terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Violência contra homossexuais no Brasil

 A população homossexual é alvo frequente de diferentes tipos de violência no Brasil, tanto devido à intolerância social com relação ao homossexualismo como à maior exposição ao risco, uma vez que nessa população vitimada estão incluídos profissionais do sexo e práticas sexuais com parceiros eventuais e desconhecidos, entre outros fatores de risco.

Matérias jornalísticas e relatórios produzidos por grupos ativistas alertam que o Brasil pode ser o país mais perigoso do mundo para os homossexuais. A percepção de violência exacerbada, por um lado, fez avançar no país as práticas preventivas, o reconhecimento público do problema e a nova legislação contra a homofobia, aprovada em 2019. Mas por outro lado afeta a qualidade de vida desta parcela da população e traz inúmeros outros inconvenientes, como a diminuição do turismo ou atividades nos eventos ou estabelecimentos voltados para este público, para citar apenas alguns.

Trata-se, contudo, de uma afirmação difícil de ser atestada em razão da falta de registros oficiais sobre o problema no Brasil e na maioria dos países, além de diferenças metodológicas e conceituais entre os poucos levantamentos existentes.

No quadro abaixo trazemos algumas estimativas anuais de homicídios contra homossexuais (conceito que pode incluir diferentes subgrupos) nos anos recentes. Tanto o Dossiê de Mortes e Violências quanto o relatório do Grupo Gay da Bahia utilizam como fontes de dados os jornais, mídias sociais, relatos públicos e outras fontes abertas de dados para identificar casos. O Atlas da Violência do Ipea, por sua vez, utiliza dados do serviço Disque 100, do governo federal, que coleta denúncias sobre diferentes tipos de violência. Apenas recentemente o sistema de justiça criminal incluiu, em alguns Estados, a orientação sexual das vítimas e autores nos registros administrativos, de modo que inexiste uma base nacional de dados – seja na área de segurança, seja na saúde – que permita calcular a incidência do fenômeno.

Estimativa de homossexuais mortos violentamente, por ano

A estimativa do Disque 100 é sistematicamente menor do que a feita pelo terceiro setor e ambas são certamente subnotificadas, uma vez que é raro que notícias ou denúncias tragam detalhes sobre a orientação sexual das vítimas, principalmente quando a própria vítima ocultava essa condição. Assim, apenas os casos mais dramáticos e onde as vítimas assumiam a sua condição sexual chegam ao conhecimento público e daí aos relatórios. De todo modo, em média as estimativas vão de 150 a 313 casos por ano, sendo 235 casos anuais a média que utilizaremos aqui para efeito de cálculo das taxas.

Note-se que as fontes não afirmam que estas mortes ocorreram por motivações homofóbicas ou transfóbicas, algo ainda mais difícil de corroborar, mas apenas que as vítimas eram homossexuais e sofreram mortes violentas e intencionais. A questão da motivação dos homicídios é complexa, como discutimos em outros artigos, e boa parte delas é simplesmente desconhecida. Trata-se de uma dificuldade, alias compartilhada por outros fenômenos criminais, como o feminicídio, ou as mortes atribuíveis ao racismo em geral. Apenas uma investigação demorada e detalhada pode levantar evidências sobre a motivação dos homicídios e matérias de jornal, denúncias e boletins de ocorrência raramente trazem estas informações.

Acreditamos que as fontes utilizadas não permitem uma estimativa fidedigna da quantidade de homossexuais mortos no País e menos ainda para inferir quantos se devem à motivação homofóbica. Elas são úteis para chamar a atenção da sociedade para o problema da violência contra homossexuais e para levantar características dos casos como sexo, idade, meio utilizado e outras características associadas a estas mortes. Mas a se fiar nestes levantamentos, as mortes de homossexuais representariam somente 0,6% das cerca de 40 mil mortes violentas anuais no Brasil, porcentagem pequena e que, provavelmente, como discutido, é subestimada.

Como o Brasil tem a 7ª maior população do mundo e o maior número absoluto de homicídios, é natural que em termos absolutos sejamos o país que mais mata homossexuais, mulheres, negros e qualquer outro subgrupo que imaginarmos. É nos números absolutos que normalmente os informes se baseiam para afirmar que o Brasil é o país mais perigoso para homossexuais. Isso não significa, sem pretender minimizar o problema, que seja o lugar mais arriscado.

Risco é um conceito epidemiológico relativo e para sua estimativa precisamos de um nominador (homicídios de homossexuais) e de um denominador (população homossexual) para estimar as taxas usando a população de base. E aqui nos defrontamos com outra grande dificuldade, que é estimar o tamanho dessa população base. Os problemas vão desde o conceito de homossexualidade e seus diferentes subgrupos e gradações, subnotificação em razão da sensibilidade do tema e metodologias de levantamento, que permitem maior ou menor anonimato das respostas. Estas diferenças explicam em parte as grandes diferenças entre as estimativas existentes.

O quadro abaixo traz algumas estimativas recentes sobre o tamanho da população homossexual no Brasil, todas elas com base em pesquisas amostrais probabilísticas nacionais, utilizando diferentes formas de redação e abordagens. Existem graduações de homossexualidade, que vão desde sentir atração por pessoas de mesmo sexo até praticar sexo exclusivamente com elas.

E as estimativas se alteram, obviamente, com a forma como a questão é formulada. Também se alteram dependendo de se a pesquisa foi feita eletronicamente ou em papel, com ou sem presença do entrevistador e outras situações que garantem o anonimato.

De todo modo, apenas a título de ilustração, os resultados incluem deste uma estimativa conservadora feita pelo IBGE, em 2019, que encontrou apenas 1,8% de homossexuais autodeclarados no País (número que o próprio IBGE reconhece como subestimado, embora similar a de outros países) até uma pesquisa da Unesp, de 2022, na qual 12% dos entrevistados se declararam homossexuais. As estimativas dependem também da opção de incluir os que declaram “não saber” ou “não quiseram responder” à questão. Se criarmos uma categoria “não heterossexual”, somando estas categorias, a estimativa do IBGE, por exemplo, sobe para 5,2% da população.

Estimativas da população homossexual no Brasil

No exercício acima, estimamos as taxas de homicídio por 100 mil, considerando uma média de 235 mortes e as diferentes estimativas de população. Como é possível notar, quanto maior a estimativa de população homossexual, menor a taxa. Muito simplificadamente, assumindo que 7,6% da população seja homossexual, teríamos uma taxa de 1,5:100 mil, bastante inferior à taxa nacional, em torno de 23:100 mil.

Vendo de outro modo – igualmente simplista, pois a demografia da população homossexual não se assemelha à da população em geral – se temos cerca de 40 mil homicídios no Brasil e os homossexuais representam 7,6% da população, deveríamos esperar algo em torno de 3 mil homossexuais mortos. Os relatórios, contudo, conseguem identificar apenas uma pequena parte destes casos. O que queremos sugerir é que alguma coisa parece errada aqui: ou na quantidade de mortes, seriamente subestimada, ou no tamanho da população homossexual – e provavelmente em ambas.

As estimativas aqui são um exercício e não tem nenhuma pretensão à validade, e penso que todos os levantamentos sobre a questão, no estágio atual, tampouco deveriam ter. A intenção, como sempre, é colocar as coisas nas suas devidas proporções, com base nas evidências disponíveis e fazer uma crítica metodológica construtiva sobre como esses números são obtidos.

Espero que tenha ficado clara a necessidade de aperfeiçoar os registros públicos e as metodologias utilizadas nos levantamentos: as estimativas atuais sobre mortes de homossexuais, motivação homofóbica e tamanho da população homossexual são precárias. Levando em consideração os dados atuais, não conseguimos estimar a gravidade do problema. E sem boas estimativas, como sempre, não conseguimos formular boas políticas públicas.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Brasil carece de sistema eficiente de inteligência

A história está cheia de exemplos de falhas catastróficas dos serviços de inteligência antes de atentados, guerras ou tentativas de golpe. Apesar de todo aparato tecnológico e bilhões investidos em inteligência, os Estados Unidos foram incapazes de prever os atentados da Al Qaeda, em 11 de setembro de 2001. Israel não detectou a movimentação do Hamas antes dos atentados de 7 de outubro – apesar de alertas do Egito – e também não anteviu a invasão do Egito e Síria na Guerra de Yom Kipur, em outubro de 1973, apesar de alguns indícios prévios. Tampouco os serviços de segurança brasileiros conseguiram se antecipar às invasões na Esplanada dos Ministérios, em 8 de janeiro deste ano, ou os atentados do PCC, em 2006, em São Paulo.

 É claro que os órgãos de segurança já conseguiram se antecipar e frustrar inúmeros ataques e atentados, muitos dos quais jamais saberemos – e é por isso que todos os países investem em estruturas de inteligência, em especial para lidar com o terrorismo, crime organizado e potências inimigas. Mas estes eventos simbólicos ilustram as centenas de falhas a que estão sujeitos os órgãos de segurança e as consequências catastróficas destes erros. Estamos citando aqui grandes “operações”, que certamente deixaram rastros de seu planejamento, mas que apenas posteriormente vieram à luz.

 Eventos desta magnitude não são como um raio em dia de céu azul: demandam recursos e tempo para serem planejados e quase sempre deixam pistas, mas que não foram corretamente interpretadas, em tempo hábil, pelos responsáveis pela segurança. Os motivos das falhas podem ser muitos: ausência de uma estrutura eficiente de inteligência, falta de uma doutrina de inteligência, excesso de confiança na tecnologia, falta de coordenação entre órgãos responsáveis, erros de avaliação, ausência de informações ou às vezes excesso de informações, para mencionar somente alguns. Existem, assim, diversos itens que precisam ser revistos e aperfeiçoados, de investimentos a treinamentos, o eventual retorno a algumas práticas clássicas de inteligência baseadas em fontes humanas (humanit), o estabelecimento de uma rede eficiente de trocas de informações, aperfeiçoamento da legislação antiterrorista etc. 

Estes fracassos servem de lições, duras, para rever procedimentos e estratégias e a comunidade de inteligência de todo o mundo, neste momento, se debruça sobre eles. Dado o baixo padrão de eficiência demonstrado pelas polícias e forças armadas brasileiras para lidar com o crime organizado, contrabando, tráfico de drogas e armas, migração ilegal e controle de fronteiras terrestres, alguém acredita que o setor de inteligência brasileiro teria capacidade para impedir atentados terroristas como os perpetrados contra a Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) e embaixada israelense em Buenos Aires, nos anos 1990, caso ocorressem no Brasil? É sabido que parte do financiamento e planejamento logístico destes atentados passou pela embaixada iraniana em Brasília e que na região da tríplice fronteira existe uma conexão entre o crime organizado e membros de grupos terroristas como o Hamas e o Hezbolah. 

Para ficar apenas neste caso célebre, em 1992 as investigações revelaram que o coordenador das operações terroristas na Argentina agiu a partir de Foz do Iguaçu. fazendo uso de um telefone atribuído a um certo XXXXXXX (Nisman & Burgos 2013b, p. 9). Esse mesmo número de telefone foi conectado a várias ligações telefônicas feitas pelo grupo operacional do atentado (Nisman & Burgos 2013a, p. 25 e p. 565). O relatório aponta ainda que o attaché Civil da Embaixada do Irã em Brasília entre 1991 e 1993, Jaffar Saadat Ahmad-Nia, era um agente da inteligência iraniana (VEVAK). Segundo depoimentos constantes do relatório, o. Jaffar teria ido à Argentina para ajudar a resolver potenciais problemas logísticos do grupo operacional para os atentados. De qualquer forma, independentemente da acusação, os registros demonstram que Jaffar entrou na Argentina no dia anterior aos ataques e retornou no dia posterior ao ataque à embaixada Israelense em Buenos Aires (Nisman & Burgos 2013b, p. 27). Existem inúmeros registros de atividades, desde a passagem de Moshen Rabbani pelas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, em 1984. Tanto a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) quanto a Polícia Federal acompanharam, em 1995, a presença de Khalid Sheikh Mohammed no Brasil. Preso em Guantánamo, ele ficou conhecido como a mente por trás dos ataques de 11 de setembro e esteve ligado a vários ataques da Al Qaeda entre 1993 e 2003. De acordo com a famosa 9/11 Commission Report, Mohammed esteve em Foz do Iguaçu em 1995, para encontrar com um contato indicado por Mohamed Atef (Abu Hafs), à época chefe operacional da Al Qaeda (9/11-Commission 2005, p. 148). 

 Ainda em 2016, durante a realização dos Jogos Olímpicos no Brasil, a agência antiterrorismo da Polícia Federal monitorava nada menos do que 42 indivíduos suspeitos de ligação com o terrorismo islâmico em território nacional. Não é o caso de relatar aqui a tentativa de entrada e a passagem, pelo Brasil, de inúmeros suspeitos pelo envolvimento com o terrorismo, nas últimas décadas. Basta saber que eles atuam por aqui e que num momento de acirramento da conjuntura internacional no Oriente Médio, assim como a Argentina foi o Brasil pode ser alvo de algum atentado. Conheci de perto as estruturas de inteligência federal e do Estado de São Paulo, suas capacidades e deficiências, ambas seriamente sub-dimensionadas, sub-financiadas e incapazes de lidar com este tipo de ameaça. O Brasil não é alvo por conta de sua histórica postura de neutralidade durante os conflitos no Oriente Médio e não pelo receio de detecção e antecipação pelos órgãos de segurança. 

 Passou da hora de o Brasil repensar sua estrutura de segurança pública e inteligência. Se não para lidar com o perigo remoto do terrorismo, ao menos para confrontar a ameaça imediata que o crime organizado e radicais impõem ao estado democrático de direito e à qualidade de vida da população.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Canal "Análise de Dados" ultrapassou 500 inscritos

 https://www.youtube.com/channel/UCRZps3dH47Yd7pj8LmS7vmg. Canal "Análise de Dados" ultrapassou 500 inscritos esta semana. São 35 vídeos e mais de 570 horas de análise de dados e metodologia de pesquisa, num formato introdutório. Inscreva-se e divulgue!

quarta-feira, 1 de março de 2023

Tempo de exposição à Televisão e comportamentos de risco

 


Tulio Kahn

O IBGE e o MEC fazem desde 2009 uma pesquisa nacional com estudantes de 13 a 17 anos de idade sobre saúde física e mental, a PeNSE (Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar). Trata-se de uma pesquisa amostral representativa onde os estudantes preenchem de forma anônima um formulário eletrônico sobre diversos temas, tais como escolaridade dos pais, inserção no mercado de trabalho e posse de bens e serviços; contextos social e familiar; fatores de risco comportamentais relacionados a hábitos alimentares, sedentarismo, tabagismo, consumo de álcool e outras drogas; saúde sexual e reprodutiva; exposição a acidentes e violências; hábitos de higiene; saúde bucal; saúde mental; e percepção da imagem corporal, entre outros tópicos. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/justica-e-seguranca/9134-pesquisa-nacional-de-saude-do-escolar.html?=&t=o-que-e. A última edição foi realizada em 2019 com mais de 165 mil alunos de escolas públicas e particulares de todo o país.

Existem diversas questões relacionadas a segurança nas diferentes edições, perguntando sobre vitimização por agressão, sensação de insegurança, bullying sofrido e praticado e a pesquisa permite testar inúmeras teses criminológicas interessantes. Uma delas é a relação entre violência e exposição à televisão, tema que venho aprofundando nos últimos tempos no projeto Efeitos da Mídia Violenta (http://dx.doi.org/10.13140/RG.2.2.12736.81927).  A PeNSE são detalha infelizmente o tipo de conteúdo assistido na TV, mas permite estimar a quantidade de horas diária de exposição.

O formulário pergunta aos estudantes “quantas horas por dia você assiste televisão (sem contar sábado, domingo e feriado)” e recodificamos a questão para formar quatro grupos: 1 – dos que responderam não assistir televisão e que representa 25,5% dos entrevistados. O grupo 2 é o mais frequente, com 52,8% e é formado pelos que assistem entre 1 até 3 horas por dia de TV. No terceiro grupo (14,9%) estão os que assistem mais de 3 até 6 horas por dia de TV e finalmente, no grupo 4 (7,8%) estão os que assistem mais de 6 horas de TV por dia.

Uma exposição excessiva à TV – em especial ao conteúdo violento – já foi associada a inúmeros efeitos maléficos, como sedentarismo, hábitos alimentares ruins, depressão, ideação suicida, bullying, uso de drogas, vitimização e comportamento agressivo, entre diversos outros efeitos.

O problema aqui, como sempre, é que uso excessivo de TV pode ser influenciado por muitos fatores diferentes: depressão pré-existente, falta de supervisão familiar, ausência de alternativas de lazer, baixa renda, etc. Assim, a relação entre exposição à TV e estes efeitos deletérios pode ser espúria e é preciso controlar a relação por uma série de variáveis, que podem estar mascarando ou superestimando o “efeito puro” da exposição à TV. O ideal seria construir um modelo de análise mais complexo (como uma regressão logística) que levasse em consideração estes controles, mas esta é uma tarefa para uma pesquisa mais demorada.

Neste artigo apresentaremos apenas os resultados de tabulações cruzadas entre tempo de exposição à TV e outras variáveis de interesse da Pense 2019, controlando apenas por idade do estudante ou nível sócio econômico, usando a posse de carro por algum membro da família como uma proxy para renda. Trata-se de uma análise simples e sujeita a erros, mas que pode fornecer algumas pistas interessantes para aprofundamentos posteriores.

Uma primeira constatação interessante é que a relação entre exposição à TV e os efeitos maléficos não é totalmente linear. Ao contrário, não assistir televisão pode ser quase tão prejudicial quanto assistir muita televisão. Com frequência os piores resultados nos cruzamentos se manifestaram justamente naquele grupo de ¼ de estudantes que disseram nunca assistir televisão. Trata-se de um grupo de renda mais elevada, com acesso a celular, computador e internet e que praticamente trocou a televisão pela exposição às redes e mídias sociais. Neste caso teríamos apenas uma substituição de mídias (TV por celular), mas os efeitos seriam tão prejudiciais num grupo quanto no outro.

Todavia, entre os que afirmam assistir TV, os efeitos são claramente lineares: assistir de 1 a até 3 horas de TV diariamente é melhor do que assistir de 3 a 6, que por sua vez é melhor do que assistir a mais de 6. A análise da Pense 2019 corrobora, como identificado pela literatura, que o consumo exagerado de TV pode estar relacionado ao maior consumo de drogas, maior grau de vitimização e maiores problemas de saúde mental.

 

ALGUMA VEZ NA VIDA - DROGAS

Nunca assiste

Ate 3 hs

Mais de 3 até 6 hs

Mais de 6 hs

Você já fumou cigarro, mesmo uma ou duas tragadas?

23,5

19,5

22,9

26,2

Você já experimentou narguilé (cachimbo de água)?

24,1

20,6

23,2

25,7

Você tomou um copo ou uma dose de bebida alcoólica?

66,9

61,1

64

64,9

Você já usou alguma droga como: maconha, cocaína, crack, cola, loló, lança-perfume, ecstasy, oxi, MD, skank e outras?

15,2

11,4

12,9

14,3

Fonte: Pense IBGE 2019. N varia entre 132 e 165 mil casos, dependendo da tabela

Assim, por exemplo, quanto mais horas assistidas de TV, maior a probabilidade de ter fumado, experimentado narguilé, tomado bebida alcoólica e usado alguma droga. O grupo que diz “nunca assistir” TV, como observado, tem um comportamento similar ao grupo que diz assistir mais de 6 horas diárias. As diferenças são estatisticamente significativas, mesmo quando controlamos pela idade do aluno ou pela renda.

 

 

 

 

 

ALGUMA VEZ NA VIDA - VITIMIZAÇÃO

Nunca assiste

ate 3 hs

mais de 3 até 6 hs

mais de 6 hs

Alguém o(a) tocou, manipulou, beijou ou expôs partes do corpo contra a sua vontade?

18,2

14,5

15,1

18

Alguém ameaçou, intimidou ou obrigou a ter relações sexuais ou qualquer outro ato sexual contra a sua vontade?

7,2

5,6

6

8,7

NOS ÚLTIMOS 12 MESES, quantas vezes você foi agredido(a) fisicamente por sua mãe, pai ou responsável? (NENHUMA)

79,8

78,5

75

72,9

Você esteve envolvido(a) em briga com luta física?

9,4

9,6

12,4

17,2

Quantas vezes algum dos seus colegas de escola bateu (deu socos, tapas, chutes, pontapés) em você ou o machucou fisicamente de outra forma?

85,9

85,3

82,9

79,6

Fonte: Pense IBGE 2019. N varia entre 132 e 165 mil casos, dependendo da tabela

Existe igualmente uma relação linear entre tempo de consumo de TV e maior risco de abuso sexual, ameaça sexual, agressão pelos pais, envolvimento em brigas corporais e vitimização física. As diferenças são estatisticamente significativas, mesmo controlando por idade ou renda.

A relação com a saúde mental é complexa e provavelmente bidirecional. Ou seja, ver muita TV pode tanto agravar a saúde mental como ser um sintoma de deterioração mental prévia. A pesquisa mostra que existe uma relação linear entre quantidade de exposição à TV e sentimento de abandono parental, incompreensão parental, bullying, assédio, sentimento de tristeza, abandono, mau humor e ideação suicida. Observe-se que também aumenta a probabilidade do estudante  cometer bullying contra os demais colegas de escola.

NOS ÚLTIMOS 30 DIAS  - SAÚDE MENTAL

Nunca assiste

Ate 3 hs

Mais de 3 até 6 hs

Mais de 6 hs

Com que frequência sua mãe, pai ou responsável sabia realmente o que você estava fazendo em seu tempo livre? (NUNCA)

7,3

5,7

6

13,1

Com que frequência sua mãe, pai ou responsável entendeu seus problemas e preocupações? (NUNCA)

17,5

12,4

15,1

22,1

Quantas vezes algum dos seus colegas de escola o esculachou, zoou, mangou, intimidou ou caçoou tanto que você ficou magoado, incomodado, aborrecido, ofendido ou humilhado? (NENHUMA)

62,6

61

58

54,2

Você se sentiu ameaçado(a), ofendido(a) ou humilhado(a) nas redes sociais ou aplicativos de celular? (SIM)

12,9

11,4

12,6

17,1

Você esculachou, zombou, mangou, intimidou ou caçoou algum de seus colegas da escola tanto que ele ficou magoado, aborrecido, ofendido ou humilhado? (SIM)

11,3

11,1

14,1

18,8

Com que frequência você se sentiu triste? (SEMPRE)

8,9

10,7

10,3

13,5

Com que frequência você sentiu que ninguém se preocupa com você?

14,7

10,5

12,1

19,3

Com que frequência você se sentiu irritado(a), nervoso(a) ou mal-humorado(a) por qualquer coisa?

19,2

13,7

16,4

24

Com que frequência você sentiu que a vida não vale a pena ser vivida?

11,8

7,6

9,5

16

Fonte: Pense IBGE 2019. N varia entre 132 e 165 mil casos, dependendo da tabela

Como nos demais tópicos, em alguns itens o grupo dos que “nunca assistem” TV se aproximam dos que assistem em demasia. As diferenças entre os grupos de exposição se mantém significantes, mesmo controlando idade ou renda.

Não é o caso de avançarmos na análise aqui, que será inconclusiva sem dados longitudinais, outras variáveis de controle, modelos que levem em conta a interação entre as variáveis e outros procedimentos científicos mais robustos.

Mesmo que a associação causal entre exposição à TV e comportamentos de risco seja espúria, sabemos que tanto assistir muita TV quanto não assistir nunca são comportamentos de risco que precisam ser monitorados e que ajudam a entender uma série de outros comportamentos de risco correlatos. É algo fácil de ser observado em casa ou perguntado por profissionais de saúde, segurança e educação. Independente do conteúdo, reduzir a exposição à TV, por sua vez, pode ser uma prática efetiva para a diminuição desses outros riscos. É preciso evitar, no entanto, que haja apenas uma substituição da TV por outras mídias igualmente prejudiciais, quando o uso for excessivo.

A pesquisa PeNSE permite acompanhar alguns fenômenos no tempo – foi aplicada em 2009, 2012, 2015 e 2019 – e no espaço e sua amostra permite a desagregação dos dados por UF e Capitais. O tamanho da amostra permite introduzir no modelo diversos controles simultâneos, produzindo modelos robustos. O artigo acima é apenas um pequeno exemplo do que pode ser investigado com a pesquisa, que é bastante rica e acredito que esteja sendo subutilizada pelos pesquisadores brasileiros. É uma ferramenta importante para entender o jovem de hoje e seus hábitos de alimentação, saúde, laser, relacionamentos afetivos e diversos outros.

Estamos falando da geração conectada à internet e às redes sociais através dos celulares. Os efeitos disso não são de todo conhecidos. Segundo a pesquisa, cerca de ¼ dos jovens deixaram de assistir a televisão, provavelmente substituindo-a pela exposição das redes sociais como Instagran, Tik-Tok, Youtube e outras. Este comportamento, como sugerimos, pode ser tão prejudicial para a saúde física e mental desta geração quanto ficar exposto a muitas horas de TV.

É preciso incluir na PeNSE questões sobre hábitos de consumo de internet e redes sociais, cujos efeitos ainda são pouco conhecidos e estudados. Sem falar em questões sobre as mudanças sociais advindas da epidemia de Covid em 2020.

A pesquisa mostra, finalmente, que ainda é elevado entre os estudantes brasileiros o uso de álcool e drogas, bem como problemas como o bullying, abusos sexuais, gravidez precoce, evasão escolar, uso de armas, violência doméstica e depressão. Neste sentido, é também um bom termómetro de como as políticas publicas estão – ou não estão - tratando destes problemas no Brasil.

Referências

Kahn et all. https://www.researchgate.net/project/Efeitos-da-Midia-Violenta-a-visao-da-ciencia

https://www.jacobsconsultoria.com.br/post/ibge-libera-resultados-do-pense-2019-a-pesquisa-nacional-de-sa%C3%BAde-do-escolar

OLIVEIRA, Max Moura de et al . Características da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar - PeNSE. Epidemiol. Serv. Saúde,  Brasília ,  v. 26, n. 3, p. 605-616,  set.  2017 .   Disponível em <http://scielo.iec.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-49742017000300605&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  28  fev.  2023.  http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742017000300017.

 

domingo, 12 de fevereiro de 2023

O sistema de classificação indicativa e a violência na mídia

 A maioria das sociedades modernas reconhece a inconveniência de expor a população, especialmente a mais jovem, a conteúdos impróprios nos meios de comunicação – violência, sexo e drogas, para mencionar apenas alguns temas mais sensíveis.

Evidência disso é que quase todas adotam algum sistema de classificação indicativa para filmes, programas, peças de teatro, shows, música ou videogames, recomendando idades e horários adequados para a exibição. Mesmo as mais liberais e democráticas não consideram esta classificação como censura, mas entendem que deve existir limites a o quê, quando e para quem as obras devem ser dirigidas.

No Brasil, pesquisa do IPESP de 2014, para o Ministério da Justiça, encontrou que nada menos que 98% dos entrevistados numa amostra nacional concordam que “deve haver algum tipo de controle sobre o que as crianças e adolescentes assistem na televisão ou acessam na internet”. Os pais disseram-se “muito preocupados” com a exibição de cenas de tortura, suicídio ou estupro (79%), consumo de drogas (73%), cenas de agressão física e violência (67%) ou de mortes violentas (67%).

O Brasil utiliza um sistema de seis classificações – livre, 10, 12, 14, 16 e 18 anos –, onde se nota uma clara predileção pelos anos pares, o que já sugere a arbitrariedade do sistema classificatório. Este sistema passou a ser adotado em 2006 e o Ministério da Justiça é o responsável pela análise do conteúdo, tendo editado inclusive um Manual de orientação com informações sobre como é feita a classificação. A legislação mais recente sobre o tema está consolidada na Portaria MJ 502, de 2021.

O problema está nos detalhes e não existem critérios objetivos para a classificação. Quantos tiros e facadas diferenciam um filme de violência moderada para extrema? O que é erotismo para um pode ser considerado pornográfico por outros e muitos acreditam que exposição a drogas legais – como álcool e tabaco – causam tanto ou mais prejuízo do que a exposição a drogas ilegais. Cada sociedade e época, como sempre, vão ajustando estes limites e entendimentos, às vezes consensualmente, às vezes com recursos na justiça. Quem tiver interesse em aprofundar o tema pode consultar este verbete da Wikipedia, que faz uma comparação dos sistemas classificatórios adotados em diversos países.

Milhares de obras já foram classificadas e estes dados estão disponibilizados no site de dados abertos governamentais, contendo mais de 65 mil registros de obras produzidas entre 1930 e 2004, incluindo variáveis como ano, procedência, produtora, atores etc. Mais interessante ainda, a base de dados do CLASSIND traz o motivo para a classificação atribuída. Não temos no Brasil nenhum estudo sistemático sobre a quantidade de violência exibida na programação de TV. A base de dados do Ministério da Justiça, assim, pode ser um modo de estimar este conteúdo.

Excluindo da amostra os eventos desportivos, shows, teatro, eventos musicais e mantendo preferencialmente as obras audiovisuais – filmes, novelas, programas, séries, desenhos – ficamos com uma base de 10.118 obras classificadas. Destas, 4.133 (40,8%) foram liberadas sem restrições enquanto as demais receberam ao menos algum tipo de recomendação. Das restrições com exposição de motivos, 2.426 (24% da base) tinham relação com violência, sexo ou drogas. Violência, isoladamente, representa quase 18% dos casos classificados com restrições.

A tabela abaixo traz detalhes destas motivações.

 

CONTEÚDO DAS OBRAS ANALISADAS PELO SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA

 

Os Estados Unidos são a origem de 88,8% do conteúdo classificado como violento (país de origem de 80% das obras avaliadas), concentrados em longas metragens (63%) e séries (17,9%). Embora imperfeito e já antigo, esse levantamento dá uma dimensão da quantidade de violência exibida pela televisão brasileira.

Há toda uma literatura robusta dedicada a aferir os efeitos deletérios da exposição de conteúdo violento nos meios de comunicação, especialmente para os mais jovens. Efeitos duradouros que vão da perda do sono e piora da qualidade da alimentação a sintomas de depressão, comportamentos violentos, suicídios, problemas de aprendizagem e até alterações cerebrais. A mídia também influencia nas nossas percepções e opiniões sobre temas como assédio sexual, armas de fogo, punição aos criminosos, imigração etc., formatando empatias, crenças e sentimentos sobre estes temas e influenciando a legislação e as políticas sobre eles.

É claro que a violência brasileira tem muitas e mais importantes causas – passando pela desigualdade econômica, elevado consumo de álcool, farta disponibilidade de armas, tráfico de drogas, baixa resolução de crimes etc. Mesmo que a televisão brasileira exibisse 24 horas por dia de balé, programas educativos ou documentários sobre pássaros, o Brasil seria um país violento. Mas é preciso encarar a exposição ao conteúdo violento como um fator de risco adicional, que deve ser levado em conta pelas políticas públicas e privadas.

A literatura que estuda mídia e violência têm recomendado diversas políticas e práticas para minimizar estas externalidades, tais como regulamentação governamental, autocontrole das empresas jornalísticas, uso de tecnologias para detectar violência em vídeo, programas nas escolas de educação para consumo de mídias, aperfeiçoar os estudos sobre consumo de mídia violenta, reforçar a orientação parental, ofertar serviços de acompanhamento de saúde mental, criar material de orientação, workshops sobre melhores práticas, qualificar a cobertura jornalística dos eventos violentos, entre diversos outros. Os meios de comunicação são céleres em apontar responsabilidades pela violência, mas lerdos em reconhecer o próprio papel no fenômeno. Medice, cura te ipson! (Kahn, Ferreira, Poli, Oliveira e Nino, 2023, Projeto Efeitos da Mídia Violenta: a visão da ciência).

Seria importante que o governo voltasse a alimentar e divulgar os dados atualizados do CLASSIND para que a sociedade possa monitorar a incidência de violência e outros temas sensíveis nas obras exibidas no Brasil, especialmente na TV aberta. Mesmo que parcialmente subjetivo e sujeito a polêmicas no caso de avaliações individuais, o sistema ajuda a entender a quantidade e a qualidade dos conteúdos sensíveis a que a sociedade está exposta.

 

Referências

BUSHMAN, Brad J. Violent media and hostile appraisals: A meta-analytic review. Aggressive Behavior, vol. 42, no. 6, p. 605–613, 2016. https://doi.org/10.1002/ab.21655.

FERGUSON, Christopher J.; COPENHAVER, Allen; MARKEY, Patrick. Reexamining the Findings of the American Psychological Association’s 2015 Task Force on Violent Media: A Meta-Analysis. Perspectives on Psychological Science, vol. 15, no. 6, p. 1423–1443, 2020. https://doi.org/10.1177/1745691620927666.

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