quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Donald Trump e a redução dos homicídios no Brasil


O Fórum Brasileiro de Segurança Pública acaba de divulgar a última edição de seu anuário, com dezenas de tabelas trazendo números sobre os mais diversos aspectos da segurança no país. A imprensa cobriu parte do material relatando as grandes e principais tendências, mas muita coisa interessante ficou de fora das análises. Gostaria de dar destaque a alguns dados que não foram percebidos ou foram pouco explorados, mas que são dignos de nota, no contexto em que se prepara um plano nacional de segurança. Como o material é extenso, atenho me ao principal:

- As mortes decorrentes de intervenção policial representam em média 6% do total de homicídios dolosos do país. Não admira, num pais onde apenas um terço dos entrevistados na pesquisa do FBSP/ Datafolha discorda da frase “bandido bom é bandido morto”. Em Estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul a porcentagem de mortos em confronto mais do que dobra e em São Paulo triplica. Isto se deve em parte à queda absoluta dos homicídios dolosos em São Paulo e Rio. Mas é algo que os governos podem controlar através de políticas públicas. Reduzir mortes em alguns estados significa hoje controlar a própria polícia. Conseguindo isso, atacamos 6% do problema.

- Quem acompanha as séries históricas de criminalidade em São Paulo pode observar que existe uma relação inversa entre os registros de roubo de veículos e os registros de tráfico de drogas, que são um indicador de atividade policial, mais do que de consumo. Assim, quando as ocorrências de tráfico crescem,  as de roubo de veículo caem e vice-versa. Os dados do anuário sugerem que esta relação inversa entre roubo de veículos e tráfico ocorre também ao nível espacial: os estados com maiores registros de tráfico (atividade policial) são em geral os com menores registros de roubo de veículo (R= -.27). Sugestão? Polícia presente na rua diminui o crime...

- Foi-se o tempo em que briga no Nordeste acabava com um cabra puxando a peixeira. As armas de fogo substituíram as armas brancas e isto explica em parte o aumento dos homicídios em toda região. Em São Paulo 55% das mortes por agressão tem a arma de fogo como instrumento e a média nacional é de 71,6%. Todo o Nordeste está bem acima destes patamares. Em Alagoas, a porcentagem é de 87%, 79% na Bahia, 82% no Ceará, 81% na Paraíba, 75% em Pernambuco, 82% no Rio Grande do Norte e em Sergipe. O Nordeste enriqueceu e com isso aumentaram: roubos, insegurança, armas em circulação e homicídios, nesta sequência. Diminuir a quantidade de armas em circulação no Nordeste deve ser prioridade de qualquer plano de combate aos homicídios que se preze. Em longo prazo, o ideal é diminuir o roubo, a insegurança e a demanda por arma...no curto prazo, focar na arma é o método mais rápido e eficaz.

- Os Fundos Nacionais de Segurança Pública, Penitenciário e Antidrogas tem objetivos importantes como construir ou reformar os presídios, equipar as policiais estaduais e guardas municipais, patrocinar as ações preventivas contra drogas e assim por diante. No período 2011 a 2015, somando os três fundos federais, chegamos a algo em torno de 870 milhões por ano. A Polícia Rodoviária Federal, somente com gastos em pessoal e encargos, gasta algo em torno de 3 bilhões por ano. Em outras palavras, os 3 fundos somados representam um terço dos gastos com pessoal da Polícia Rodoviária Federal...que aliás faz um relevante trabalho na prevenção a roubo de carga, roubo de veículos, acidentes, etc. O ponto é: os valores dos fundos são irrisórios, frente a outros gastos e frente a enormidade do problema de segurança do país.

- Circula por aí há tempos um daqueles números misteriosos, comuns na área de segurança, que afirma que no Brasil apenas 3% dos homicídios são esclarecidos. O anuário traz para alguns Estados o número de inquéritos de homicídios relatados com indiciamentos ou homicídios esclarecidos. Se compararmos com o total de homicídios em 2014, a taxa de esclarecimento de homicídios estaria em torno de 20% (12 mil esclarecidos num universo de 59 mil homicídios). Não é nenhuma maravilha – o DHPP de São Paulo chegou a esclarecer 65% dos homicídios – mas é bem melhor do que os 3% divulgado por aí. Aumentar as taxas de esclarecimento dos deve ser outra meta óbvia do futuro plano nacional de combate aos homicídios proposto pelo governo federal. Cerca de 30 mil presos ainda estão sob custódia das polícias, que deixam de investigar para tomar conta de presos. Zerar este número seria uma boa maneira de começar a aumentar as taxas de esclarecimento. (Aproveitando o ensejo, dos homicídios esclarecidos, 1575 apontaram crianças ou adolescentes como autores, o que dá 13% do total de homicídios esclarecidos e 2,6% do total de homicídios.)

Muitos outros dados curiosos podem ser extraídos mas vou deixar para um próximo artigo pois o material já é suficiente para esboçar algumas contribuições para o tal “Plano”, com algumas metas concretas e factíveis em médio prazo, tais como:

·         Reduzir a porcentagem nacional de mortes decorrentes de intervenção policial no total de homicídios dolosos de 6 para 3%. Isto implicaria num esforço para reduzir a letalidade especialmente nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo.

·         Reduzir de 71 para 60% o percentual nacional de uso de arma de fogo nos homicídios. Implicaria em ações de desarmamento – por exemplo, pagamento de prêmios aos policiais e guardas municipais por arma apreendida – especialmente nos Estados do Nordeste, onde este percentual é superior à média.

·    Triplicar, no mínimo, os recursos dos Fundos Nacionais de Segurança, Penitenciário e Antidrogas, passando de 1 para 3 bilhões anuais (um bilhão para cada um, digamos). Pelo menos para igualar o que se gasta com pessoal na PRF. Os recursos destes fundos podem ser investidos prioritariamente em projetos que impactem na redução dos homicídios: investimento em perícia, melhoria da investigação, diminuição no consumo de álcool e drogas, desarmamento, maior policiamento ostensivo nos dias, horários e locais de maior incidência, etc.

·   Aumentar de 20 para 30% a taxa nacional de esclarecimento de homicídios. Existem inúmeras maneiras de contribuir para isto: zerar o número de presos nos distritos, melhorar o disque denúncia (recompensas), melhorar a preservação do local de crime, criar bancos de dados balísticos, de DNA, digitais, fotográficos, contratação e treinamento de novas equipes, criação de delegacias especializadas, etc.

Com os dados disponíveis, é possível conhecer o tamanho do problema, ver onde se concentra, estabelecer metas e benchmarks factíveis. O anuário e dezenas de outras fontes e pesquisas estão aí para subsidiar as políticas públicas. Os pesquisadores fazem a sua parte, coletando, organizando e analisando as evidências disponíveis. Às vezes, extrapolando seu papel, sugerindo “agendas” e “políticas” para os governos.


Mas que raios o Donald Trump do título tem que ver com isso? Bem, sinto informar a todos que agora vamos ter que resolver por aqui mesmo nossos problemas. Já não dá mais para fugir pra Miami. 

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Abordagem Policial


A Importância (e o risco) de abordar suspeitos

Confira a íntegra da palestra que debateu as abordagens policiais no Espaço Democrático, a partir do estudo da pesquisadora Tânia Pinc, comentado por Cel Camilo e Tulio Kahn.
Segue link abaixo para o debate completo:

Caderno Abordagem Policial


segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Ciclos econômicos e ciclos criminais



O Comitê de Datação dos Ciclos Econômicos da FGV identificou a entrada do país numa recessão, a partir do segundo trimestre de 2014. De lá para cá, já temos, portanto, 9 trimestres consecutivos, o que caracteriza um longo período recessivo, se considerarmos que a duração média das cinco recessões anteriores a partir de 1995 foi de 2,8 trimestres.

Temos apontado diversas vezes que os ciclos econômicos afetam os ciclos criminais: nos trimestres classificados como “recessivos” a taxa de crescimento criminal é maior do que nos trimestres de expansão. Indicadores econômicos como índice de Confiança do Consumidor (Fecomércio), taxa de cheque devolvido pela 2º vez por mil compensados (Serasa), taxa de desemprego e taxa de variação do PIB, entre outros, estão correlacionados com indicadores criminais e ajudam a explicar a evolução das séries históricas. [i]

Como os crimes tem evoluído durante esta recessão prolongada? No gráfico abaixo vemos a evolução mensal do roubo de veículos, comparada ao mesmo trimestre do ano anterior, em cinco Estados: DF, MT, PR, RJ e SP.





Algumas observações interessantes sobre o gráfico: como nas recessões anteriores, os crimes começam a crescer antes do início “oficial” da crise, datada pelo Codace no 2º trim. de 2014. Vimos isto acontecer nas recessões anteriores: os criminosos são um dos primeiros grupos a perceber e sentir a crise, pois frequentemente oscilam entre o mundo do crime e o setor informal da economia. Como já apontamos em outra ocasião, o aumento do crime é quase um indicador antecedente da crise econômica, ajudando a antecipá-la.

Assim, justamente em meados de 2014, quando a economia entra oficialmente em recessão, as taxas criminais já estão praticamente em seu auge e já começam mesmo a declinar, de modo que vemos uma queda generalizada na taxa de evolução do roubo de veículo em 2015, quando comparada ao período de crescimento de 2014. Finalmente, na metade de 2015, os crimes chegam no seu ponto mais baixo e começam a inverter de sentido, apontando novamente para cima em 2016.

As outras recessões duraram pouco enquanto a atual perdura a 9 trimestres. Isto significa que houve tempo suficiente para que a evolução criminal passasse mais de uma vez pelas diversas fases classificadas por Shumpeter (1939) como boom, recessão, depressão e recuperação. O mesmo fenômeno ocorreu no período anterior, quando tivemos 21 trimestres consecutivos de expansão econômica: trata-se de um longo período, longo o suficiente para que a criminalidade oscile ciclicamente diversas vezes!  Do ponto de vista estatístico, isto enfraquece a associação entre os ciclos econômicos e os ciclos criminais, quando analisamos apenas a dicotomia expansão/retração da economia e comparamos as taxas criminais nas duas situações: a associação agora é menos visível do que quando a analisamos na crise econômica de 2009.

Como podemos afirmar que o crescimento criminal atual é em parte consequência do contexto econômico, se vemos ciclos econômicos e criminais aparentemente variando de modo não coincidente? Bem, além da existência de toda uma literatura confirmando a associação entre os fenômenos econômicos e criminais, outros indicadores mais “sensíveis” às flutuações de curto prazo do que a classificação de ciclos do Codace – como a taxa de variação dos cheques sem fundo da Serasa – corroboram a existência desta correlação entre estado da economia e crime no Brasil.

No gráfico abaixo vemos (em azul) as variações mensais alisadas de crimes patrimoniais (roubo e roubo de veículos) de SP, MG, RJ e RS e em vermelho as séries mensais alisadas da variação dos cheques sem fundo no Sudeste, como indicador de ciclo econômico. (r2 = 0.43)



A evidência mais convincente, ao meu ver, é a coincidência dos ciclos criminais entre os Estados. O que faz com que os ciclos criminais sejam tão parecidos em Estados tão diferentes? Alguma causa comum explica o movimento e esta causa não pode ser local. Como não temos uma política nacional de segurança pública (nenhuma ao menos digna deste nome) o cenário econômico nacional ainda é a melhor explicação para a variação comum nos crimes.

Os últimos governos não apenas foram omissos na criação de qualquer política criminal nacional importante, como evidenciam os 60 mil homicídios anuais. Mergulharam o pais na recessão mais prolongada das últimas décadas. Talvez os resultados das últimas eleições estejam refletindo esta série de fracassos em diversas áreas, que tem vasos comunicantes e se influenciam mutuamente.





[i] Exploring the Relationship Between Crime and Economic Performance in Brazil after 1994 Using Time Series Econometric Techniques Tulio Kahn. http://www.naurocampos.net/pnbr/papers/Kahn_paper.pdf)

quinta-feira, 6 de outubro de 2016


A reforma eleitoral de 2015 e seu impacto nas eleições municipais


As eleições municipais de 2016 foram das mais “baratas” dos últimos tempos. Segundo o TSE, os gastos na campanha de 2016 somam R$ 2.131 bilhões, em contraste com os R$ 6.240 bilhões gastos nas eleições municipais de 2012.

O principal motivo da redução foi a mudança da legislação eleitoral, que limitou as contribuições apenas às pessoas físicas e impediu a doação de empresas. Outros fatores importantes são a crise financeira e os efeitos da operação Lava Jato, além das inúmeras outras restrições de gastos promovidas pela minirreforma Eleitoral 2015 (Lei nº 13.165).

Em outro artigo já detalhamos as principais alterações da legislação e mostramos, tomando as eleições para deputados estaduais e federais, que há uma estreita correlação entre o número de votos recebidos pelo candidato e os recursos gastos na campanha. Esta forte correlação entre recursos e votos nas eleições produz sérios questionamentos sobre a legitimidades dos resultados das urnas e reduzir a influência do poder econômico nas campanhas foi um dos principais objetivos da minirreforma de 2015.

A questão é: quão bem-sucedida foi a reforma para tornar as condições de disputa mais igualitárias? Vimos que ela reduziu bastante os gastos em números absolutos, o que já é por si relevante (estamos falando obviamente dos gastos oficiais). Mas o que ocorreu com a relação gasto-voto? Ainda se elegem aqueles que gastam mais?

Os dados ainda são parciais pois o TSE não disponibilizou a prestação final de contas dos candidatos nem a base de resultados completa para download, de modo que usamos aqui apenas os dados dos 1882 candidatos a vereador em São Paulo. Note-se também que esta é a primeira eleição municipal em que analisamos a relação gasto-voto, de modo que os dados não são totalmente comparáveis, pois as amostras anteriores provem de eleições para deputados. A tabela abaixo resume os resultados.

eleição
ano
 valor
intercept
slope
R.
votos
 custo por voto
dep estadual
2014
 R$        1.000.000,00
4662
0,046
0,43
50.662
 R$                19,74
dep estadual
2010
 R$        1.000.000,00
3500
0,077
0,63
80.500
 R$                12,42
dep estadual
2006
 R$        1.000.000,00
6557
0,13
0,56
136.557
 R$                   7,32
dep federal
2014
 R$        1.000.000,00
7146
0,039
0,48
46.146
 R$                21,67
dep federal
2010
 R$        1.000.000,00
6442
0,053
0,61
59.442
 R$                16,82
dep federal
2006
 R$        1.000.000,00
10140
0,098
0,55
108.140
 R$                   9,25
vereador
2016
 R$        1.000.000,00
1185
0,032
0,39
33.185
 R$                30,13

O coeficiente de determinação R2 mostra que das sete eleições analisadas, esta última é a que apresentou a menor correlação entre gastos e votos ( r2= 0.39) embora a distância seja pequena com relação a eleição para dep. Estadual em 2014 (0.43). Alguns poucos casos extremos podem impactar na força da relação e no coeficiente. De todo modo, em conjunto com a redução no volume absoluto de gastos, fica a sugestão de que as novas regras podem ter ajudado a enfraquecer ligeiramente o poder econômico nas eleições.

Infelizmente, a influência do dinheiro ainda fala alto. Os candidatos a vereador, como se vê na tabela, gastaram em média 76 mil reais e tiveram em média (intercept) 1185 votos. Um candidato hipotético com gasto de 1 milhão obteve aproximadamente 33 mil votos, a um custo de R$ 30,00 reais por voto. Cerca de 40% da variação na votação dos candidatos pode ser “explicada” pelos gastos de campanha, o que é ainda bastante elevado.

O gráfico de dispersão abaixo traz a quantidade de votos no eixo vertical e gastos na horizontal – excluindo somente 5 candidatos extremos - e ilustra bem o ponto.




É claro que existem exceções à regra: a votação gigantesca no vereador Eduardo Suplicy, pelas regras eleitorais, fez com que vários candidatos do PT fossem eleitos, independentemente dos gastos – tanto que, se isolarmos o PT, a relação gasto-voto cai para metade (r2 = 0.19). Fernando Holiday recebeu 48 mil votos declarando ter gasto 12 mil reais na campanha. No outro extremo, Thammy Miranda gastou um milhão e quatrocentos, mas só obteve 12.400 votos. Mas, como dito, estas são exceções. De modo geral foi eleito quem gastou mais, como de costume.

Isto significa que ainda há muito a aperfeiçoar na legislação eleitoral para garantir condições equânimes de disputa e evitar distorções: evitar que puxadores de votos ajudem a eleger candidatos com poucos votos, colocar um teto menor para o máximo de gastos permitidos, colocar um teto para investimentos pessoais na campanha, que favorece os candidatos ricos, etc. No limite, o financiamento público das campanhas – medida impopular e pouco compreendida – pode ser a melhor maneira de tornar as condições da disputa mais igualitárias, desde que se encontre uma fórmula “justa” para distribuir os recursos entre os partidos e candidatos.



quarta-feira, 5 de outubro de 2016

O mistério de São Paulo: o papel do PCC na redução de homicídios nos anos 2000


Por Daniel CerqueiraDoutor em Economia pela PUC-Rio. Pesquisador do Ipea
Por Tulio KahnDoutor em Ciência Política pela USP. Consultor independente

Por Marcelo JustusDoutor em Economia pela USP. Professor do Instituto de Economia da Unicamp


A redução da taxa de homicídios no Estado de São Paulo em 67%, ocorrida nos anos 2000, é um verdadeiro case internacional de estudo, ao lado de outras experiências mais conhecidas como as de Nova Iorque e Bogotá que também, em uma década, derrubaram em pouco mais de 70% os seus indicadores. O que aconteceu? Trata-se de um mistério, ou os estudos científicos conseguem explicar, em certa medida, o que teria ocorrido aqui?
Reportagem veiculada pela BBC Brasil no dia 12/02/2016 explicitou umas das várias controvérsias no debate subjacente quando dizia que a “queda de homicídios em SP é obra do PCC e não da polícia”. Com base em vários estudos publicados pela comunidade acadêmica e por meio de uma análise econométrica buscamos evidências empíricas das causas que explicam a redução de homicídios em São Paulo e, em particular, do papel da supramencionada facção criminosa nesse processo.
Os resultados do nosso estudo foram apresentados no seminário internacional ocorrido na cidade de São Paulo, após 10 anos dos ataques, onde um amplo debate foi realizado entre os especialistas em segurança pública. Uma grande dificuldade para fazer a análise é que os anos 2000 foram pródigos em transformações no campo político, econômico, social e legislativo. O Governo Federal e governos municipais assumiram crescentemente maiores responsabilidades na questão da segurança pública, quando despenderam mais recursos, expandiram os efetivos das Guardas Municipais e operacionalizaram ações como a Lei Seca para fechamento de bares.
Ao mesmo tempo, as condições sociais melhoraram sistematicamente, quando se observou aumento da renda per capita, diminuição da taxa de desemprego, diminuição da desigualdade de renda e aumento nas taxas de cobertura e frequência escolar. Em termos legislativos, no final de 2003 foi sancionado o Estatuto do Desarmamento, que impôs um freio à verdadeira corrida armamentista observada nas décadas anteriores. Por fim, nessa década, o país (e principalmente São Paulo) assistiu ao princípio da mais profunda mudança do regime demográfico, possibilitada pelo aumento da expectativa de vida e pela diminuição substancial das taxas de fecundidade, o que fez com que a proporção de jovens começasse a diminuir em algumas regiões.
No plano estadual, São Paulo foi uma das poucas unidades federativas que logrou uma continuidade na gestão governamental, com o mesmo partido à frente do governo do estado desde 1995. Nesse período, muitas inovações foram feitas na área de segurança pública, que incluíram uma reorganização gerencial e o uso mais intensivo de tecnologias de informação, que engendraram a um aumento substancial das taxas de aprisionamento. O aumento da massa carcerária, por sua vez, facilitou a arregimentação de membros do PCC, organização criminosa que nasceu dentro das prisões e que ficou nacionalmente conhecida após centenas de ataques orquestrados e perpetrados por eles em maio de 2006. A cartelização do mercado varejista do narcotráfico, que teria sido levado a cabo pelo PCC, seria então uma das muitas hipóteses que explicariam o mistério da redução de homicídios em São Paulo.
Enquanto os defensores da hipótese sobre o papel do PCC, conhecida por “hipótese da Pax Monopolista”, basearam-se em estudos etnográficos alicerçados em entrevistas qualitativas com um grupo limitado de atores, nós utilizamos métodos quantitativos que possibilitam estimar a relevância das várias potenciais explicações da queda, a partir da análise de uma base de dados que cobriu todos os municípios paulistas. Consideramos vários indicadores sociais, econômicos e demográficos, além de outros relacionados à capacidade do Estado de fazer cumprir a Lei, como a presença de Guarda Municipal, de estabelecimentos prisionais e do sistema de Informações Criminais (Infocrim). Por fim, consideramos também a prevalência de armas de fogo e do consumo de bebidas alcoólicas.
A hipótese PCC é consubstanciada pela ideia de que muitos homicídios que aconteciam no território, por força de disputas de mercado, vinganças, acertos de conta, etc., não seriam mais admitidos pelo comando central, a menos de prévia e taxativa autorização. Ainda que tal fato tenha ocorrido de maneira localizada em determinadas comunidades, é difícil acreditar que tal movimento possa ser extrapolado para todo o Estado, de sorte a explicar a dinâmica dos homicídios nos 2000. Quatro fatos estilizados são incompatíveis com tal possibilidade.
Em primeiro lugar, a queda de homicídios no Estado de São Paulo nos 2000 se deu de forma generalizada em 500 dos 645 municípios paulistas. Por outro lado, no momento em que o PCC se mostrou de forma mais incisiva e ostensiva, nos ataques de maio de 2006, foram registrados 287 atentados, em 109 cidades do Estado de São Paulo. Ou seja, o mapa do PCC é bastante diferente do mapa da redução de homicídios no Estado. Segundo, enquanto a maior organização e força da facção criminosa se revelou apenas em meados da década, a redução das mortes se iniciou já em 1999. Terceiro, o número de ocorrências dos tipos de crimes contra a propriedade em que a subnotificação é baixa – tais como roubo ou furto de veículos – também diminuiu no período, o que não pode ser creditado ao PCC. Quarto, a redução das mortes violentas não se deu apenas entre os jovens, com baixa escolaridade, do sexo masculino, moradores de periferia, perfil similar aos dos envolvidos em crimes, mas ocorreu em populações com perfis bastante distintos desses mencionados.
Obviamente, os elementos levantados acima, ainda que impressionistas, não servem para sustentar ou refutar qualquer hipótese. Para tanto, há a necessidade de empregar métodos estatísticos mais sofisticados, que foi o que fizemos. Partindo para as conclusões de nossa análise econométrica, encontramos evidências que corroboram os resultados de outros trabalhos, em que seis fatores foram relevantes para explicar a redução dos homicídios em São Paulo nos 2000.
Sendo eles, o foco na política de desarmamento; a redução substancial na proporção de homens jovens na população; o aumento da taxa de atendimento escolar; a diminuição da taxa de desemprego; a política de Lei Seca, para fechamento de bares; o aumento da eficiência policial, sobretudo com a difusão do Infocrim. Não encontramos, porém, evidências de que oPCC tenha tido papel relevante para explicar a redução generalizada dos homicídios em São Paulo.
As condições sociais e econômicas, sobretudo em relação aos riscos e oportunidades associados à juventude importam sobremaneira. Ou seja, na elucidação do mistério de São Paulo, verificamos que existe muito mais no campo da segurança pública do que supõe a conjectura “PCC versus polícia”.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

O que propõem (e o que não propõem) os programas de segurança dos candidatos a prefeito em São Paulo.


Através do site do TSE é possível acessar os programas de todos os candidatos a prefeito nas eleições de 2016. São literalmente milhares de programas disponibilizados e um excelente material para investigar como a questão da segurança pública vem sendo tratada no âmbito municipal.

Infelizmente não há como investigar os milhares de programas municipais. Neste artigo analisamos somente as propostas de segurança dos principais candidatos a prefeito em São Paulo, que são reveladoras tanto pelo que propõem quanto pelo que omitem. Localizamos 85 propostas nos sete programas, embora 5 delas sejam antes princípios gerais do que propostas.

Antes de detalhar as sugestões, daremos uma olhada panorâmica nos termos mais utilizados nos programas, através da construção de uma nuvem de palavras. O tamanho da palavra na nuvem dá uma dimensão da relevância do termo dentro do discurso e é uma maneira de identificar conceitos e categorias de destaque nos programas de segurança.




A tabela abaixo traz os 45 termos mais frequentes nos programas de segurança, organizados pelo número de menções, e nos fornece uma boa ideia do teor do debate. Alguns termos são óbvios, como “segurança” ou “pública”, mas outros nem tanto. Destaco na tabela aqueles termos que me pareceram mais significativos, como “guarda”, “integração”, “prevenção”, “drogas”, “planejamento”, “sistemas”, “polícia”, “parceria”, “cultura”, “cidadã”, “iluminação”, “paz”, “mulheres”, “formação”, “escolas” e “conselhos”.

37
Segurança
9
Urbana / urbanização / urbano
6
Promover
30
Pública / públicas / público
9
sistema / sistemas
6
Paz
27
Guarda / GCM / guardas
9
políca / policiamento / políciais
6
município
21
programa / programas
9
Metropolitana
6
Mulheres
20
integração / integrada / integral / integrando
9
governo / governos
6
maior
18
Violência
9
Ampliar
6
insegurança
16
Civil
8
parceria / parceiros / parceira
6
Formação
14
Municipal / municipais
8
Fortalecer / fortalecimento
6
Federal
12
prevenção / preventivas
8
Cultura / culturais
6
escolar / escolas
12
política / políticas
8
Cidadã
6
Criar
12
dependentes / drogas
7
População
6
Conselhos
12
Cidade
7
iluminação / iluminadas
6
combate
10
planejamento / planejar / plano
7
Áreas
6
atendimento
10
Paulo
6
Uso
6
agentes
10
ação / ações
6
sociais / social
5
regiões / região

Lendo a tabela de outro modo, poderíamos dizer que os programas dos candidatos, em linhas gerais, pretendem: [ampliar; promover; criar; fortalecer; combater] os [programas; políticas; ações; planos] para atacar os problemas da: [violência; drogas; iluminação; insegurança; escolas; mulheres], que ocorrem nas: [regiões; áreas, cidade; urbano; metropolitano].
Propõem fazer isso utilizando as estratégias de: [integração; prevenção; sistemas; parcerias; formação] e utilizando como órgãos a [guarda; polícias; governos; município; federal; conselhos; agentes].

Embora o significado dos termos nem sempre seja unívoco e apareçam fora de seu contexto, as palavras em destaque já permitem identificar os grandes temas tratados nos programas de segurança dos candidatos e a nuvem de palavras nos auxilia a classificar as propostas em 13 grandes grupos.
A tabela abaixo traz a quantidade de propostas por grupo e candidato.

Rótulos de Linha
Doria
Erundina
Haddad
Olimpio
Marta
Russomano
Young
Total Geral
gestão operacional da Guarda
2


5
4
1
1
13
drogas: prevenção e recuperação
2

1
2
1

5
11
integração com outros entes
2
1

2
3
1
1
10
formação da Guarda
1
4
1



2
8
parcerias com a sociedade civil



2
1
3
1
7
informação, dados e pesquisas


1
1
1
1
2
6
tecnologia: monitoramento, radares, etc.
1

1
1
1
1
1
6
proteção a vítima, vulneráveis e minorias

1
2

1
1

5
princípios gerais


2


2
1
5
programa de prevenção nas escolas


1
1
1

1
4
iluminação
1

1
1
1


4
programas preventivos: cultura, esporte, lazer, etc.


2



1
3
engenharia institucional




1

1
2
reforma urbana
1






1
Total Geral
10
6
12
15
15
10
17
85

As medidas mais frequentes dizem respeito a mudanças na gestão e operação cotidiana da Guarda Municipal, com 13 sugestões. As orientações são as mais variadas: uns querem a guarda adotando “tolerância zero” e outros “policiamento orientado a problemas”. Entram neste rol as ideais de elaborar procedimentos operacionais padrão para a GM, como na PM, a ampliação da Operação Delegada, que emprega PMs ou GCMs nos períodos de folga, o aumento e redistribuição dos efetivos, descentralização do planejamento e outras.

A Guarda municipal é percebida pelos candidatos como o principal instrumento de atuação da prefeitura na segurança e além das mudanças na gestão existem várias propostas na esfera da capacitação e formação dos guardas. A capacitação técnica está praticamente ausente nas propostas, mas frequentemente aqui vemos a preocupação com o tratamento dado as minorias ou grupos vulneráveis: LGBT, deficientes, negros, índios, mulheres, etc. Os Guardas deveriam ser também propagadores de uma cultura da paz. As medidas parecem ser inspiradas num programa estadual, onde o operador de segurança é intrinsecamente visto como preconceituoso e violador de direitos, que precisa ser sensibilizado para estas questões... apenas uma proposta faz menção à capacitação lidar com o problema do comércio ambulante. São raros os casos de violações de direitos pela Guarda e as propostas de capacitação parecem errar no foco.

As drogas e o tratamento dos dependentes são também alvo de preocupação constante nos programas dos candidatos: o divisor de águas está entre os que apoiam e os que criticam o atual programa “De Braços Abertos” da gestão atual. As soluções apresentadas passam pela redução de danos, parcerias com os governos Federal e Estadual, ações esportivas e culturais, revitalização das áreas de uso de drogas, contratação de mais profissionais, internação em comunidades terapêuticas, convênios com grupos de apoio, grupos de autoajuda, aluguel subsidiado pela prefeitura, cursos técnicos de formação profissional, etc. Não existe cracolândia, pelo visto, no mapa da cidade dos candidatos.

A integração com outros órgãos, especialmente de segurança, está também bastante presente nos programas, o que faz sentido se pensarmos que o papel das Guardas na segurança pública é subsidiário e complementar. As sugestões visam integrar informações de inteligência e criminais entre a GCM e a PM, PC e Polícia Federal. Os diferentes órgãos do sistema planejariam em conjunto o emprego de efetivos, viaturas e outros recursos. As centrais de monitoramento e despacho seriam também integradas e a GCM firmaria parcerias com a CPtran, Ministério Público, OAB, Conselhos de Direitos. Além da integração com outros órgãos públicos, as parcerias com a sociedade civil também estão em alta entre os candidatos: parcerias com associações comerciais e de moradores, conselhos comunitários de segurança pública, empresas locais, etc. As parcerias com a sociedade serviriam para formular políticas, acompanhar e avaliar a sua implementação. A participação da sociedade dá um ar de democracia e de politicamente correto às propostas, que pouco detalham como esta parceria ocorreria na prática.

Muitos candidatos têm destacado a necessidade de trabalhar o tema da segurança a partir de dados, estatísticas, mapas e pesquisas, prática já adotada pelas polícias com algum sucesso. Tais informações serviriam para planejar melhor a atuação da GCM segundo dias, horários e locais mais problemáticos. O fortalecimento do Observatório da Segurança, a criação de um sistema municipal de inteligência urbana, a condução de pesquisas com a população e de diagnósticos com auxílio das Universidades estão dentro desta categoria de propostas, assim como a disponibilização as bases municipais para outros órgãos. Sintomaticamente, nenhum candidato menciona especificamente a utilização do 156 da própria prefeitura, do Infocrim, Infoseg ou do Copon-on line, as pesquisas de vitimização e outras de uso tradicional na segurança.  Pouca referência explícita também ao georeferenciamento ou a hot spots, bases do planejamento operacional. De todo modo, assim como no caso da integração e da participação da sociedade, a linha de pensamento é promissora. Estatísticas e mapas  permitem cobrar desempenho e atribuir responsabilidades territoriais.

Em igualdade numérica com as estatísticas e pesquisas estão as propostas que advogam a intensificação do uso de soluções tecnológicas para melhorar a segurança. Entram nesta linha de raciocínio o aumento das câmeras de segurança e sua integração com as polícias ou com o setor privado, integração com o Detecta do governo estadual, outros tipos de monitoramento eletrônico, os sistemas de alerta, os sistemas de recebimento de denúncias, etc. O uso de radares é mencionado, mas com a condição de corrigir as distorções atuais. Nenhuma menção a Big Data ou a “internet das coisas”. Nem a leitores óticos de placas, R.F.I.D, controle de acesso ou identificação biométrica. Nem ao monitoramento e uso das redes sociais para a segurança. Nada de ferramentas de B.I., “predictive policing” ou drones. Tecnologia para segurança para os candidatos parece se resumir a vídeo-monitoramento. Neste aspecto, as propostas são um tanto ultrapassadas e pouco inovadoras.

A preocupação com as minorias e os grupos vulneráveis ficou evidenciada quando analisamos as propostas de capacitação da Guarda. O tema aparece também em outras propostas, onde a prefeitura, através da Secretaria de Segurança Urbana e outras, cuidaria também do atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica, do enfrentamento à cultura da violência, criação de programas preventivos para jovens, população em situação de rua, população LGBT, etc. Propostas de redução de fatores de risco, como gravidez na adolescência, uso de álcool e drogas, também são mencionadas de passagem. Chama a atenção a ausência das armas de fogo nos discursos. De resto, uma boa agenda conjunta com a Secretaria de Bem Estar e / ou da Saúde.

Segurança nas escolas é um dos programas prioritários da GCM e para reforçar esta segurança sugere-se o uso de novas tecnologias ou planos locais de redução da violência. As escolas aparecem ainda como lugar para formação e conscientização dos jovens, parentes e da comunidade do entorno, através de palestras, cursos e psicodramas. Iluminação pública foi lembrada pelos candidatos, vista como fator inibidor da criminalidade: ampliar a quantidade, especialmente nas regiões menos favorecidas, trocar as lâmpadas atuais por LED e rebaixar a altura das luminárias estão entre as soluções sugeridas.

Finalmente, vemos algumas poucas propostas na esfera da prevenção primária, através do aumento de opções de esportes, cultura e lazer nas regiões periféricas, especialmente voltados para os jovens.  Este tipo de proposta genérica costumava ser bastante popular nas campanhas passadas e parece vir perdendo lugar para propostas mais concretas de curto e médio prazo.

No âmbito da engenharia institucional encontramos uma proposta de reorganização institucional da Guarda e outra de criação de núcleos de segurança nas coprefeituras, ambas pouco desenvolvidas nos textos. Somente um dos candidatos articula segurança pública com um programa de reforma urbana na região central, recuperando áreas degradadas, embora este tipo de ação tenha sido relevante em experiências mundiais e conte com apoio e financiamento de organismos financeiros internacionais.
Algumas ausências são significativas e positivas neste debate: não se fala muito na compra de viaturas, armas e equipamentos. São necessários, porém, óbvios. Nem no uso da Guarda para “combater o crime” ou “perseguir a bandidagem” ao estilo Rota na Rua.

Por outro lado, algumas ausências são negativas: não existem metas específicas nos programas, talvez porque tivessem que ser entregues ao TSE antecipadamente. Nenhuma menção a orçamento ou de onde viriam os recursos para os projetos. A regulamentação dos espaços semi-públicos,  bastante usada como estratégia de segurança, foi negligenciada nos programas, assim como o uso do CPTED (prevenção através do design ambiental). Policiamento comunitário parece ter saído de moda entre os formuladores de programas de segurança, assim como o tema das “janelas quebradas” e da associação entre degradação física e social com criminalidade, tão em voga na época das consultorias milionárias pagas aos especialistas americanos. Poucas referências a problemas cotidianos da população – poluição sonora, poluição visual, pichações, flanelinhas, cambistas, sujeira, mobiliário urbano danificado, ausência de poda e jardinagem, etc. – que poderiam ser alvo de atuação da Secretaria Municipal de Segurança Urbana. A própria Secretaria é pouco mencionada nos programas.
No geral, o conjunto de propostas aborda temas relevantes e são “corretas”, embora pouco criativas. Nenhuma revolução à vista. Mas, se bem conduzidas, poderiam melhorar a qualidade de vida do paulistano. Se sairão do papel, já é outra estória.





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