sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Picasso não pichava


A nova administração municipal de São Paulo deu início ao projeto Cidade Linda, que, entre outras iniciativas, está repintando muros da cidade, onde antes existiam pichações e grafites. Desde o início da gestão, 42 pichadores foram detidos e a pedido do executivo, a câmara municipal prepara uma nova lei com multa de 5 mil reais e ressarcimentos aos cofres públicos para aqueles condenados por vandalismo e crime ambiental.

A iniciativa tem causado bastante polêmica na imprensa e nas redes sociais pois a nova gestão limpou não apenas “pichações” como também diversas obras de grafiteiros renomados, que receberam incentivos da gestão anterior para realização de seus trabalhos. A maior crítica é de que a prefeitura não fez a distinção entre pichação, grafite e arte urbana: o consenso aparentemente é de que a primeira deveria ser banida enquanto as demais, de caráter artístico, deveriam ser incentivadas. Seguindo esta lógica, “Picasso não pichava”, por exemplo, era o nome de um projeto da secretaria de segurança do Distrito Federal que buscava transformar jovens pichadores em grafiteiros e artistas de rua, com o auxílio do poder público.

“Consenso” aparente, como dito, pois muita gente acha grafite lindo, desde que seja no muro dos outros; acha lindo, mas que não deve ser incentivado e pago com recurso público (Haddad gastou 1 milhão com os grafites da 23 de maio em 2014); tem também quem não acha lindo e pensa que quem quiser ver arte que vá a um museu, etc. etc. Além disso, quanto à suposta superioridade da pichação sobre o grafite, há os que avaliam que boas frases e reflexões nos muros podem ser tanto ou mais conscientizadoras e divertidas do que desenhos.  Seria interessante uma pesquisa para saber se a população diferencia as diferentes formas de manifestações e seu apoio ou rejeição a elas.

Sem entrar no mérito do que é ou não arte ou manifestação cultural dos jovens das periferias, algo que é bastante subjetivo, o fato é que a teoria que embasa a relação entre o ambiente e a criminalidade tem evidências bastante sólidas. A conhecida teoria das Janelas Quebradas já corroborou através de inúmeras pesquisas o efeito deletério da degradação física e social sobre a sensação de insegurança da população, bem como sobre a atração sobre outros crimes e contravenções. Um espaço degradado, visto como terra de ninguém, sujo, mal iluminado, pichado, atrai a mendicância, prostituição, venda de drogas, furtadores e uma miríade de pequenos contraventores e eventualmente aumenta a oportunidade para o cometimento de crimes mais graves. Foi uma das estratégias inovadoras de combate à criminalidade em Nova Iorque nos anos 90, retomando a cidade dos contraventores, bloco a bloco, começando pelas deterioradas estações de metrô.

O Cidade Linda, ao menos no que diz respeito à segurança pública, está baseado em teoria convincente, lastreado em dados que o corroboram. Trata-se, aliás, de uma versão do programa Belezura da administração Marta Suplicy e principalmente do Cidade Limpa da gestão Kassab, que também focou na recuperação dos ambientes urbanos e no combate às pequenas contravenções para melhorar a segurança da cidade, através da Operação Delegada contra o comércio ambulante ilegal e da proibição dos outdoors, regulamentando a propaganda na cidade. Trata-se de um rol amplo de iniciativas de zeladoria, como iluminação, jardinagem, pintura, consertos, poda de árvores, remoção de veículos abandonados, limpeza, combate ao comércio ambulante ilegal, recuperação asfáltica, etc. – iniciativas que foram relaxadas na gestão Haddad, percebida como leniente com relação à degradação física da cidade, que culminou com uma praga de pernilongos na zona Oeste. A intenção destas iniciativas contra a degradação é mostrar que o espaço tem dono e é fiscalizado pelo poder público. É mais do que uma questão estética, apenas de embelezamento da cidade, pois tem consequências sobre segurança e outras esferas.

De modo geral, faltou esclarecimento da prefeitura e diálogo com a sociedade a respeito do tema e sobrou ideologia na avaliação da iniciativa da prefeitura. Sob fogo pesado, até de seus eleitores, Dória já pensa em abrir novamente a Av. 23 de maio para novos grafites e criar um Museu de Arte de Rua em São Paulo. É preciso conciliar aqui diversos valores e o aspecto da segurança é apenas um entre muitos outros a serem considerados. Encontrar uma solução equilibrada entre o “qualquer coisa” em “qualquer lugar” de hoje e o grafitódromo, apenas com projetos pré-aprovados. Particularmente sou fã dos grafites e prefiro uma cidade um tanto mais rebelde, mesmo que tenhamos que pagar um preço por isso. Trata-se como sempre de um equilíbrio delicado entre liberdade, libertinagem e repressão. Se a prefeitura errar na dose, #a lata se vinga.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Considerações sobre o novo Plano Nacional de Segurança Pública.


Em 1999 Fernando Henrique era o Presidente e José Gregory Ministro da Justiça, que convidou para comandar a Senasp o ex-delegado geral paulista José Osvaldo Vilhena Vieira. Que por sua vez, vinha a ser pai do Oscar Vilhena Vieira, com quem trabalhava no Ilanud na ocasião.

Para ajudar na formulação de algumas políticas para a Senasp, reunimos no Ilanud um grupo de colegas do qual faziam parte originariamente, salvo algum esquecimento, eu, Oscar, Guaracy Mingardi, o falecido Paulo Mesquista Neto do NEV e o advogado Theodomiro Dias, filho do Ministro José Carlos Dias. A ideia de um Plano Nacional de Segurança surgiu da inspiração da África do Sul, que um ano antes tinha elaborado o seu plano e nos enviara uma cópia em CD. Nenhuma relação com o episódio do ônibus 174, posterior, que alguns apontam erroneamente como episódio desencadeador do Plano. Na melhor das hipóteses, o incidente provocou uma aceleração na divulgação, assim como a crise carcerária acelerou a divulgação do Plano atual.

As condições para a elaboração estavam longe de ser ideais e como sempre, baseava-se na boa vontade dos participantes. Ninguém ganhou um centavo; ao contrário, gastamos muitas horas de trabalho e muito dinheiro de estacionamento nas reuniões semanais no escritório que o MJ mantinha na Av. Prestes Maia. Não tínhamos recursos para pesquisa, reuniões ou viagens e por isso todos eram de São Paulo: com base na experiência dos participantes e leituras, juntamos ali umas dezenas de propostas e concepções sobre o papel do governo federal na segurança.  Feito o esboço original, a Senasp e o MJ assumiram a coordenação e redação final do documento, colhendo subsídios junto a outros especialistas, ao Gabinete de Segurança Institucional, Depen, Secretaria Nacional de Justiça, Polícia Federal, Abin e outros órgãos do Governo Federal. Mesmo improvisado, o Plano Nacional de Segurança Pública de 2000, com seus 15 compromissos e 124 ações, foi um marco histórico. Antes de tudo pelo simbolismo pois pela primeira vez um governo federal deixava clara sua intenção de assumir maiores responsabilidades nesta esfera. Segurança virou tema prioritário, com novos projetos, concepções inovadoras e orçamento reforçado. Importantes iniciativas foram criadas nos anos seguintes, até a mudança de governo em 2003, que deu continuidade a algumas das propostas e deixou de lado outras tantas.

Não vou me deter aqui nos planos posteriores, em especial o SUSP de 2003 e o Pronasci de 2007. Minha avaliação geral é de que foram documentos bem elaborados no campo teórico, mas pouco práticos e precariamente implementados. Salvo poucas exceções, a gestão da segurança nestes anos foi tão sofrível quanto a gestão econômica. As principais ações “estruturantes”, para usar um termo caro aos gestores petistas, vieram dos períodos anteriores: criação da Senasp, Senad, Depen, dos Fundos Nacionais de segurança, penitenciário, Infoseg, Central de Penas Alternativas, Estatuto do Desarmamento[1], etc. Dos últimos 14 anos de governo, muito pouco pode ser mencionado, neste nível de relevância e durabilidade institucional. Não houve nem “reforma nas instituições de segurança” nem “redução da violência”.

Passados 17 anos do primeiro PNSP, vemos uma nova proposta de Plano Nacional de Segurança. Como todos os planos anteriores, o Plano Temer tem pontos positivos e negativos. Creio que independente dos méritos do documento, o mais relevante é propor alguma coisa, qualquer coisa, elevando novamente o status do tema segurança pública na agenda nacional. Envolver os demais órgãos – STF, Ministérios da Defesa e Relações Exteriores, governos estaduais, etc. – também é um dos méritos. Analistas estimam que 78% das propostas foram requentadas dos planos anteriores. Não vejo isto como um demérito, mas também como algo positivo tentar recuperar boas ideias dos programas anteriores que não foram colocadas integralmente em prática. Estaria muito mais preocupado se houvessem muitas ideais novas e mirabolantes. [2]

Minha lista de equívocos, já assinalados por outros: muitas ações dependem da colaboração com outros órgãos ou de mudanças na legislação; muitas são de caráter emergencial; há omissões importantes, como a questão da tipificação e prevenção às drogas ou do Ministério da Segurança; a escolha dos indicadores apreensão de armas e drogas para medir metas é equivocada, pois são indicadores de output e não input; ampliar o efeito da Força Nacional, que ainda não disse ao que veio, é questionável; algumas ações listadas já estavam em andamento; não se mexe em temas estruturais, como unificação das polícias, etc., etc.

Mas de maneira geral, a escolha dos eixos, dos temas, dos princípios da integração entre órgãos e com a sociedade, do foco territorial, etc., são basicamente acertadas, para um governo de duração limitada e que assumiu o país no meio de uma forte crise econômica e política.  Sempre poderia ser melhor e é fácil criticar as omissões. Todos especialistas têm sua lista pessoal de preferências e lembranças de centenas de sugestões que não foram contempladas. Mas é o temos no momento e bem ou mal o Plano tem virtudes, independente de quem as propõe e de nossas opiniões pessoais sobre o governo em geral e ministros em particular. Se existem erros e omissões, o papel dos analistas é aponta-las e aperfeiçoá-las sine ira et studio, como recomendava Weber. Como todas as propostas apresentadas pelo governo atual, as opiniões sobre o Plano de Segurança são bastante politizadas. [3]

A maior virtude de todas do novo Plano de Segurança é sair na inanição dos anos anteriores, co-responsavel pela crise atual do sistema penitenciário e pelos recordes sucessivos no número de homicídios. Uma nação com 60 mil mortos e onde o crime organizado domina as prisões não pode se dar ao luxo de rechaçar uma iniciativa que pode ser relevante para a área com argumentos ad hominem ou enviesados. É preciso fazer na segurança o que se fez na saúde com a vacinação: inciativas fundamentais tem que ser continuadas, não importa que pessoa ou partido foi o mentor. A segurança estaria melhor se as iniciativas propostas em 2000 tivessem sido colocadas em prática sem descontinuidade.

Acho o Plano de 2000, com todas as suas falhas, melhor e mais completo do que os posteriores e o atual, embora minha opinião seja suspeita. Muita coisa que havia nele foi retomada em 2003 e 2007 pelo PT e neste último Plano de 2017. Redução do homicídio, combate ao crime organizado e modernização do sistema penitenciário fazem tanto sentido agora quando faziam em 2000. O Plano traz boas iniciativas e se a administração atual conseguir avançar na agenda, melhor para todos. Dados os fins, aos especialistas cabe opinar se os meios são adequados para atingi-los. O mais é ideologia. Quando não se gosta do governo de plantão, é preciso um esforço sobre humano para não confundir conhecimento e crença.







Anexo:
Abaixo faço um breve resumo do Plano, pelo que pude recolher do material disperso na imprensa, para quem quiser avaliar as medidas de forma independente.
Plano Nacional – Temer


Eixo 1-  redução de homicídios dolosos e de feminicídios
Princípios: valorizar a prevenção por meio da capacitação dos agentes envolvidos, da aproximação da polícia com a sociedade, da inserção e proteção social, além da otimização de medidas administrativas.
Meta: reduzir em 7,5% o número anual de homicídios dolosos nas capitais do país em 2017. A partir de 2018, a meta será ampliada para cerca de 200 cidades no entorno das capitais.
Meta:  redução dos índices de violência doméstica
Ações:
·         Mapeamento dos locais onde ocorrem homicídios, que começará pelas capitais e depois será expandido para as regiões metropolitanas.
·         Criação de forças-tarefa no Ministério Público para investigações de homicídios 
·         Dar celeridade às investigações e aos processos envolvendo crimes de violência doméstica
·         Implementar cursos de mediação de conflitos, solução pacífica de conflitos e cultura de paz.
·         Instalação de grupos da Patrulha Maria da Penha, que deverão fazer visitas periódicas a mulheres em situação de violência doméstica
·         Criação de um fluxo de comunicação entre os órgãos de segurança e municipais com presença nos centros de inteligência
·         Verificar lugares com iluminação ruim, verificar veículos abandonados, fiscalizar estabelecimentos irregulares e a venda indiscriminada de bebida alcóolica.
·         Implementar normas mais rígidas na guarda e no depósito de armas de fogo de empresas de segurança privadas.
·         Criação de um laboratório central de perícia criminal em Brasília em apoio aos estados
·         Investimentos nas perícias criminais nos estados
·         Apoio aos estados pelos laboratórios da PF que serão ampliados.

Eixo 2 -  combate integrado à criminalidade organizada internacional (em especial tráfico de drogas e armas) e crime organizado dentro e fora dos presídios
Meta: aumento de 10% na quantidade de armas e drogas apreendidas, em 2017, e de 15% em 2018
Ações:
·         Implantação de centros de inteligência integrados das polícias nas capitais
·         Implantar e interligar sistemas de videomonitoramento, a exemplo do que foi feito nas cidades que sediaram a Copa e os Jogos Olímpico
·         Comunicação por rádio digital
·         Fortalecimento do combate ao tráfico de armas e drogas nas fronteiras
·         Força Nacional: ampliar de forma gradativa o efetivo da corporação para realizar mais operações conjuntas com as polícias Federal, Rodoviária Federal e estaduais
·         Polícia Rodoviária Federal (PRF): acordos de cooperação com as polícias militares rodoviárias para otimizar a fiscalização em rodovias e principais rotas viárias brasileiras.
·         Atuação conjunta com países vizinhos (fronteiras, inteligência e informação e operações)
·         Fiscalização, proteção e operações nas fronteiras
·         Atuação conjunta com as policiais estaduais
·         Ampliação da inserção dos perfis genéticos no banco de dados de DNA
·         Compartilhamento, em âmbito nacional, do banco de dados de impressões digitais.
·         Identificação de armas de fogo e de munições - "DNA das Armas”.
·         Ampliação dos radares Alerta Brasil com mais 837 câmeras da PRF nas rodovias, totalizando 935 unidades. O sistema do programa deverá ser integrado com as redes estaduais de identificação de veículos.
·         Nova matriz curricular para a formação policial
·         Elaboração de estatísticas de mensuração da eficácia da atividade de Polícia Judiciária

Eixo 3 - racionalização e modernização do sistema penitenciário.
Meta:  reduzir a superlotação em 15% em dois anos
Ações:
·         Centralização de informações: com módulo que agregará dados sobre os estabelecimentos prisionais com informações sobre vagas gerais, regimes das penas, instalações de saúde, de educação. O segundo abrangerá informações pessoais dos presos e dados sobre o crime praticado. O terceiro terá informações relativas ao processo criminal do detento.
·         Separação dos presos condenados por crimes graves e do crime organizado em diferentes alas
·         Proporcionalidade na progressão do regime com mais benefícios aos crimes praticados sem violência
·         Necessidade de cumprimento de pelo menos metade da pena no caso de ameaças graves
·         Mutirão em execução da pena.
·         Mutirão de audiências de custódia para presos provisórios por crimes sem violência.
·         Investimento de R$ 200 milhões para a construção de cinco presídios federais, um em cada uma das regiões do país, com capacidade para 220 presos de alta periculosidade
·         Fortalecimento de medidas alternativas ao encarceramento, como o uso de tornozeleiras eletrônicas e restrição de direitos.



[1] O Estatuto foi aprovado no primeiro ano do governo Lula, em 2003, apenas em função da dinâmica legislativa. Toda concepção é do período anterior, pelos menos desde 1997.
[2] Acho bastante curioso que muitos dos especialistas chamados a avaliar as atuais propostas – muitas vezes as mesmas que fizeram em períodos anteriores – sejam críticos a elas agora, apenas porque propostas pelo “governo golpista”. De modo geral, o Plano Temer foi avaliado com baixíssima isenção. Ninguém é 100% isento (nem mesmo este autor) mas é quase possível prever a opinião de um especialista sobre o novo plano apenas lendo seus posts no Faceboock sobre o impeachment...Neutralidade axiológica é um objetivo que sempre deve ser buscado por qualquer um que se intitule pesquisador.
[3] Neste sentido, apoio integralmente a proposta lançada pelo cientista político Glaucio Ary Dillon Soares de que o papel dos pesquisadores é “colaborar construtivamente e criticamente na elaboração do Plano Nacional de Segurança Pública, inserindo nossas contribuições”, assim como fizemos em todos os governos anteriores, independente de preferências ideológicas e partidárias. Façamos, como sugere o professor Gláucio, “o que nós, pesquisadores, fazemos de melhor, buscar e divulgar conhecimento, sem que o produto seja um documento partidário e/ou ideológico, nem que seja visto e percebido como tal.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Artigo de 2006 no estadão, propondo a criação de um Ministério da Segurança...

Programa de governo

A criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), em 1997, e a do Plano e do Fundo Nacional nos anos seguintes foram marcos importantes do envolvimento federal na segurança, sinalizando uma mudança significativa com relação ao paradigma anterior, segundo o qual segurança dizia respeito somente aos Estados, detentores das polícias.
O recrudescimento da criminalidade em todo País e o aumento da sensação de insegurança fez com que mudasse de patamar o envolvimento federal na questão, o que levou também à criação da Secretaria Nacional Antidrogas e do Fundo Nacional Antidrogas, do Departamento Penitenciário e do Fundo Penitenciário Nacional, do sistema Infoseg, das centrais de penas alternativas e vários outros projetos relevantes.
Este processo crescente de envolvimento, porém, se deu de modo errático, ao sabor das crises e tragédias nacionais - um “gerenciamento de pânico”, em paralelo ao que no âmbito penal os juristas denominaram “legislação de pânico”, entendendo por isso um processo improvisado ao qual falta uma visão de conjunto e o encaixe com os demais elementos do sistema.
O Ministério da Justiça abraçou boa parte dos novos órgãos e funções sem que para isso tivesse redimensionado sua estrutura física, orçamentária e funcional, tornando-se um superministério por onde circulam demandas relativas aos índios, estrangeiros, consumidores, presídios, policiais, minorias, direitos humanos e toda sorte de questões envolvendo os problemas legais do governo e seus administradores. Para lidar com todos estes temas, o Ministério da Justiça continua a contar com um só titular, uma só secretaria executiva, um só chefe de gabinete, uma só consultoria jurídica, um só prédio - e os acréscimos de funcionários e recursos não foram suficientes para compensar as novas atividades. Projetos relevantes de todas as áreas ficam atolados no meio da precária estrutura administrativa da pasta, não obstante o empenho de seus quadros.
Ao mesmo tempo, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República - que outrora desempenhava apenas a função de Casa Militar - foi concentrando sob sua coordenação órgãos e recursos importantes, como a Secretaria Nacional Antidrogas e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Como herança da Casa Militar, até hoje estas posições são ocupadas por membros das Forças Armadas, sem que se tenha avaliado a conveniência ou não de tal arranjo.
As seqüelas desta engenharia institucional de pânico são muitas e de conseqüências funestas para a gestão da segurança: a Abin (que por lei é impedida de fazer escutas!) não se reporta diretamente ao presidente, mas a um intermediário com status de ministro; a política nacional com relação às drogas está dividida entre dois órgãos, cuja disputa já causou a queda de um ministro e do secretário nacional Antidrogas; o ministro da Justiça, envolto em inúmeras e diferentes questões, não controla efetivamente as Polícias Federal e Rodoviária Federal nem tem tempo suficiente na agenda para se dedicar com a atenção necessária à gestão cotidiana da segurança; não há um espaço nem quem articule ações preventivas em conjunto com outros ministérios da área social do governo; a inteligência está fracionada entre a Abin e a Polícia Federal; há no Ministério da Justiça uma batalha interna velada sobre quem administrará o Infoseg, disputado também pela Polícia Federal.
A criação de um Ministério da Segurança Pública, tal como proposto no programa de Geraldo Alckmin à Presidência, representaria a continuidade do envolvimento federal na segurança iniciado nos anos 1990, processo interrompido na gestão Lula, que propôs em 2002 a criação de uma Secretaria Especial de Segurança, com status de ministério, que jamais saiu do papel.
A criação da nova pasta dedicada exclusivamente ao tema daria também oportunidade para a escolha de um novo tipo de gestor, não necessariamente ligado aos escritórios de advocacia, como tem sido a praxe, já que o problema fundamental não é de ordem legal, mas de gestão eficiente do sistema federal de segurança. A elevação de status do órgão coordenador contribuiria também para preservar o já exíguo orçamento destinado à área, sistematicamente contingenciado pela Fazenda nos últimos anos. Estima-se que para ter algum impacto no reaparelhamento das polícias estaduais seria preciso garantir ao menos R$1 bilhão por ano para o Fundo Nacional de Segurança Pública, que já foi de R$400 milhões e atualmente não conta nem com R$200 milhões, para 54 polícias estaduais e centenas de guardas municipais.
A nova pasta contribuiria para buscar novas fontes de financiamento por meio de empréstimos internacionais, para estimular a vinda de profissionais qualificados da administração pública que queiram trabalhar num órgão prestigiado e para coordenar a gestão dos três fundos nacionais, cujos critérios de distribuição estão longe de consensuais. Dentro da estrutura deste ministério, à Senasp caberia o papel de coordenar efetivamente as ações das Polícias Federal e Rodoviária Federal, e uma nova secretaria seria adicionada, para cuidar exclusivamente de ações de prevenção e articulação com outros órgãos dentro e fora do governo.
Um Ministério da Segurança Pública, se não é a panacéia para todos os males do setor, contribuiria para dar maior organicidade a uma política nacional de segurança, com planejamento e estrutura adequada à dimensão da tarefa, em substituição à colcha de retalhos que é o atual sistema federal de segurança.
Tulio Kahn, doutor em Ciência Política pela USP, coordenador de Análise e Planejamento da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, foi diretor do Departamento Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e um dos idealizadores do Plano Nacional de Segurança Pública do governo FHC
Postado por Tulio Kahn, O Estado de S. Paulo em 30/09/06 

Censo Penitenciário de 2014


O Censo Penitenciário não é propriamente um "censo" da população prisional, tal como vem sendo proposto pela Ministra Carmen Lucia, onde o IBGE entrevistaria todos os presos do país. Trata-se antes de um censo dos estabelecimentos prisionais, que coleta informações agregadas, em nível de estabelecimento, sobre presos e características das unidades.

Ele data de 1993 e meu primeiro contato com ele foi em 1997, na qualidade de Assessor da SAP de São Paulo, como responsável pela coleta, análise e envio dos dados de São Paulo ao Ministério da Justiça. Depois disso tive a oportunidade de contribuir algumas vezes com o aperfeiçoamento do instrumento de coleta, a última delas em 2013, quando o instrumento passou por uma grande alteração, por iniciativa da socióloga Tatiana Moura.

Em 2014 fui o coordenador do projeto de coleta e análise dos dados, contratado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por sua vez contratado pelo Depen para a realização da pesquisa.

Mesmo não trazendo dados desagregados por preso e com problemas de consistência e lacunas no preenchimento, entre outros problemas, trata-se da pesquisa mais abrangente sobre perfil, caraterísticas e tendências prisionais do país, permitindo a análise comparativa e temporal de centenas de variáveis. É possível baixar a base de dados integral do Censo de 2013 no site do MJ, excelente iniciativa do então coordenador do Depen, Renato de Vitto.

Com base nestes dados elaborei o B.I. no Tableau, que pode ser acessado aqui no blog.

Abaixo segue o link do último relatório, contendo apenas uma seleção das variáveis disponíveis.



Relatório descritivo e analítico dos dados semestrais do DEPEN e estudo sobre os efeitos do número de prisões sobre os homicídios.


http://www.forumseguranca.org.br/storage/publicacoes/FBSP_Elaboracao_relatorios_semestrais_descritivos_2016.pdf

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Sistema prisional – breve diagnóstico e sugestões para o seu aprimoramento


Nos últimos quatro anos a Fundação Espaço Democrático realizou diversos seminários sobre segurança pública e sistema criminal no Brasil, com a presença de importantes especialistas do setor, além de dedicar alguns Cadernos Democráticos e dezenas de artigos no site ao tema. Segurança Pública é objeto de análise e reflexão constante e permanente na Fundação e não tema de opiniões em momento de crise.

Neste artigo fazemos um breve resumo das discussões sobre o sistema penitenciário nos últimos anos, contendo um rápido diagnóstico e algumas proposições que saíram das discussões realizadas no Espaço Democrático. O diagnóstico sugere em linhas gerais que temos um problema longínquo de escala e crescimento acelerado da população prisional, que acirrou a deterioração dos serviços prestados pelo sistema penitenciário e alimentou o crescimento das facções criminosas. Assim, reduzir o ritmo de encarceramento e melhorar as condições de cumprimento da pena são iniciativas que podem enfraquecer o domínio das facções no sistema prisional.

Crescimento acelerado
O país ultrapassou em 2016 a cifra dos 600 mil presos, o que equivale à população de Capitais como Aracaju ou Cuiabá. A população prisional aumenta 79 pessoas por dia, o que equivale a três novos presídios por mês, considerando um presídio com capacidade para 800 pessoas. Entre 1990 e 2014, o crescimento da população prisional foi de 575%, 10 vezes superior ao crescimento da população. Enquanto a população em geral cresce 1% ao ano, a população prisional aumenta 5% a 7% ao ano. O principal responsável por este crescimento são os chamados presos provisórios (41%), categoria que cresceu 55,2% entre 2008 e 2013, bem como os condenados por tráfico e por roubo.

Tráfico não apenas representa a maior fatia dos crimes cometidos pelos condenados– cerca de um quarto – como cresceu num ritmo bem superior ao da população prisional em geral: 93,2% entre 2008 e 2013. Por conta do tráfico, participação das mulheres no sistema prisional é crescente. Os roubos também impactam significativamente o sistema por seu grande volume e nas duas modalidades (qualificado e simples) cresceram a taxas superiores à da população prisional em geral.

Superlotação e Deterioração dos serviços
Faltam cerca de 230 mil vagas no sistema prisional, especialmente no regime aberto e semiaberto, cuja ausência implica no envio ao regime fechado de pessoas que poderiam cumprir penas em regimes mais brandos. Seriam necessários 295 novos estabelecimentos apenas para zerar o déficit atual de vagas no país. Por conta da ausência de vagas, a relação preso/ vaga no país é da ordem de 1,8, em média, ou seja, quase duas pessoas por vaga.[1]

Incidentes prisionais como os vistos no início de 2017 são a regra e não exceção. Embora não tenham a magnitude e a brutalidade destes últimos, os distúrbios prisionais são cotidianos. Segundo o Censo penitenciário de 2014, ocorrem cerca de 2,6 distúrbios prisionais e 44 fugas por dia no país. Tivemos em 2014 mais de 300 presos mortos em “óbitos criminais”, sem contar as mortes que foram classificadas como “causa desconhecida”, “suicídios”, “acidentes” e outras.

Os condenados entram e saem constantemente dos estabelecimentos penais e quando saem, levam para a sociedade aquilo que adquiriram no sistema, em todos os sentidos. Infelizmente, no tempo que passaram cumprindo pena, poucos aprenderam uma profissão ou se escolarizaram. A maioria dos condenados tem escolaridade elementar, mas apenas 11% dos presos no Brasil estudam. Apenas 19,8% trabalham, dos quais 74,7% em atividades internas ao estabelecimento. 38% dos presos trabalham sem receber, violando a legislação.

Se poucos saem com novas habilidade adquiridas, muitos saem doentes: o sistema prisional tem elevada incidência de HIV, sífilis, hepatite e tuberculose, com taxas superiores as taxas nacionais. O sistema prisional é hoje um vetor de transmissão destas doenças para familiares e comunidades de origem. O vírus das facções criminais, contudo, é hoje a principal doença levada das prisões para as comunidades de origem. Dada a quantidade de presos, a velocidade do crescimento e a ausência de profissionais qualificados, é rara a separação dos presos por periculosidade, quase não existem laudos criminológicos de entrada ou para progressão e indultos. Criminosos de diferentes graus de periculosidade cumprem penas junto e progressões e indultos são concedidos a indivíduos que não teriam condições de voltar ao convívio com a sociedade.

Carência de recursos

O orçamento Federal para o FUNPEN é baixo, de aproximadamente 300 milhões por ano, e mesmo baixo, cerca de metade do valor foi contingenciada na última década para aumentar o caixa do governo federal. Enquanto isso, a infraestrutura física e os serviços nos estabelecimentos penais definham: existem cerca de 1500 estabelecimentos prisionais no país (apenas 4 federais) e 36% foram adaptados e não concebidos originalmente como presídios. De forma generalizada, faltam módulos de saúde, educação, oficinas de trabalho, espaço de visitação, local para visita íntima, sala de videoconferência, equipamentos para revista, celas de isolamento nos estabelecimentos prisionais. Cada funcionário cuida em média de cinco presos, considerando o total de funcionários do sistema penitenciário ou 7,6 presos, considerando apenas os agentes de custódia. Na prática o número de presos por funcionário é bem maior, se considerarmos os turnos, escalas, etc. O Ministério da Justiça estima que o número de presos por funcionário seja pelo menos 4 vezes maior. A corrupção sistemática e a falta de controle facilitam a entrada de armas, drogas e celulares nas prisões.

Tudo isso ajuda a entender a emergência e expansão das facções criminais, estimadas em 27, e que na prática controlam boa parte dos estabelecimentos penais no país. ​Como solucionar esse problema? Nos eventos​ realizados pelo Espaço Democrático nos últimos anos tem sido frequentemente destacada a necessidade de um novo ​plano de ​segurança ​para o país, ​e sugeridas diversas medidas.

​Listei-as a seguir neste artigo, como forma de colaboração, já que o Governo Federal acaba de propor a elaboração de um Plano Nacional de Segurança​, que incluiu acertadamente o sistema prisional entre ​seus eixos principais

Metas para o Sistema Prisional

  • ·         Triplicar os recursos do Funpen e vedar seu contingenciamento;
  • ·         Aumentar a porcentagem de presos trabalhando, especialmente em atividades não relacionadas ao apoio interno ao estabelecimento;
  • ·         Aumentar a porcentagem de presos estudando;
  • ·         Diminuir a quantidade de presos cumprindo pena ou aguardando sentença em cadeias da Polícia Civil;
  • ·         Advogar pela mudança na lei de entorpecentes, de modo a evitar que pequenos traficantes sem periculosidade nem papel relevante no mundo do crime sejam condenados a penas longas;
  • ·         Estimular as formas alternativas de controle social ao encarceramento, como as penas alternativas e o controle através de monitoramento eletrônico;
  • ·         Advogar por mudanças legislativas / práticas judiciais para diminuir a porcentagem de presos provisórios nos estabelecimentos penais;
  • ·         Gerar vagas no regime aberto e semiaberto, para possibilitar a progressão de regime
  • ·         Criação de secretaria específica para gerenciar o sistema prisional estadual, separada das Secretarias de Segurança;
  • ·         Uso de PPP (Parceria Público Privada) para construção de presídios, uma vez que o poder público carece de recursos e também na gestão de presídios, especialmente no que diz respeito à hotelaria, educação, saúde, etc. O poder público deve manter o monopólio exclusivamente sobre a parte disciplinar;
  • ·         Uso de tornozeleiras eletrônicas em condenados provisórios ou em condenados ao regime semiaberto e aberto;
  • ·         Uso do RDD (regime disciplinar diferenciado) para condenados que cometem faltas graves durante o cumprimento da pena;
  • ·         Construção de mais presídios federais para abrigar liderança do crime organizado;
  • ·         Obrigatoriedade de laudo psicológico para concessão de benefícios (progressão, indulto, etc.);
  • ·         Diminuição do uso da polícia militar para escolta de presos;
  • ·         Ampliação do recurso a Videoaudiência para reduzir o impacto das escoltas de presos nos quadros policiais e dar celeridade aos processos judiciais;
  • ·         Incentivo à criação dos Conselhos de Comunidades nos Estados, para supervisionar o funcionamento das prisões, nos termos da Lei de Execuções Penais.
  • ·         Disseminar as experiências de gestão compartilhada entre Estado e Sociedade Civil na administração dos estabelecimentos penitenciários, tais como as APACs.
  • ·         Realizar o monitoramento epidemiológico da população carcerária pelo Sistema Único de Saúde;
  • ·         Instalar identificadores de frequência e bloqueio de sinais de radiocomunicação nas unidades prisionais;
  • ·         Instalar equipamentos de segurança que possibilitem a revista pessoal não vexatória de familiares, como Raio X, Scanner corporal, espectrômetros, etc.;
  • ·         Criminalização do uso de celular nas prisões;
  • ·         Criar a função de “oficial de condicional” no serviço social penitenciário: profissional pago para acompanhar periodicamente os egressos e condenados em condicional, liberdade provisória, etc.


O diagnóstico é sucinto e as sugestões apenas uma relação inicial de inúmeras outras que devem ser adotadas para minimizar os complexos problemas do sistema carcerário. Alguém já disse que as prisões são as formas mais caras já inventadas para piorar alguém. Assim, prisão em regime fechado deve ser reservada para criminosos perigosos e reincidentes, indivíduos que cometeram crimes graves, lideranças criminais pertencentes às facções e outros que ofereçam riscos à sociedade. Presos primários, que cometeram crimes de menor gravidade, podem ser condenados a formas alternativas de punição. Os custos são elevados pois não se faz política prisional apenas mudando a legislação. Mais altos contudo, como os episódios recentes evidenciam, são os custos da inação.






[1] Em contrapartida, uma tendência positiva tem sido a redução do número de presos cumprindo pena em Delegacias de Polícia, que caiu pela metade entre 2008 e 2013.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Link para a entrevista com o Gamberini sobre sistema prisional



Entrevista com Rodolfo Gamberini para o Jornal da Gazeta, sobre sistema prisional.
Segue link no Youtube

https://www.youtube.com/watch?v=2NaZnffPLQw
entrevista com Gamberini

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Sobre o acidente medonho em Manaus




Entre 1997 e 2000 trabalhei como assessor no sistema penitenciário paulista. Durante este período visitei inúmeras penitenciárias, entre elas o famigerado Carandiru, a Penitenciária do Estado e outros pelo interior.

Ao contrário do que as pessoas imaginam, não existe uma separação física rígida entre presos e funcionários nos presídios. Diretores de unidade, dentistas, religiosos, advogados, “faxinas”, todos circulam pelos mesmos espaços durante o dia. Pela manhã os presos saem de suas celas e circulam quase livremente pelos limites de pavilhões e pátios, jogam bola, tomam sol, visitam as outras celas, alguns poucos trabalham (22% Censo Penitenciário Nacional), estudam algumas horas (11%), ou frequentam algum culto religioso. Só pela noite voltam para a “tranca”. É uma realidade bem diferente da mostrada nos seriados americanos, onde presos e agentes penitenciários mal se comunicam e advogados e visitas só se falam por interfone, separados por vídeos blindados e sob supervisão rigorosa de carcereiros e câmeras de vídeo numa “Supermax”. Nos dias de visita a interação é maior ainda com familiares e crianças zanzando pelos espaços, que não raramente se transformavam em verdadeiras feiras para aquisição de víveres de primeira necessidade, mal fornecidos pelo Estado.

Na média, existe um funcionário para cada 5 presos e esta proporção é maior se imaginarmos que cerca de 20% dos funcionários se dedicam a atividades meio, não envolvidos na fiscalização dos presos e que o sistema funciona em turnos e escalas. Com exceção talvez dos presídios de segurança máxima ou de regimes como o RDD, onde o preso fica na tranca 23 horas por dia, esta é a realidade de quase todos os presídios do país. Há superlotação (2 presos por vaga), péssimas condições de salubridade, falta trabalho, laser, estudo, material de limpeza, colchões, etc. Em compensação, em boa parte do tempo os presos vivem em relativa liberdade. São as mazelas e benefícios das prisões no terceiro mundo.

Num contexto como este, é difícil dizer que a administração “controla” as unidades penitenciárias. Na verdade há uma espécie de pacto não escrito, envolvendo presos, “faxinas”, funcionários e gestores, para que a ordem seja mantida dentro dos limites. Na maior parte do tempo esta ordem se mantem. Mesmo no Carandiru, com seus quase oito mil habitante, lembro que os presos se afastavam ligeiramente, mãos para trás e olhos baixos, quando passávamos pelos corredores em visitação. Passado o portão interno, ficávamos todos juntos e seria muito fácil, uma vez que nenhum agente portava armas, sermos dominados e feitos reféns. A manutenção da ordem interessava tanto aos presos quando à administração. Quebrar a ordem significava perder regalias, liberdades e facilidades. Isto é que mantinha o equilíbrio e não grades, armas, câmeras e centenas de supervisores em tempo integral.

Por vezes o equilíbrio era rompido: os presos reivindicavam transferências, banho de sol, extensão do horário de visitas, remoção de agentes mais durões, melhoria na alimentação. Ou, simplesmente, planejavam fugir. O modus operandi era quase padrão: entravam nas celas do seguro e tomavam como reféns dos estupradores, traidores, ex-policiais, por vezes alguns funcionários e ameaçavam matar todo mundo se as exigências não fossem atendidas. Os motins duravam em média 20 horas, durante as quais entrava em funcionamento a Comissão de Negociação, formada por funcionários mais experientes, munidos de plantas do presídio, megafone, chaves dos portões, mudas de roupa e principalmente muita paciência para negociação. Em último caso, entrava a Tropa de Choque, mas raramente se chegava a este ponto, uma vez que o trauma do massacre do Carandirú ainda eram recente. Depois todo mundo era colocado no pátio, as celas revistadas em busca de armas (quase não havia celulares), as lideranças transferidas, sindicâncias internas abertas, algumas exigências atendidas quando possível e a ordem era restabelecida por mais um tempo. O enredo era conhecido por todos e raramente escapava disso.

Nestes 20 anos o sistema prisional brasileiro só cresceu. A população prisional aumenta 79 pessoas por dia, o que equivale a três novos presídios por mês, considerando um presídio com capacidade para 800 pessoas. Enquanto a população em geral cresce 1% ao ano, a população prisional aumenta 5% ao ano. O principal responsável por este crescimento são os chamados presos provisórios, categoria que cresceu 55,2% entre 2008 e 2013 e os presos por tráfico. Seriam necessários 265 novos estabelecimentos apenas para zerar o déficit atual de vagas no país, superior a 200 mil vagas.

O desrespeito dos presos pelas normas internas de disciplina nos estabelecimentos carcerários está diretamente vinculado ao sentimento generalizado de que o próprio Estado descumpre frequentemente as normas básicas da administração prisional. É o Estado que submete o condenado ao cumprimento de pena irregularmente em distritos policiais, em celas superlotadas e insalubres, que lhes nega a possibilidade de remissão pelo trabalho, condições de defesa jurídica e de ressocialização. Como exigir moralmente a obediência a leis que os Estado mesmo é o primeiro a descumprir? Os incidentes prisionais são, assim, em larga medida, o reflexo deste desrespeito generalizado às regras da execução penal no Brasil. O primeiro e maior passo para controlar os incidentes seria a obediência do poder público às suas próprias regras.


As mazelas e deficiências do sistema engendraram a organização dos presos. Ninguém se importava com a demora nas decisões judiciais, com as doenças, falta de higiene, superlotação, com a tortura, o ócio, a comida ruim, o mau trato dos familiares, pois “preso tem que sofrer e pagar pelo que fez”. Vinte anos depois, o resultado desta ausência de política prisional no país veio com as cabeças decepadas em Manaus (cujas fotos um amigo local fez questão de me enviar...). As facções cresceram e extrapolaram os muros dos presídios e hoje disputam nas ruas e unidades prisionais o domínio do tráfico. Já não pedem mais simplesmente banho de sol ou visitas dos familiares. Hoje dominam praticamente todos os presídios do país, corrompem o judiciário e patrocinam campanhas políticas. Um novo pacto, mais sinistro, mantem a ordem nos presídios. Não são mais os presos que respeitam a autoridade porque temem perder algumas regalias e facilidades. Hoje quem tem medo e pede a paz nos presídios é o Estado, que de tão ausente, fez-se dispensável.

keepinhouse

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