas persistem. O limite de trinta mil reais ainda é alto para um mercado digital onde é possível fracionar valores em centenas de pequenas transferências. As operações com exchanges estrangeiras continuam difíceis de rastrear, e as mesas OTC, muitas vezes usadas por investidores legítimos, funcionam sem padronização de controles. Além disso, moedas com foco em privacidade e plataformas descentralizadas escapam completamente das obrigações de reporte.

Especialistas sugerem ajustes simples, mas urgentes: reduzir o limite de reporte, regular formalmente as OTCs, exigir padrões de identificação mais rigorosos e fortalecer a cooperação internacional. Outra medida essencial é integrar os dados das blockchains com informações bancárias e de pagamentos instantâneos, cruzando as duas pontas do sistema financeiro. Só assim será possível acompanhar o dinheiro que entra e sai do universo cripto.

O avanço das criptomoedas é, sem dúvida, uma das maiores inovações financeiras deste século. Elas democratizaram investimentos, abriram caminho para a tokenização de ativos e colocaram o Brasil entre os maiores mercados do mundo. Mas essa mesma tecnologia, quando somada a brechas legais e à lentidão regulatória, também oferece uma nova ferramenta para o crime organizado. O desafio das autoridades é equilibrar vigilância e inovação, garantir transparência sem matar o potencial econômico do setor e impedir que o dólar digital se torne o próximo veículo da economia subterrânea.

Como observou um relatório recente da revista The Economist, o Tether se transformou em “a moeda dos lavadores de dinheiro modernos”. No Brasil, os números da Receita Federal e a ascensão das stablecoins confirmam a tendência: o crime está se sofisticando e aprendendo a falar a língua do blockchain. E, se o país não avançar na regulação e na cooperação internacional, o rastro desse dinheiro pode continuar correndo solto — visível na tela, mas invisível para a lei.

Fontes: Receita Federal do Brasil (IN RFB n.º 1.888/2019), Chainalysis Crypto Crime Report 2024, TRM Labs (Financial Crime in the Blockchain Era, 2024), The Economist (1843 Magazine, 2025), Investopedia (2024), Interpol (Digital Currencies and Organized Crime Briefing, 2023), Cointelegraph (2024).

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Chain Analysis e a investigação de crimes financeiros com Criptomoedas

 


Tulio Kahn

Na imagem abaixo, observamos o grafo de um conjunto de transações (arestas) realizadas com a criptomoeda Zcash entre endereços (nós) de carteiras que detêm a moeda, no dia 29 de setembro último. Estas transações podem ser acompanhadas on-line e é bastante provável que algumas delas envolvam movimentação de recursos oriundos do crime. Muitos crimes digitais exigem valores diretamente em cripto (ransomware, esquemas de pirâmides, golpe do romance, venda de NFTs falsas, pornografia na dark web etc.) ou convertem em cripto os recursos obtidos com a atividade criminal (como tráfico de drogas). Criptomoedas também tem sido utilizadas para financiar o terrorismo e programas governamentais secretos.(Elliptic Typologies, relatório 2024)

 

Rede parcial de transações em Zcash em 29 de setembro



O paradoxal é que estas informações sobre as transações são públicas e podem ser extraídas da blockchain, que mantém os registros públicos de todas as transações já feita em cripto, desde seu início em 2010, quando duas pizzas foram compradas por 10 mil Bitcoins, cujo valor unitário atual é de cerca de 113 mil dólares.

As transações são em verdade pseudoanônimas: não sabemos quem são os detentores das carteiras, mas conseguimos saber de onde a transação se originou e qual seu destino, a trajetória entre origem e destino, o valor transacionado, o volume de transações entre os nós, data e hora da transação, valor da corretagem e uma série de medidas típicas de nós específicos e de redes como um todo: densidade, número de conexões, centralidade, influência, etc. Contas que são abertas e fechadas rapidamente e por onde circulam grande quantidade de criptos, contas de países “suspeitos”, transações que passaram por mixers, moedas que foram trocadas sucessivamente por outras (cross-chain), valores que retornam ao mesmo grupo de carteiras depois desta trajetória confusa, passagens por carteiras já identificadas como suspeitas, etc. etc., despertam um sinal vermelho para os analistas.

 

Com base nas características estruturais da rede e em informações externas complementares, é possível identificar transações suspeitas e agrupamentos de carteiras potencialmente ilícitas — uma abordagem conhecida como blockchain forensics ou chain analysis, que utiliza o blockchain como fonte primária de dados transacionais. O desafio está em usar a morfologia da rede para identificar padrões associados a transações criminosas.

Os criminosos, como na versão analógica, tentam evitar a detecção das transações, valendo-se de uma série de recursos: fracionamento de valores para permanecer abaixo dos limites de alerta, uso de mixers ou tumblers que embaralham transações entre múltiplas carteiras, conversão entre criptomoedas (por exemplo, trocando Bitcoin por Monero, stablecoins ou outros ativos mais opacos), e a utilização de cross-chain bridges e serviços de troca descentralizada (DEX) para ocultar a origem dos fundos. O objetivo é embaralhar os fluxos e permitir o resgate em moeda fiduciária aparentemente “limpa”.

Não é fácil “seguir o dinheiro” neste novo cenário, complicado pela possibilidade de usar criptos menos transparente (Moreno), Exchanges que não seguem as regras de KYC (Conheça seu cliente) e AML. (leis anti máfia), transações “de balcão” usando OCT, transações P2P, depósitos e saques em ATMs cripto e vários outros expedientes. No meio do caminho, estes recursos ilícitos em cripto podem ser lavados através de bets, gift cards, NFTs, skins de games, propriedades digitais no metaverso e diversos ativos digitais cujo comércio é opaco e que podem ser comprados e vendidos em Bitcoin, Etherium, Stablecoins, etc. A passagem por estes ativos no meio do caminho é uma evidência adicional para ser levada em consideração na análise.

A Chain Analysis fornece indicações probabilísticas de possíveis problemas em carteiras, que mereceriam um escrutínio mais detalhado, verificando as justificativas para as transações, a compatibilidade entre os valores transacionados e as atividades no mundo real, IPs das máquinas utilizadas, endereço físico das empresas e dezenas de outros procedimentos investigatórios. Existem sistemas de mercado, como o Ellipitic, que ajudam na identificação destas tipologias e comportamento suspeitos, pois trata-se de uma tarefa hercúlea, proporcional ao volume de recursos ilícitos que transitam na rede.

A verdade é que este tipo de análise dificilmente pode ser executado por departamentos locais de polícia. As bases de dados das transações em cripto são gigantescas, é preciso relacioná-las com listas de endereços de carteiras suspeitas, entender o modus operandi dos criminosos, definir e programar quais são os comportamentos suspeitos, entre outras dificuldades operacionais. É preciso um grande conhecimento sobre finanças, mercado cripto, contabilidade, tecnologia e crime. Mesmo grandes bancos têm dificuldade em monitorar estas transações suspeitas e preferem terceirizar o trabalho de análise para empresas especializadas.

É difícil acreditar que milhares de pequenas fintechs que vem sendo criadas, que mal seguem as regras do KYC (know your customer) e AML (leis anti máfia), consigam monitorar e denunciar atividades suspeitas aos órgãos de inteligência, algo que são obrigadas a fazer apenas recentemente, como os grandes bancos. Mas com acesso a computador e internet, usuários brasileiros podem simplesmente operar através de exchanges internacionais onde a regulação seja ainda menor.

Iniciativas como o Pix, Defy (finanças descentralizadas), bancos digitais, criptomoedas e blockchain abrem as portas para que parcelas da população antes excluídas do sistema financeiro possam ter contas e manipular recursos digitalmente. No caso de países autoritários ou com viés confiscatório, elas permitem transações entre as partes sem a anuência do estado e do sistema financeiro oficial. Mas oferecem também muito mais oportunidades para o crime organizado, evasão fiscal e outros ilícitos.

O grosso da lavagem de dinheiro no Brasil aparentemente ainda é feito de maneira tradicional, através de postos de gasolina, revendedoras de veículos, compra de imóveis, empresas de ônibus, etc. Mas operações recentes como a Carbono Oculto revelaram que o crime organizado já se utiliza de fintechs e de fundos de investimento no sistema financeiro oficial.

Desconfio que ninguém no Brasil saiba estimar quanto destes recursos ilícitos circulam na nossa cara através de criptomoedas. Existem dificuldades intrínsecas ao rastreamento dessas atividades, falta de know how sobre como investigar estas transações, faltam dados e integração entre os diversos atores do poder público e do mercado. Temos uma legislação bastante frouxa ainda sobre fintechs, exchanges estrangeiras que operam no Brasil, bets e demais prestadores de serviços de ativos virtuais (VASPs). Apenas esta semana o Banco Central passou a listar e bloquear endereços PIX envolvidos em fraudes, depois de anos e milhões de reais perdidos em desfalques!!! Temos também ampla utilização de identidades fraudulentas e empresas de fachada. Por outro lado, temos bilhões de origem ilícita que precisam ser lavados.

O relatório da FATF de 2023 reconhece que o Brasil criou um marco legal para ativos virtuais, mas que a implementação e supervisão ainda são incipientes. As autoridades brasileiras admitem o uso crescente de criptoativos por criminosos para ocultar a origem de recursos ilícitos, embora ainda haja carência de dados sistematizados sobre a escala desse fenômeno.(FATF, 2023)[1]

Se os mecanismos preventivos – legais e institucionais - não forem aperfeiçoados, é questão de tempo para o Brasil se tornar o paraíso da cripto criminalidade.

Referências

FINANCIAL ACTION TASK FORCE (FATF). Mutual Evaluation Report – Brazil. Paris: FATF, 2023. p. 180-183.

Preventing Finacial Crimes in Cryptoaasets. Elliptic Tipologies Report, 2024

SCHNOERING, Hugo; VAZIRGIANNIS, Michalis. Bitcoin research with a transaction graph dataset. Scientific Data, v. 12, n. 1, p. 404, 2025.

 



[1] “Brazil has recently introduced legislation establishing a legal framework for Virtual Assets and VASPs. However, implementation and supervision are still developing, and authorities are in the early stages of understanding the ML/TF risks related to virtual assets.” “Authorities acknowledge that criminals increasingly use virtual assets to obscure the origin of illicit funds, but there is limited data and analysis on the extent of such use in Brazil.”

 

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Fintecs: Brechas, Regulação e o Desafio do Combate ao Crime Organizado


Nos últimos anos, as fintechs se consolidaram como uma das maiores inovações no setor financeiro brasileiro. Plataformas digitais de serviços bancários e de crédito ampliaram o acesso da população ao sistema financeiro, reduziram custos de transação e democratizaram produtos antes restritos aos grandes bancos. Essa revolução trouxe inegáveis benefícios à inclusão financeira, mas também abriu novas vulnerabilidades que vêm sendo exploradas por organizações criminosas. No centro dessa discussão está a necessidade de compatibilizar inovação com segurança regulatória, de modo a impedir que a agilidade das fintechs se torne um instrumento para o crime organizado.

O Brasil dispõe de uma das legislações mais avançadas do mundo em prevenção e combate à lavagem de dinheiro. A Lei nº 9.613, de 1998, inaugurou o marco normativo, criando mecanismos de identificação de clientes, manutenção de registros, comunicação de operações suspeitas e estabelecendo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) como órgão central de inteligência financeira. Desde então, uma série de normas complementares foram editadas pelo Banco Central e pelo Conselho Monetário Nacional, como a Resolução CMN nº 4.595/2017 e a Circular Bacen nº 3.978/2020, que detalham os procedimentos obrigatórios de compliance, auditoria e reporte de operações atípicas.

Os bancos tradicionais, submetidos a esse arcabouço regulatório há décadas, desenvolveram estruturas robustas de prevenção. Departamentos inteiros de compliance monitoram diariamente milhões de transações, apoiados por sistemas automatizados que cruzam informações de clientes com bases de dados públicas e privadas. Cada operação é analisada à luz do perfil econômico declarado: depósitos elevados feitos por um estudante sem renda formal, ou remessas sucessivas para países considerados de alto risco, acendem alertas automáticos. As instituições são obrigadas a manter registros por pelo menos cinco anos, comunicar ao COAF operações acima de determinados limites em espécie, além de reportar movimentações consideradas suspeitas, ainda que inferiores a esses valores. Auditorias periódicas do Banco Central e a possibilidade de multas milionárias reforçam o compromisso de que os bancos não sejam usados como canais de ocultação de recursos ilícitos.

Nas fintechs, entretanto, a realidade ainda é diferente. Apesar de também estarem formalmente submetidas à Lei nº 9.613/1998 e às normas do Banco Central, muitas dessas empresas cresceram em velocidade superior à sua capacidade de estruturar mecanismos sofisticados de prevenção. Seu modelo de negócios, baseado em simplicidade de cadastro, baixo custo e facilidade de uso, reduz a fricção para novos clientes, mas também fragiliza os procedimentos de “conheça seu cliente” (KYC). Em muitos casos, bastam documentos básicos para abertura de conta e a checagem é menos rigorosa do que a feita por bancos. Além disso, nem todas dispõem de sistemas avançados de monitoramento automatizado, e a integração com o COAF é irregular e pouco padronizada. O resultado é que criminosos encontram nas fintechs um terreno fértil para movimentar valores de forma pulverizada, aproveitando-se de lacunas tecnológicas e da ausência de fiscalização sistemática.

As operações atípicas que precisam ser detectadas por bancos e fintechs incluem um leque amplo de comportamentos suspeitos. Entre os exemplos mais recorrentes estão o fracionamento de depósitos ou transferências, quando valores elevados são divididos em múltiplas operações menores para escapar de limites de reporte automático. Outra prática é a movimentação incompatível com a renda declarada, como a de um beneficiário de programas sociais que, de repente, passa a realizar transações de centenas de milhares de reais. Também chamam atenção as chamadas contas de “laranjas”, em nome de idosos, desempregados ou pessoas sem perfil econômico, mas que movimentam grandes quantias. Transações internacionais, sobretudo com países considerados paraísos fiscais ou com baixa cooperação internacional, representam outro foco de risco. Há ainda operações circulares, em que valores transitam rapidamente entre várias contas antes de retornar à origem, sem justificativa comercial aparente. E, mais recentemente, a aquisição recorrente de criptoativos sem lastro econômico tornou-se uma forma comum de transformar dinheiro em ativo digital de difícil rastreamento.

Enquanto os bancos já desenvolveram protocolos e tecnologia capazes de identificar a maioria desses padrões, as fintechs ainda caminham para atingir esse nível de sofisticação. Algumas grandes empresas do setor já avançam na implementação de inteligência artificial para detectar padrões atípicos, mas a adoção não é uniforme. Pequenas fintechs, em particular, podem se tornar canais desprotegidos diante de organizações criminosas que atuam de forma cada vez mais globalizada e digitalizada.

Essa vulnerabilidade não é apenas um problema setorial, mas uma ameaça à integridade do sistema financeiro brasileiro. O uso das fintechs pelo crime organizado não só dificulta investigações, como também compromete a credibilidade do ecossistema de inovação. O risco é que, sem uma resposta adequada, o mesmo instrumento que promove inclusão financeira acabe servindo de ferramenta para o fortalecimento de organizações criminosas que exploram lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, contrabando e corrupção.

Por isso, cresce a percepção entre especialistas de que seria necessário avançar em uma regulação mais específica para as fintechs, capaz de equilibrar inovação com controle. Tal regulação deveria aproximar as exigências dessas empresas às já impostas aos bancos tradicionais, garantindo padronização mínima em KYC, monitoramento transacional e reporte automático ao COAF. Além disso, é crucial criar incentivos para a adoção de tecnologias de detecção de anomalias e mecanismos de auditoria independente, que reforcem a transparência e a responsabilidade do setor.

A experiência internacional demonstra que a prevenção à lavagem de dinheiro precisa ser constantemente atualizada. Grupos criminosos são criativos e rapidamente exploram lacunas em novos mercados financeiros, como já ocorreu com moedas virtuais e plataformas digitais em outras jurisdições. No Brasil, não será diferente: quanto mais rápido crescerem as fintechs, mais urgente será a criação de um marco regulatório específico que proteja o sistema financeiro sem inibir a inovação.

Em suma, os bancos tradicionais já operam com padrões elevados de compliance, fruto de décadas de regulação e experiência, enquanto as fintechs ainda apresentam fragilidades que podem ser exploradas pelo crime organizado. As operações suspeitas já são conhecidas e bem mapeadas, mas é necessário garantir que todas as instituições financeiras digitais tenham meios efetivos para detectá-las e reportá-las. O futuro do setor dependerá da capacidade de alinhar modernidade e segurança, evitando que a inovação seja sequestrada pela criminalidade organizada. O desafio está posto: reforçar os mecanismos de controle no ambiente digital é indispensável para blindar o sistema financeiro brasileiro e assegurar que as fintechs cumpram seu papel de inclusão sem se converter em um elo frágil da luta contra a lavagem de dinheiro.


terça-feira, 23 de setembro de 2025

Uma nova agência para reagir ao crime organizado

 


Tulio Kahn

O crime organizado já não é mais uma ameaça difusa no Brasil: é uma realidade concreta que ocupa territórios, controla economias ilícitas, infiltra-se no Estado e há anos comanda crimes de dentro dos presídios. Facções como o PCC, o Comando Vermelho e dezenas de grupos regionais movimentam bilhões por ano, corrompem agentes públicos e desafiam a autoridade do Estado. O recente assassinato do ex-delegado Rui Ferraz Fontes, com quem convivi na SSP/SP, revela a fragilidade da nossa estrutura de combate ao crime organizado.

O modelo atual é insuficiente. A Polícia Federal cumpre um papel essencial, mas está sobrecarregada. A PEC da Segurança em discussão no Congresso pode piorar ainda mais esta situação. A PF precisa cuidar de imigração, emissão de passaportes, crimes ambientais, fraudes cibernéticas, tráfico de drogas, corrupção e uma infinidade de outras atribuições. Falta foco exclusivo nas organizações criminosas. É generalista e padece do mesmo problema que o Ministério da Justiça. A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) coleta informações, mas não tem poder investigativo. A Secretaria Nacional de Políticas Penais administra os presídios federais, mas não consegue evitar que líderes sigam mandando de dentro das celas. A SENAD cuida da gestão de bens apreendidos, mas sem ligação direta com operações. A Receita Federal, o COAF e o Banco Central sabem onde circula o dinheiro sujo, mas não atuam de forma integrada com as forças policiais. Faltam bancos de dados sobre organizações, membros, faturamento, modus operandi, território de atuação e outras informações necessárias para planejar o combate ao crime organizado.

O crime, em contrapartida, opera em rede. Conecta doleiros, empresários, traficantes e criminosos de colarinho branco em uma teia que cruza fronteiras. O Estado brasileiro, fragmentado, reage sempre um passo atrás. Recentemente o Ministério da Justiça aventou a possibilidade de criar uma agência nacional anti máfia mas a iniciativa, apoiada por muitos especialistas, não seguiu em frente.

Outros países enfrentaram dilemas semelhantes e decidiram criar agências nacionais especializadas. No Reino Unido, a National Crime Agency (NCA) funciona como um “FBI britânico”, reunindo policiais e especialistas civis em tecnologia e finanças. Na Itália, a Direzione Investigativa Antimafia (DIA), com pouco mais de 1.300 agentes, mostrou que não é preciso uma força gigante, mas sim foco e poderes claros. Sua arma mais eficaz foi o confisco patrimonial, retirando das máfias os bens e o prestígio que sustentavam sua influência. Na Alemanha, o Bundeskriminalamt investe em inteligência e cooperação internacional. A Austrália criou task forces permanentes com policiais, militares e auditores. Há lições claras: agências especializadas devem ser autônomas, ter foco exclusivo no crime organizado, integrar diferentes órgãos e sufocar financeiramente as facções. A operação carbono oculto seguiu em parte este modelo de atuação interinstitucional, mas como ação pontual e voluntarista, não by design, como deveria ser.

É nesse espírito que defendemos a proposta de criação de uma Agência Nacional de Combate ao Crime Organizado (ANCCO), com as seguintes linhas gerais. Seria uma autarquia de regime especial, vinculada ao Ministério da Justiça (melhor ainda se dentro de um ministério exclusivo para segurança), mas dotada de autonomia administrativa, orçamentária e técnica. Sua missão seria coordenar e centralizar o combate às organizações criminosas, com foco em inteligência, finanças e integração institucional.

A Agência teria que contar com um número suficiente de servidores próprios e emprestados para formar equipes de investigadores, analistas técnicos e gestores administrativos. Estamos falando em alguns milhares de servidores e não de meia dúzia de gatos pingados que existem hoje em órgão importantíssimos, mas subdimensionado, como o COAF. Sua lógica não é ser mais uma polícia ostensiva, mas sim um centro estratégico capaz de acionar, quando necessário, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Força Nacional e as Polícias estaduais.

A agência reuniria em sua estrutura departamentos de Investigação e Operações Especiais, Inteligência e Tecnologia, Recuperação de Ativos e Gestão Patrimonial, Inteligência Prisional, Cooperação Internacional, Prevenção e Prospectiva Criminal, além da área de Administração e Finanças. ABIN, SENAPPEN, SENAD, Receita Federal, COAF, Banco Central, CGU e Ministério Público Federal teriam assento em um Conselho Inter forças e Interagências, garantindo integração e transparência.

Seus poderes seriam específicos e controlados: interceptar comunicações, infiltrar agentes, conduzir operações controladas, acessar dados bancários e fiscais, rastrear criptomoedas e propor confisco alargado de bens. Sempre mediante ordem judicial, em respeito às garantias constitucionais.

Para evitar abusos, a Agência teria mecanismos de controle democrático. Relatórios anuais públicos de resultados, relatórios sigilosos a Comissão de Segurança do Congresso, auditoria do TCU e da CGU, supervisão do Ministério Público Federal e uma Ouvidoria independente para receber denúncias.

A inovação é reunir em uma única agência o que hoje está disperso, seguindo as boas práticas internacionais. A inteligência estratégica da ABIN, o monitoramento prisional da SENAPPEN, a gestão patrimonial da SENAD, o braço financeiro da Receita, COAF e Banco Central, a força policial da PF, PRF e FNSP, e o controle da CGU, MPF e do TCU.

O Brasil precisa parar de combater o crime organizado com um mosaico de instituições que não se falam. Precisamos de um Estado em rede para enfrentar o crime em rede. A ANCCO, enxuta, eficiente e parcialmente blindada contra pressões políticas, pode ser o primeiro passo para reverter o atual jogo em que o crime está sempre à frente. O crime organizado já mostrou sua força. Passou a hora de o Estado brasileiro mostrar a sua.

 

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