segunda-feira, 23 de julho de 2012

VÍTIMAS DO CRIME - A CICATRIZ DA ALMA - VEJA

Estamos acostumados a associar a criminalidade à pobreza. O raciocínio faz sentido se estamos falando de crimes contra a pessoa, como os homicídios: eles tendem a ocorrer nas áreas mais pobres e periféricas dos grandes centros urbanos, onde há elevado consumo de álcool, disponibilidade de armas, poucas opções de lazer e uma cultura violenta de resolução de conflitos. Atingem em especial a população masculina jovem, pobre, não branca e pouco escolarizada. Mas os efeitos da pobreza sobre a criminalidade são menos óbvios quando se trata dos crimes contra o patrimônio, como roubos e furtos. Por um lado, com um aumento geral da renda e do emprego, há uma diminuição da propensão ao crime, já que outras opções, dentro da lei, estão muito mais ao alcance da mão. No entanto, sob outra ótica, o aumento da renda geralmente implica maior disponibilidade de bens. Cresce a oferta de objetos cobiçados, como automóveis, celulares e relógios. Em outras palavras, há mais material na praça para ser roubado. O efeito do crescimento econômico sobre os crimes patrimoniais pode ser ainda maior se esse crescimento for acelerado e desigual, como é o caso brasileiro recente.

O economista Gary Becker, ganhador do Nobel de 1992, mostrou já nos anos 1970 como criminosos levam em conta as oportunidades no momento de optar pelo mercado legal ou ilegal, calculando os benefícios da ação criminosa em comparação com as probabilidades de ser detectado e punido. Assim, onde a punição é falha, como no Brasil, faz mais sentido para muitas pessoas optar pelo crime. Becker mostrou também a correlação entre renda média local e crimes patrimoniais, situação que se comprova cotidianamente no Brasil: as estatísticas criminais e as pesquisas de vitimização corroboram que são as áreas mais ricas e as pessoas mais abastadas e escolarizadas as maiores vítimas de furtos e roubos. Não é preciso ser um criminoso genial para concluir que é aí que se encontram as maiores oportunidades.

Essa mesma lógica se aplica ao nível de desenvolvimento dos países, ainda que de forma não linear: as maiores taxas dos chamados crimes contra o patrimônio não se encontram nos países muito pobres nem nos muito ricos. São precisamente as nações de nível intermediário de desenvolvimento econômico, como o Brasil, que sofrem com os maiores índices de criminalidade do planeta. Isso se deve a uma conjunção desfavorável de fatores: crescimento rápido e desorganizado das cidades, baixa expectativa de punição, grande oferta de bens subtraíveis, elevada desigualdade social, alto consumo de álcool e drogas e ausência de freios morais, entre outros. Isso significa que, nesse estágio intermediário, países como o Brasil convivem ao mesmo tempo tanto com crimes associados à pobreza – como as elevadas taxas de homicídio – quanto com os derivados da riqueza – como com roubos e furtos.

Mas já existem evidências em alguns estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, de que o Brasil em algumas décadas deve assumir um perfil criminal de país desenvolvido. Primeiro, com a diminuição dos níveis de homicídio. E, num segundo momento, com uma queda nos roubos e furtos, em razão da redução da desigualdade social, da proporção de jovens no total da população, do ritmo de urbanização desorganizada e do grau de impunidade. É o que sugerem as estatísticas internacionais, quando comparamos taxas criminais entre os diversos grupos de países. Enquanto essa mudança de patamar não acontece, o jeito é aprimorar e modernizar as instituições de justiça criminal brasileiras, cujo desempenho ainda deixa muito a desejar.

Tulio Kahn é doutorem ciência política pela USP e foi diretor do Departamento Nacional de Segurança Pública no Ministério da Justiça durante o governo Fernando Henrique Cardoso

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