sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Pesquisa Perfil das Polícias 2019


Desde 2001 a Secretaria Nacional de Segurança Pública realiza a pesquisa Perfil das Polícias, solicitando a todos os Estados o preenchimento de um questionário bastante completo com informações sobre a PM, PC – incluindo ai a Polícia Técnica - e Corpo de Bombeiros.

Os tópicos incluem informações sobre efetivos, formação, remuneração, armas, equipamentos, estrutura organizacional e dezenas de outros. Apesar da inconsistência eventual de algumas informações, trata-se de um material rico e pouco explorado. A título de exemplificação do que pode ser extraído, analiso brevemente a questão dos efetivos das Polícias Militares nos Estados e suas subdivisões hierárquicas.

As Polícias Militares estaduais estão organizadas em duas carreiras distintas – praças e oficiais – cada qual subdividida em 6 graus hierárquicos. (excluindo ainda os alunos e cadetes). Existem vantagens e desvantagens nesta forma de organização: com vários degraus, as passagens de uma categoria à outra são mais rápidas e graduais e argumenta-se que estimulam a progressão, evitando a permanência muito prolongada num mesmo posto. Por outro lado, do ponto de vista das funções executadas e qualificações exigidas, são mínimas as diferenças entre soldados e cabos, capitães e majores, tenentes-coronéis e coronéis, de modo que existem projetos em favor da junção de algumas categorias, de forma a reduzir a hierarquia de 12 para algo como 6 postos. Vou deixar a análise das vantagens e desvantagens teóricas de cada gradação para os experts em administração e recursos humanos, até porque meu modelo predileto é de uma polícia única, de ciclo completo, com uma só carreira, bem distante do modelo atual, independente do número de postos.

 

 

 


 

 Segundo os dados da edição de 2019, as PMs tem hoje cerca de 398 mil policiais no país. Com uma hierarquia em forma de funil, o esperado é que a cada progressão reste um número menor de efetivos, quando comparado ao posto anterior. Nem sempre este é caso: observe-se que a quantidade total de 2º tenentes é menor do que a de 1º tenentes. O número destes, por sua vez, é praticamente igual ao número de Capitães. Embora isto varie conforme o Estado, o resultado é que o número de Capitães é bem superior ao de 2º tenentes, ao contrário do que se esperaria.

É provável que isto ocorra pelo represamento na passagem de Capitão para Major, que exige, geralmente, a realização de um curso especial para a progressão, onde nem sempre há vagas ou interesse de todos na progressão. Como apenas 10% dos Capitães chegarão ao topo da carreira, é provável que exista um desincentivo à progressão, chegada a esta etapa.

A análise sugere também que existem diferenças organizacionais entre as “grandes” e “pequenas” polícias e adianto desde já que o critério classificatório foi arbitrário, ficando no grupo das “grandes” as PMs de SP, RJ, MG, BA, CE, PR, PE e RS e as demais no outro grupo.

 

 



A porcentagem de Coronéis tende a ser menor nas PMs grandes, com exceção do RJ e PE. Na verdade isto vale para quase todo o corpo de oficiais, com exceção dos 1º tenentes. Ao contrário, a porcentagem de Cabos e Soldados tende a ser muito maior nas grandes organizações: os Soldados representam 43,7% do efetivo nas PMs grandes, mas apenas 26,9% do efetivo nas pequenas. Note-se que nas três maiores policiais (SP, RJ e MG), o grupo mais frequente é o de Cabos enquanto nas demais grandes é o de Soldados.

Por algum motivo que não me é claro, a porcentagem de 3º Sargentos é bem maior nas pequenas organizações.

Dentro do grupo das pequenas organizações, os menores efetivos encontram-se na Região Norte (TO, AP, AC e RR) e o subgrupo parece compartilhar algumas características distintivas: relativamente poucos soldados e cabos e grande porcentagem da tropa distribuída pelas hierarquias intermediárias, entre 2º Sargentos e Capitães. Chama a atenção também a grande porcentagem de Coronéis em RO, AP e RR.

Em suma, o Brasil é um país bastante diverso em termos econômicos e sociais e é natural que as organizações policiais se adaptem aos contextos locais. E é esperado também que o tamanho absoluto da tropa influencie a distribuição dos efetivos: é relativamente mais fácil para o Estado renumerar uma proporção maior de oficiais nas organizações menores. O fato é que existe alguma diversidade nos modos como as PMs se organizaram nos Estados e não existe um padrão unificado, como nas Forças Armadas, que é nacional.

Outra forma de olhar esta diversidade é através da razão entre a quantidade de efetivo num determinado posto e a quantidade de efetivo no posto imediatamente abaixo. Como instituição hierarquizada em que existe um funil seletivo, o esperado, como dito, é que existam sempre menos efetivos no posto “acima” (ou mais no posto “abaixo”), pois é natural que o número de “gerentes” seja inferior ao número de “gerenciados”, que são os executores das políticas que vem de cima. Todavia, como vimos acima, as diferenças percentuais de efetivo em cada posto acabam provocando algumas distorções. Algumas promoções são rápidas e outras demoradas; algumas exigem concursos e provas, outras são automáticas. Algumas policiais realizam concursos com frequência e outras demoram. Todas estes fatores acabam influenciando a quantidade de policiais em cada posto.

Na tabela seguinte trazemos as razões posto acima/posto abaixo. Quando a razão é superior a 1 significa que há mais efetivos abaixo do que acima, o que seria natural encontrar numa organização hierárquica. Assim, por exemplo, há 3,9 vezes mais Tenente Coronéis do que Coronéis em SP. Inversamente, uma razão menor do que 1 indica um padrão oposto ao esperado. Novamente ilustrando, a tabela mostra que existem apenas 0,7 Soldados para cada Cabo em São Paulo. As três maiores polícias repetem este padrão, assim como várias das pequenas organizações. Trata-se de um bom argumento para unificar as duas categorias, uma vez que muitas PMs já tem mais Cabos do que Soldados.

Entre os oficiais, fenômeno semelhante parece ocorrer com os 2º e 1º Tenentes: em muitas polícias – especialmente nas grandes - existem mais 2º Tenentes do que 1º Tenentes e, em especial nas pequenas, mais 1º Tenentes do que Capitães. Novamente aqui, talvez fosse o caso de aglutinar estes postos, pois, como fácil observar, existem mais caciques do que índios em algumas destas tribos.

 


Por uma série de motivos, a velocidade da progressão entre os diferentes postos é variável, fazendo com que, em determinados períodos, haja represamentos em alguns níveis, fazendo com que tenhamos mais “gerentes” do que “gerenciados”. Entre outras consequências, isto pode fazer com que alguns profissionais tenham formalmente um posto, recebam por ele, mas na prática acabem exercendo funções de nível inferior, pois há excessos de profissionais naquele nível hierárquico e carências abaixo. Pode também acontecer o contrário, com policiais assumindo tarefas de hierarquia superior, mesmo sem o posto ou salário correspondente.

Como os salários são baixos em alguns Estados, a promoção hierárquica facilitada pode ser também uma forma de compensação salarial ou simbólica. Corrige-se a defasagem salarial, mas cria-se um imbróglio na cadeia de comando e na razão de ser da hierarquia.

Existem outras distorções na organização das polícias que são muito mais sérias. Em comparação com o setor privado, os Policiais Militares se aposentam demasiado cedo e ficam onerando o orçamento estadual por décadas. Em muitos Estados as aposentadorias policiais estão hoje entre as principais causas do déficit público. Quem começa como praça não ascende aos postos superiores, não obstante as exigências escolares serem as mesmas para o ingresso na(s) carreira(s). Não existe possibilidade de entrada “lateral” (exceto para o quadro de saúde), como nas polícias de alguns países desenvolvidos, que integram aos quadros da polícia profissionais já formados em cursos superiores de outras áreas. A formação acadêmica é demasiado isolada da sociedade. O sistema de promoção sujeito a critérios subjetivos em algumas etapas. As diferenças salariais entre os menores e maiores postos demasiado acentuadas, etc. Nas Polícias Civis são outros tantos problemas que examinaremos em outra ocasião.

A intenção aqui foi explorar rapidamente e mostrar a riqueza da pesquisa Perfil das Polícias, que conta com centenas de variáveis e uma série histórica razoável para os padrões brasileiros. Raramente os dados são utilizados em artigos e teses acadêmicas. E apesar do esforço de coleta, é igualmente raro que os dados sejam utilizados pela Senasp para encontrar parâmetros que poderiam a ajudar os gestores de segurança estaduais a repensar a organização e outros aspectos ligados à carreira policial.

Quando passei pela Senasp em 2002 a pesquisa estava em sua segunda edição e a ideia é que ela servisse de benchmark para diversos temas: como deve ser o ingresso? Que cursos e qual carga horária para a formação? Quais equipamentos e veículos utilizar?  Quantos batalhões e companhia e onde devem estar localizados? Qual o perfil demográfico do efetivo? Qual o orçamento e despesas para cada área?  Qual o grau de informatização das organizações? Quantidade e tipo de frota? Renumeração? Assistência psicológica e de saúde?  Estamos falando de um questionário com cerca de 1500 perguntas, apenas no que se refere às PMs.

O artigo é ligeiro ao tratar do problema das hierarquias por alguém que não é especialista na área. Mas espero que ao menos tenha o mérito de despertar a curiosidade de policiais e estudiosos para esta interessante fonte de informações. Sei que fazer a pesquisa dá muito trabalho e os policiais responderiam com muito mais rigor se vissem que o trabalho está sendo aproveitado para alguma coisa!

 

 


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