terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Palavras tem consequências

Palavras não podem ser jogadas ao vento inpunimente. No gráfico abaixo vemos o aumento do número de armas apreendidas pela polícia em janeiro em SP em azul e o aumento de homicídios dolosos em vermelho. O que chama a atenção não é a magnitude do aumento, mas a inversão de tendência. Ambas crescem pela primeira vez após longos períodos de queda acentuadas.


O dado sugere que o discursos da flexibilização das armas de fogo já está fazendo suas primeiras vítimas em São Paulo e as pessoas se sentindo mais a vontade para andar armadas nas ruas.

Assim como o discurso de estimulo à letalidade está fazendo suas primeiras vítimas no RJ, onde a letalidade policial bateu récorde em janeiro, com 160 mortes.

Mais armas em circulação e atenuantes para a legítima defesa em confrontos: era tudo o que não precisavamos para conter a epidemia de homicídios no pais.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Usos (e abusos) do reconhecimento facial na segurança pública


A imagem abaixo é de uma antiga foto minha, dos tempos de juventude. Nela estão marcados 101 pontos de reconhecimento facial usado pelo sistema betaface, um sistema online simples que permite brincar com as capacidades da tecnologia de reconhecimento. (https://betaface.com/demo.html). Com base nestes pontos e num número índice que resume e individualiza minhas feições, ele consegue ranquear a semelhança com outras imagens contidas num banco de dados ou disponibilizadas na internet. O sistema sugere, por exemplo, que tenho uma similaridade de 72% com o ator Brad Pitt, o que permite ter uma ideia do grau de erro da ferramenta...



A ideia básica é encontrar a probabilidade de que a pessoa na foto seja de fato a pessoa existente no banco de dados, para a qual existe uma identificação positiva, tal como num sistema de identificação de impressões digitais ou da iris. Além da identificação, o sistema faz outros tipos de reconhecimento, como exemplificado na ficha descritiva da imagem.


5oclock shadow : no (31%), age : 45 (60%), arched eyebrows : no, attractive : no (99%), bags under eyes : yes (15%), bald : yes (20%), bangs : no (90%), beard : no (58%), big lips : no, big nose : yes (0%), black hair : no (92%), blond hair : no (65% ), blurry : no (52%), brown hair : no (12%), bushy eyebrows : no (81%), chubby : yes (9%), double chin : yes (3%), expression : neutral, gender : male (99%), glasses : no, goatee : no (88%), gray hair : yes (53%), heavy makeup : no (89%), high cheekbones : no (90%), mouth open : no (39%), mustache : no (64%), narrow eyes : no, oval face : yes (16%), pale skin : no (61%), pitch : -9.42, pointy nose : no (47%), race : white, receding hairline : yes (56%), rosy cheeks : no (77%), sideburns : no (95%), straight hair : yes (40%), wavy hair : no (93%), wearing earrings : no (95%), wearing hat : no, wearing lipstick : no (95%), wearing necklace : no, wearing necktie : yes (67%), yaw : -2.84, young : no (72%), chin size : large, color background : 0c0501 (1%), color clothes middle : a9a59f (11%), color eyes : 674c3e (58%), color hair : 7a5d4a (45%), color skin : b37561, eyebrows corners : low, eyebrows position : extra low, eyebrows size : extra thin, eyes corners : extra low, eyes distance : average, eyes position : extra low, eyes shape : extra round, glasses rim : no, hair beard : none, hair color type : brown light (45%), hair forehead : no, hair length : none, hair mustache : none, hair sides : very thin, hair top : very short, head shape : heart, head width : extra narrow, mouth corners : average, mouth height : average, mouth width : extra small, nose shape : extra straight, nose width : wide, teeth visible : no [collapse]

Com base probabilística, ele também tenta predizer minhas características demográficas (gênero, cor, idade) , que roupas estou vestindo e até minhas emoções na foto. O sistema prediz, por exemplo, que tenho 45 anos (bondoso), sou calvo (maldoso), sou homem, minha expressão facial é neutra, sou branco, não uso bigodes nem batom. Ele não é muito preciso e erra algumas vezes, mas para um algoritmo de teste online até que se sai bem, tanto no que diz respeito à identificação quanto ao reconhecimento das características da foto. Existem atualmente outras tecnologias, como câmeras térmicas, uso de imagens em 3 D, análise de textura da pele e combinações de diferentes métodos, que tornam o reconhecimento bastante preciso, embora sempre probabilístico. Ao invés dos 101 pontos do exemplo, é possível rastrear mais de 30 mil pontos na face. Inteligência artificial, aprendizado de máquina e procedimentos estatísticos sofisticados são utilizados para aperfeiçoar o reconhecimento.

As redes sociais e os mercados privados de segurança já usam a tecnologia de reconhecimento facial para identificar usuários em fotos públicas, levantar perfis demográficos, nos sistemas de verificação de identidade em portarias, acesso a smartfones, monitoramento de horas trabalhadas pelos funcionários, entre outros usos. Uma das vantagens da técnica é que ela é menos invasiva, não exigindo contato físico ou qualquer ação do indivíduo para liberar acesso ao recinto ou ao equipamento. Esta é também uma das fragilidades de segurança: para desbloquear um celular, basta apontar a câmera para o rosto de seu proprietário. No âmbito eleitoral, o reconhecimento facial dos eleitores foi utilizado no México para evitar fraudes e duplicação de votos.

Os usos são variados e desde que os sistemas de reconhecimento facial começaram a ser desenvolvidos nos anos 60, os órgãos de segurança começaram a se perguntar como poderiam ser utilizados para ajudar no trabalho policial. As polícias tradicionalmente armazenam imagens de suspeitos e condenados por crimes, desde que o daguerreotipo foi inventado. E tem acesso a bases fotográficas de bancos de dados públicos, como as existentes nas cédulas de identidade, carteiras de habilitação ou títulos eleitorais. Em resumo, é provável que os bancos de dados governamentais contenham hoje a quase totalidade da população adulta fotografada, ainda que não necessariamente digitalizada.

Assim, é possível transformar estas fotografias num número identificador único para cada face. Estes números identificadores são colocados numa base, que a rigor não precisa conter a imagem original, caso haja questões de privacidade envolvidas. Isto torna o acesso remoto à base bem mais rápido. Com uma câmera em campo – câmera fixa num posto de checagem, fotos tiradas de um celular de um policial, imagens de vídeo capturadas por câmeras num veículo ou drone – é possível verificar em segundos se o padrão numérico do rosto capturado coincide com o padrão existente no banco remoto. Esta verificação pode ser feita sem contato físico com o suspeito e às vezes sem que o suspeito saiba que está sendo checado, à distância. É possível usar o reconhecimento facial tanto como uma ferramenta de investigação quanto para positivação de identificação.

As polícias de fronteiras na Austrália, Nova Zelândia, Panamá e Canadá, já usam para comparar a foto dos visitantes com as fotos do passaporte ou de procurados pela justiça. Neste caso é possível tirar fotografias de boa qualidade e com o consentimento do turista e a comparação é facilitada pela exigência de padronização nas fotos de passaporte. As condições de clima e iluminação são ótimas. O reconhecimento facial parece tem algum sucesso em ambientes mais propícios, como entrada de shows ou outros equipamentos com acesso controlado.

Mas como sempre, existem diversas questões envolvendo o uso da ferramenta. Quão precisa ela é em fornecer uma identificação positiva, comparando com as impressões digitais ou análise da íris? É possível fazer uma checagem em massa, usando imagens capturadas por dispositivos de menor qualidade e em contextos que dificultam a captura? É moralmente aceitável o monitoramento de indivíduos, mesmo sem registros policiais, nas ruas, sem consentimento e conhecimento?

Aparentemente, o reconhecimento facial ainda não é seguro o bastante para ser usado na identificação de suspeitos, comparado com outros métodos. Fatores como iluminação, expressões faciais, posição, ângulo e ruídos na imagem devido à baixa resolução podem reduzir bastante a capacidade de identificação do sistema. Em outras palavras, o método produz uma elevada porcentagem de falsos positivos, o que pode ter implicações graves no sistema de justiça criminal. O sistema chegou a ser testado e descontinuado em alguns departamentos de polícia na década passada, devido à baixa precisão. (Meek, James (13 June 2002). "Robo cop". London: UK Guardian newspaper. "Birmingham City Centre CCTV Installs Visionics' FaceIt". Business Wire. 2 June 2008. Willing, Richard (2 September 2003). "Airport anti-terror systems flub tests; Face-recognition technology fails to flag 'suspects'" (Abstract). USA Today. Retrieved 2007-09-17. Dodd, Vikram (2018-05-14). "UK police use of facial recognition technology a failure, says report". the Guardian. Retrieved 2018-05-29. White, David; Dunn, James D.; Schmid, Alexandra C.; Kemp, Richard I. (14 October 2015). "Error Rates in Users of Automatic Face Recognition Software". PLOS ONE. 10 (10): e0139827. doi:10.1371/journal.pone.0139827. PMC 4605725. PMID 26465631 – via PLoS Journals.

O reconhecimento facial vem sendo utilizado mais como uma ferramenta adicional de investigação para o policial do que como uma ferramenta de identificação em massa segura. Ainda não é possível colocar câmeras de vídeo no teto de uma Van e sair fazendo prisões de foragidos em tempo real. Mas a precisão da tecnologia tem melhorado bastante desde os anos 60 e é só uma questão de tempo para que possa ser empregada com segurança pelas polícias. Por outro lado, a questão sobre a desejabilidade de seu uso deve ficar em aberto por muito tempo ainda. Até que ponto devemos abrir mão de nossa privacidade em nome da segurança? Esse é um conflito de interesses que cada sociedade e época deve decidir.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

O pacote anticrime e o princípio da individualização da pena


Maria é dona de casa e sofreu durante anos abusos físicos e psicológicos por parte de seu companheiro, até que num momento de desespero matou-o a facadas. João é motorista e sempre fora um cidadão de bem, mas teve seu carro amassado num acidente de trânsito e depois de um rápido bate-boca, afetado pelo álcool, deu dois tiros no outro motorista. José largou a escola cedo para andar com a turma do bairro e desde logo se envolveu em pequenos crimes, é usuário habitual de drogas, passou pela Febem e, ameaçado por um conhecido das quebradas, planejou seu assassinato no bar que ambos frequentavam. Pedro é egresso do sistema, filiado a uma facção criminosa, trafica drogas na comunidade onde cresceu, planejou e executou a morte dos traficantes rivais para tomar sua boca de fumo.

Maria, João, José e Pedro cumprem todos pena por homicídio doloso. Mas as razões que os levaram ao cometimento do crime são bastante diferentes, assim como seus históricos de vida, inclinações psicológicas e contextos sociais e familiares. Se tivesse que atribuir uma pena a cada um ou conceder a eles uma progressão de regime, saída temporária ou outro benefício qualquer, meu palpite é que Maria seria a menos perigosa de todos e Pedro o que representa maior risco.

Conhecer apenas o crime que cometeram genericamente – homicídio – não é suficiente para determinar o grau de periculosidade de cada um. É justo que todos recebam a mesma condenação e tenham os mesmos benefícios legais na execução da pena ou seria mais justo que os benefícios fossem concedidos em função da periculosidade e do comportamento de cada um, analisados individualmente?

A doutrina consagrada na Constituição e na Lei de Execuções Penais acredita que a segunda situação é a mais justa e consagrou esta concepção no princípio da individualização da pena. Assim, o legislador, ao criar novos crimes e penas e o juiz, tanto no momento da condenação quanto durante a fase de execução, devem levar em conta este princípio, que implica em dar a cada um o castigo que merece, segundo sua culpabilidade.



Existem diversos projetos de lei propondo a retirada de direitos de certas categorias genéricas de presos, como por exemplo os que cometeram crimes hediondos. O Supremo tem rechaçado estas propostas com base no princípio da individualização da pena pois o fato é que existem indivíduos mais ou menos “hediondos” e é preciso determinar em cada caso quem poderia ou não usufruir dos benefícios da lei. Recentemente, o pacote anticrime divulgado pelo Ministro da Justiça, propôs o regime fechado como regime inicial para cumprimento da pena por certos crimes, como corrupção, e proibiu a progressão de regime se o condenado for vinculado a organização criminosa. Estas propostas provavelmente serão barradas no Supremo, que já editou súmula vinculante a respeito, pois as medidas ferem o princípio constitucional da individualização da pena.

Note-se que a ideia da individualização da pena não se presta apenas a evitar que direitos de criminosos sejam limitados. Não é coisa “dos direitos humanos”. Na prática, um laudo criminológico individualizado e bem feito pode evitar que um criminoso perigoso e reincidente seja posto em liberdade, em regime mais suave de cumprimento da pena ou tenha direito a sair do presídio. A individualização da pena poderia, no agregado, diminuir as taxas de reincidência no sistema prisional e evitar a contaminação de presos menos perigosos pelos mais perigosos. Poderia contribuir para que o Estado retomasse o controle das unidades prisionais.

Ocorre que, por problemas de gestão do sistema prisional e de política criminal, na prática esta individualização da pena raramente é feita. E como o poder público não consegue na prática determinar o grau de periculosidade de cada um, temendo evitar injustiças, simplesmente (principalmente depois de 2003), optou por conceder de forma quase automática, todos os benefícios a todos os condenados, indiscriminadamente! Vamos esclarecer este ponto.

Se a LEP fosse seguida à risca, não seria necessário ao operador do direito palpitar sobre qual dos nossos homicidas é o mais perigoso. Felizmente existem outras ciências que podem aferir este grau de periculosidade com base em evidências, testes psicológicos, entrevistas, informações disciplinares e diversos outros elementos para a confecção dos laudos. Este trabalho deveria ser feito logo na entrada do sistema prisional, nos Centros de Observação Criminológicos, e durante a execução da pena, pela Equipe Técnica de Classificação, composta por funcionários do presídio, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras. Esta equipe é que teria a responsabilidade de operacionalizar o principio da individualização da pena e dar subsídios, em cada caso, para que a justiça determine quem tem direito aos benefícios. Ao contrário do que os presos imaginam, estes benefícios não são automáticos, bastando o cumprimento de determinados prazos legais: é preciso fazer jus a eles. (particularmente, acho que as comissões técnicas de classificação deveriam existir dentro do judiciário e atuar desde a etapa de cominação das penas).

Desconheço se os Centros de Observação Criminológicos e as Comissões Técnicas de Classificação funcionaram a contento algum dia. Talvez há algumas décadas atrás, quando o tamanho do sistema prisional ainda possibilitava algum acompanhamento individualizado do apenado. O fato é que a população prisional cresceu de maneira acelerada nas últimas décadas e chegou a um ponto em que as deficiências operacionais das CTCs se tornaram em empecilhos, na visão dos gestores prisionais. Milhares de presos reivindicavam seus “direitos” e as CTCs simplesmente não davam mais conta de produzir laudos com a qualidade e celeridade exigidas.

O que fez o poder público brasileiro? Ao invés de cumprir a Lei de Execução Penal e garantir o funcionamento adequado dos centros de observação criminológicos e das CTCs, optou por alterar a legislação em 2003 (pressionados pela situação prisional de São Paulo), retirando a necessidade do laudo individualizado para a concessão de benefícios. A partir dali, bastava a adequação aos prazos legais e uma cartinha do diretor do presídio atestando bom comportamento...Este é o Estado brasileiro, que ao invés de investir na boa gestão do sistema, prefere mudar as leis numa canetada e assim “resolver” o problema. As favas com a individualização da pena.

O resultado está aí. Hoje são as facções que determinam para onde vão os novos condenados. Não existe separação com base na periculosidade. São as facções que determinam quem ocupa que cela, quem tem direito a trabalho ou estudo. Os presos provisórios são 40% da massa carcerária e jamais passaram por qualquer triagem. A gestão do sistema de justiça criminal é tão sofrível que não temos sequer como avaliar se depois de 2003 aumentaram as taxas de reincidência ou as taxas de não retorno após as saídas temporárias. Mas é muito provável que tenha ocorrido uma piora, já que progressões e saídas são concedidas mesmo a quem não tem a mínima condição de recebe-las. Hoje, a taxa de não retorno dos presos após as saidinhas é de cerca de 5% em São Paulo. Poderia ser menor, se a permissão fosse dada com subsídios de atestados produzidos pelas equipes técnicas de classificação ou pelo menos em pesquisas criminológicas, que podem ser aplicadas em massa e dar subsídios probabilísticos.

Se o Estado quer “endurecer” com a bandidagem, poderia fazê-lo simplesmente gerindo adequadamente o cumprimento das penas. Investindo, como exige a LEP, nas equipes multidisciplinares para determinar, com base em evidências, o grau de periculosidade de cada um e o tratamento penal a ser dados em cada caso, incluindo laborterapia, estudos ou tratamento psiquiátrico. Respeitando assim o princípio constitucional de individualização da pena. Maria não é João, que não é José, que não é Pedro. Nenhum deles, provavelmente, passou por qualquer programa de ressocialização durante o cumprimento da pena. Mas todos tiveram autorização para sair da prisão no Natal (quando Pedro aproveitou a oportunidade para cometer novos homicídios, antes de voltar para a prisão).

Mas gerir dá muito trabalho. É preciso investir milhões em instalações, concursos, treinamentos, salários, políticas de ressocialização, políticas de assistência ao egresso. Administrar de modo eficiente a máquina pública. Para isso o Ministério da Justiça conta, por exemplo, com o Depen e o Fundo Penitenciário. Mas resolver na base da canetada é muita mais “simples e objetivo”.

Era o que imaginavam os autores da Lei dos Crimes Hediondos, da Lei 10.792 de 2003, que praticamente acabou com o papel das Comissões Técnicas de Classificação e da Lei de Drogas de 2006, que lotou o sistema prisional de pequenos traficantes de baixa periculosidade. Leis que só postergaram a agravaram os problemas que visavam solucionar. É claro que o aparato legislativo pode ser sempre aperfeiçoado e que o Poder Executivo pode contribuir para isso. Mas não é esse seu papel primordial. Esperamos do governo mais empenho na gestão e menos legislação. De boas intenções e legislações, as prisões brasileiras, sucursais do inferno, estão cheias.






terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Abracadabra, hocus pocus e embargos infringentes: que o crime caia a partir de agora, um, dois, três


A crítica pela ausência é a mais fácil que existe. Dito isso, às vezes ela é necessária, porque reveladora. O pacote anticrimes apresentado pelo Ministro da Justiça não é um plano de segurança pública. Não contém um diagnóstico, exceto uma fala genérica sobre a interconexão entre crime organizado, corrupção e crimes violentos. Foi o máximo de elaboração criminológica sugerida na apresentação oral do projeto pelo Ministro Moro. Tampouco tem princípios norteadores. Nem metas e detalhamento sobre como atingi-las. Em resumo, não é um plano e creio que não pretendeu sê-lo (assim espero).

Na verdade é um conjunto de propostas de modificações legais em diversas legislações. A análise das propostas cabe, portanto antes aos advogados e constitucionalistas. Criminólogos tem pouco a opinar sobre embargos infringentes. De modo que vamos nos restringir aqui ao meta-plano, ao contexto de sua divulgação e a alguns comentários gerais sobre os conceitos e pressupostos intrínsecos ao pacote.

Todo jurista que chega ao Ministério da Justiça faz sua própria proposta de reforma do código penal. São homens da lei e é sobre leis que sabem e gostam de falar, assim como os promotores públicos nas secretarias estaduais de segurança. Em geral, formam uma comissão de juristas notáveis para elaborar o anteprojeto. Moro teve pressa em mostrar trabalho nos primeiros dias e dispensou a comissão de notáveis: preferiu ele mesmo redigir a proposta com seus auxiliares, após algumas consultas. Incluiu nela aquilo que já percebia como obstáculo na sua vida pregressa como juiz, demandas populares por leis mais duras, novidades extraídas de filmes de bandido e mocinho americano e algumas idiossincrasias do presidente, como a proteção aos policiais envolvidos em confrontos com morte. Teve ao menos o bom senso de deixar de fora a questão do porte de armas.

Temos assim uma coisa que já sabíamos e esperávamos e outra que não sabíamos ainda. Como jurista que nunca passou pela administração pública, já era esperado que passasse de longe pelas questões relativas à gestão: recursos financeiros, reforma das polícias, novo pacto federativo, papel da Força Nacional de Segurança, sistema de inteligência, novas tecnologias, etc. tudo isso é desconhecido por quem passou a vida aplicando o código penal. E o que não está nos autos não está no mundo. Ocorre que nesta área gestão é tão ou mais importante que legislação: São Paulo, como sempre lembro, reduziu em 70% os homicídios sem alterar uma alínea do Código Penal (embora o Estatuto tenha sido aqui de grande auxílio).

O que ainda não sabíamos é até que ponto o ministro encamparia ou seria um anteparo às tendências “manu dura” e ao populismo penal do governo federal e dos novos congressistas. Equivocaram-se os que esperavam um legalista intransigente, defensor das garantias e direitos individuais: aparentemente, na visão dos juristas que o analisaram, o pacote atropela diversas jurisprudências estabelecidas e princípios constitucionais. Esperávamos que pelo menos de direito o Ministro entendesse.


Num pais com 63 mil mortos por homicídio, em seu primeiro mês o governo flexibiliza por decreto a posse de armas e propõe agora a flexibilização da legítima defesa para policiais envolvidos em confrontos. (causa de um quarto das mortes no Estado de São Paulo). Como secretário executivo da extinta Comissão de Letalidade da SSP, sei que é assunto onde não se pode ter falas ambíguas: qualquer mínimo sinal da cúpula de tolerância com relação aos confrontos termina na ponta como sinal verde para atirar, com resultados desastrosos para a polícia como um todo. E o sinal aqui não foi mínimo, vindo do próprio Ministro da Justiça e da Presidência. Polícias profissionais nos Estados e o poder judiciário, esperamos neste caso, deverão ser o anteparo aos excessos do governo federal.

Nem tudo no pacote é ruim e algumas iniciativas podem melhorar concretamente o desempenho dos órgãos policiais: o uso dos bens apreendidos pelos órgãos de segurança, os interrogatórios por videoconferência, diminuindo os deslocamentos de presos com escoltas, a obrigatoriedade de identificação por perfil genético dos condenados por crimes dolosos, o banco nacional de perfis balísticos e a criação do banco nacional multibiométrico, entre outras propostas. Na área da investigação criminal, merecem detalhamento também as propostas do informante do bem, e da admissão da escuta ambiental como prova, desde que íntegra. A aceleração do processo de perdimento dos bens pode ser útil no caso de aeronaves, embarcações e veículos, uma vez que a demora no processo é tamanha que os bens ficam inutilizados ao final do processo, perdendo valor de mercado. Também me parece acertada o aumento para três anos de permanência, renovável, para criminosos em presídios federais, embora o pacote peque desnecessariamente ao tentar criar uma lista de organizações criminosas, mencionando algumas explicitamente.

Há também as novidades inspiradas no tio Sam: as soluções negociadas, onde o suspeito assume de saída sua culpa e barganha o tipo e tamanho da condenação, evitando que o processo prossiga. Conhecendo a demora e precariedade da justiça brasileira e a falta de condições dos mais pobres para se defender, é possível que muitos inocentes simplesmente aceitem a barganha para evitar danos maiores e processos prolongados. Louvável, como intenção de desafogar o judiciário, mas só praticável nos países que assegurem que todos são minimamente iguais perante a lei, sem falar no aumento da discricionariedade do Ministério Público que a medida implica.

O pacote traz ainda a proposta do agente encoberto, para os casos de tráfico de drogas, lavagem de dinheiro ou venda de armas. Significa que o policial pode postergar um flagrante, mesmo presenciando um crime, em nome de uma futura prisão, que envolva criminosos de maior calibre e provas mais incriminadoras. Às vezes esta presença disfarçada pode implicar em que o policial seja cúmplice em algumas atividades ilegais. E que criminosos sejam induzidos a praticar crimes, no que se convencionou chamar de flagrantes preparados. Numa polícia com elevado grau de ética e integridade, esse expediente já seria arriscado. Não creio que seja admissível em nosso sistema jurídico nem recomendável no país das milícias.

No geral, grande parte das propostas aponta para o endurecimento do cumprimento das penas: execução provisória da condenação após 2º instancia, regime inicial fechado para certos crimes, aumento do tempo de cumprimento de pena antes da progressão, fim das saídas temporárias, criminalização do caixa dois, etc. O pressuposto básico aqui é de que a pena de prisão tem caráter intimidatório sobre o criminoso, o que é apenas parcialmente verdadeiro quando a probabilidade da prisão, como no Brasil, é diminuta. Leis baseadas nos mesmos pressupostos como a lei dos crimes hediondos, parecem ter tipo pouco efeito sobre a criminalidade no país. Será que desta vez o endurecimento penal trará os efeitos desejados, apesar das poucas evidências em favor? O resultado poderá ser o crescimento ainda maior da população prisional. Visando combater o crime organizado, o pacote pode ter o efeito contrário, piorando as condições de cumprimento de pena e aumentando a massa prisional à disposição das facções.

As medidas serão agora discutidas pela sociedade mais ampla e ainda devem ser analisadas tanto pelo Congresso – em tese favorável ao espírito do pacote – quanto pelo judiciário. Muita coisa ainda será arredondada antes de ser aprovada. Mas ele dá o tom de como será a gestão da segurança no governo federal, que começou mal reunificando os ministérios da justiça e segurança e com a edição do decreto flexibilizando a posse de armas.
O pacote tem algumas boas iniciativas, apesar de limitado e no geral revela uma falta de entendimento sobre o problema criminal do país. Como dizia Oliveira Viana, você pode ler todo um capítulo sobre filosofia do movimento diante de uma pedra, que ela não se moverá um milímetro. O crime, igualmente, é pouco afetado pela cominação de penas maiores no código penal. A regulação dos embargos infringentes não vai intimidar ninguém. Melhor começar a pensar com base nos paradigmas da prevenção e da gestão. Pensar em como utilizar melhor os imensos recursos que o superministério tem a sua disposição, e que independem da aprovação do Congresso. Criminólogos não entendem de embargos infringentes. Mas sabem que o controle da criminalidade é um trabalho arduo, de longo prazo, custoso, coletivo. Não existem fórmulas mágicas. Os bachareis, no congresso ou empossados em seus ministérios e secretarias, precisam parar de acreditar no poder mágico das leis.


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Estimando os estrangeiros irregulares na população (ou por que São Paulo tem a melhor comida do país)


A Polícia Federal estima que cerca de 750 mil estrangeiros vivam atualmente no Brasil, o que representaria cerca de 0,35% da população do país, ou 3,5 estrangeiros a cada 1000 habitantes. Esta porcentagem é baixa comparando com a média mundial de 34 estrangeiros a cada 1000 habitantes e mais baixa do que a dos países em desenvolvimento. Para dar uma ideia, nos EUA a porcentagem é de 14,6% e no Canadá chega a 21,8% .

Mesmo que seja subestimada, pois não leva em conta os ilegais, ainda assim estaríamos longe da média mundial. Também é baixa quando comparamos com nosso passado, quando os estrangeiros chegaram a representar 5% da população, como na década de 20. No geral, existem mais brasileiros vivendo fora do país do que estrangeiros aqui.

Chegando em busca de empregos e melhores condições de vida, a maioria dos imigrantes escolhe o Estado de São Paulo como local de residência e dentro do Estado, em especial, a cidade de São Paulo. Ainda que a porcentagem seja pequena, a tendência é crescente e é preciso adaptar os serviços públicos a esta demanda. É importante também para promover uma política de regularização de status, pois a condição de ilegal acaba sujeitando boa parte dos imigrantes a uma série de abusos, em especial trabalhistas.

Mas quantos são afinal, os estrangeiros vivendo na cidade de São Paulo? É difícil afirmar com precisão, pois os dados públicos, oriundos, por exemplo, do cadastro de estrangeiros da Polícia Federal (SINCRE) trazem apenas os registros oficiais. Muitos estrangeiros, todavia, entram com visto temporário e acabam ficando no país irregularmente além do tempo previsto. Outros, especialmente dos países limítrofes, chegam pelas fronteiras sem se registrar. Oficialmente, utilizando dados do SINCRE do período 2000 a 2017, teríamos cerca de 314 mil estrangeiros vivendo em São Paulo, em especial bolivianos, chineses, haitianos, peruanos e paraguaios.

A quantidade, como sabemos, pode estar subestimada, especialmente entre algumas comunidades onde existe o temor da deportação, falta de interesse, recursos ou conhecimentos para iniciar o processo de regularização. Mas quantos seriam os irregulares? Existe um modo de calcular esta subestimação?

Neste artigo propormos um método para calcular esta subestimação, baseado nas estatísticas municipais de natalidade. Assim como os suicídios cometidos com arma de fogo são uma proxy da quantidade de armas em circulação, a taxa de nascidos vivos pode ser uma proxy para estimar a população real de imigrantes numa comunidade.

Todo nascido vivo, seja em casa ou em maternidades públicas ou particulares, é obrigatoriamente registrado no sistema SINASC do Datasus. Na cidade de São Paulo, em virtude do aumento da população estrangeira, o formulário Declaração de Nascido é traduzido em diversas línguas, o que permite identificar a nacionalidade da mãe. Entre 2012 e 2014, aproximadamente 3% dos nascidos vivos em São Paulo foram filhos de não brasileiros, especialmente bolivianas, chinesas e paraguaias. Trata-se de um dado de notificação obrigatória, cuja cobertura é praticamente universal em São Paulo.

Quando comparamos, por nacionalidade, o número absoluto de nascidos vivos do SINASC com o número de estrangeiros cadastrados no SINCRE da Polícia Federal, e calculamos com base neles a taxa de natalidade bruta, notamos algumas distorções acentuadas.




Assim, por exemplo, pelo Sinasc sabemos que em 2014 nasceram 2.749 crianças cujas mães são bolivianas. Como pelo Sincre temos 83.816 bolivianos em São Paulo, isto equivale a uma taxa bruta de natalidade de 32,8 – quando na Bolívia a taxa média de natalidade por 1000 nascidos é de 22. No caso da China, a taxa média de natalidade é de 12:1000 mas em São Paulo chega a 22,8:1000. Entre os Libaneses a taxa média é de 14:1000 no país natal mas eleva-se a 17,5:1000 em São Paulo.

Regra geral, a taxa de natalidade das populações imigrantes deve ser menor do que a do país de origem e não maior. Isto porque os imigrantes são proporcionalmente mais homens, jovens e solteiros do que a população em geral. Além disso, dificuldades com a língua, socialização e econômicas dificultam a formação de famílias. Segundo os dados demográficos do Sincre, 71% dos haitianos migrantes são homens, porcentagem que chega a 84% entre os Nigerianos. Assim, é natural esperarmos que a taxa de natalidade bruta de haitianos e nigerianos observada em São Paulo seja menor do que em seus países de origem. Este perfil demográfico explica em parte porque em algumas comunidades a distorção é menor do que 1, indicando menos nascidos do que o previsto.

Uma interpretação possível para explicar a elevada taxa de natalidade bruta entre bolivianos, chineses e libaneses em São Paulo – superiores às observadas nos países de origem - é de que a população base usada no denominador é de fato maior do que a registrada pela Polícia Federal. É possível que existam outras explicações, como a melhoria das condições de vida. Mas como observamos, a expectativa é de que a natalidade seja menor no estrangeiro e melhoria de condições de vida costuma atuar em sentido contrário, diminuindo a taxa de natalidade.

É plausível argumentar, portanto que a explicação para a distorção resida na população imigrante ilegal, não registrada nos dados oficiais. E qual seria o tamanho desta população com status ilegal? Calculamos na tabela um indicador chamado “distorção”, que é a razão entre a taxa de natalidade no país originário e a taxa de natalidade observada em São Paulo. O procedimento, claro, tem ressalvas: a taxa de natalidade varia bastante com a idade, gênero e status conjugal da população imigrante e não pode ser equiparada à taxa do país originário. Em todo caso, na ausência de dados para proceder a uma estandardização da taxa, estamos supondo para efeitos de cálculo que o indicador “distorção” capture a diferença entre taxa de natalidade no país de origem e no país de destino. Aceitando-se este pressuposto, podemos utiliza-la para estimar o tamanho do contingente com status irregular na população.

Assim, por exemplo, na comunidade boliviana a distorção entre as taxas é de 1,49 (o que significa que a taxa observada em São Paulo é 49% maior do que a esperada). Isto significa que a população boliviana em São Paulo não deve ser de apenas 83 mil pessoas, mas algo mais próximo de 125 mil, 1/3 da qual em situação irregular. No caso da população chinesa, a julgar pela elevada distorção entre a taxa de natalidade local e a nativa, teríamos algo em torno de 63 mil chineses, mais de meio por cento da população de São Paulo, a maioria em situação irregular. Finalmente, os Libaneses estariam também algo sub-representados nas estatísticas oficiais, sendo mais correta a estimativa de 6 mil almas em São Paulo.

Nas demais comunidades, como pode ser notado, a taxa de natalidade em São Paulo foi abaixo da observada nos países originários, o que é esperado, dado a demografia e o contexto da imigração. Nestes casos, usamos os dados do SINCRE para estimar o tamanho da comunidade.

Se as inferências acima fazem sentido, temos em São Paulo aproximadamente 393 mil estrangeiros, equivalente a 3,58% da população da cidade. A quantidade é 25% maior do que a estimada pelos dados oficiais, em especial entre bolivianos, chineses e libaneses. O que significa que os esforços de regularização devem estar focados nestas comunidades, para evitar que a ilegalidade implique em envolvimento em atividades ilegais, de risco, insalubres e acelerar o processo de integração com a população nacional.

Não há que se temer a imigração. São Paulo tradicionalmente acolheu os estrangeiros e é hoje uma das cidades mais seguras e desenvolvidas do país, tanto econômica quanto social e culturalmente. Não por acaso, é considerada também a cidade onde melhor se come no país! Quanto antes estiverem integrados, melhor a qualidade de vida nestas comunidades e melhor para São Paulo. Não se trata de um jogo de soma zero: melhorando de vida, os estrangeiros contribuem para o aumento da riqueza geral.

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Política pública eficiente exige monitoramento ágil das informações



Já fiz este paralelo mais de uma vez: não dá pra fazer política pública de combate à inflação ou desemprego em 2019 utilizando dados de 2016. Na economia e outros setores estratégicos, isto seria impensável e há uma verdadeira profusão de bancos de dados e indicadores, prevendo antecipadamente o comportamento do mundo econômico.

Infelizmente, não há tanta pressa quando se trata de desenvolver bases de dados e indicadores na área da segurança pública. A vítima, afinal, está morta, perdeu a pressa que tinha, como o leiteiro de Drumond. E assim, o decreto presidencial que flexibilizou a posse de armas, utiliza como fonte o Atlas da Violência de 2018, com taxas de homicídio de 2016, as mais recentes disponíveis! Isto não é política baseada em evidências. É política baseada em memórias históricas...

Mas existem novidades na área. Antes, porém, um pouco de memória histórica. O SIM, Sistema de Informações sobre Mortalidade, foi criado pelo Ministério da Saúde em 1975, trazendo dados de mortalidade por agressões e outras causas mortis, por município e mês. Em 1979 o sistema já era informatizado. Demorou apenas 40 anos para que pudéssemos ter acesso aos dados, de uma forma minimamente desagregada e atualizada.
Todo o mês as Declarações de óbito são preenchidas e enviadas às Secretarias Municipais de Saúde, onde as informações são digitadas, processadas e consolidadas. De lá as informações municipais são consolidadas em nível estadual e finalmente enviadas à base federal. O dado é analisado, checado e distribuído em diversos níveis. Trata-se de um processo relativamente complexo e não se pode esperar que saibamos hoje os incidentes ocorridos ontem, sem perda de qualidade. Mas esperar três anos era demasiado.

Recentemente, o Ministério da Saúde disponibilizou na internet painéis de monitoramento de mortalidade do SIM e outras bases, que permitem recuperar informações sobre qualquer causa de mortalidade, por município e mês. É possível também desagregar os dados por sexo, faixa etária e raça da vítima, por local da ocorrência ou da residência, por tipo de local e diversas outras variáveis.
(http://svs.aids.gov.br/dantps/centrais-de-conteudos/paineis-de-monitoramento/mortalidade/cid10/)

O painel traz dados de 1996 até dezembro de 2018, o que é um enorme avanço, se pensarmos que os outros sistemas disponibilizam dados consolidados apenas até 2016. É preciso, todavia ter alguns cuidados. Os dados de 2017 e 2018 são considerados como provisórios, há um asterisco assinalando esta diferença e são passíveis de modificação posterior. De fato, se pegarmos os dados do último semestre de 2018, é fácil verificar que estão bem abaixo da média. Os municípios ainda estão digitando e consolidando estas informações. Por outro lado, os dados do primeiro semestre parecem bem consistentes, de tal modo que se houverem modificações, deverão ser de pequena monta. As tendências gerais e os surtos locais – como as mortes geradas em confrontos com o crime organizado – podem ser razoavelmente identificados.

Na imagem abaixo, vemos, por exemplo, a variação mensal das mortes por agressão no Ceará, de janeiro de 2001 a junho de 2018, a tendência de queda entre 2015 e 2016 e os picos durante os incidentes de 2017, na guerra de facções.

Para quem tiver interesse, montei no Tableau um série de visualizações a partir desta base de dados, usando o período 2001 à 2018, agregado por Estado e mês. (https://tuliokahn.blogspot.com/p/mortes-por-agressao-mensal-datasus.html)

O processo de coleta e checagem esta sendo aperfeiçoado e acredito que em breve, se houver esforço das agências envolvidas, seremos capazes de monitorar as tendências de mortalidade no país com apenas alguns meses de atraso. Um sistema de monitoramento epidemiológico é importante para identificar o impacto de políticas públicas, como por exemplo, o decreto de flexibilização do Estatuto e impedir – ainda que com atraso e custo de centenas de vidas - o agravamento do problema. Não chega a ser informação em tempo real, numa sala de situação. Mas é um avanço, se pensarmos que os dados existem em formato digital desde 1979!

O detalhe é que só temos hoje estas informações disponíveis porque o sistema de saúde se preocupou em organizar esta base de dados nacional nos anos 70. O sistema de justiça criminal, gerido pelos juristas de plantão, só começou a organizar suas bases décadas depois, culminando com o SINESP. De modo que para roubos, furtos, homicídios dolosos, estupros e outros crimes, só é possível baixar dados desagregados por município e mês para o ano de 2017, até junho. E isto desde o ano passado, pois anteriormente os dados apresentados, alguns poucos indicadores, além de ultrapassados em anos, eram agregados por ano e Estado.

A atual gestão federal da segurança parece mais preocupada em fazer política de segurança baseada em ideologia e princípios do que em evidências empíricas. Esperamos que tenham o bom senso de dar continuidade ao Sinesp, tornando-o cada vez mais atualizado, confiável e completo. Na ausência destes dados, continuaremos a ver as soluções mágicas para a segurança pública baseadas na reforma da legislação penal. E a ver o país bater recordes sucessivos de homicídios.




quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Direitos individuais e probabilidades: o decreto da posse de armas e a falácia ecológica




Pela regra anterior, para justificar a posse de uma arma de fogo, um cidadão precisava atender aos requisitos estabelecidos no Estatuto e, além disso, justificar a necessidade efetiva de uma arma junto à Polícia Federal, no seu caso específico. Assim, por exemplo, era a situação de uma testemunha ameaçada pelo crime organizado, um fazendeiro na fronteira com territórios onde atuam grupos terroristas, um motorista que faz entregas frequentes de mercadorias visadas em comunidades dominadas pelo tráfico, etc.

Era preciso juntar evidências deste risco particular – cujas situações são as mais variadas e não se pode listar numa norma jurídica - e cabia ao Delegado aceitar ou não as justificativas apresentadas. Embora implique numa dose de subjetividade por parte de quem decide, tratava-se de avaliar um risco individual. Se bem documentado e instruído, a posse era concedida e nestes anos milhares de pedidos foram aprovados pela Polícia Federal, com base na análise de cada caso em particular.

O decreto presidencial flexibilizou a posse de armas de fogo para diversas categorias de pessoas e situações genéricas, sob o pressuposto de que se considera presente a efetiva necessidade. Em outras palavras, para pessoas e situações que pretensamente estão mais expostas aos riscos e que precisariam de uma arma para se defender.

É o caso dos agentes públicos que fazem parte do sistema de justiça criminal, dos residentes em área rural, dos residentes em áreas urbanas com “elevados índices de violência”, assim consideradas aquelas localizadas em unidades federativas com taxas de homicídios superiores a 10:100 mil, além dos proprietários de estabelecimentos comerciais e industriais e colecionadores, atiradores e caçadores.

Estes critérios, desnecessário dizer, estão longe de ser “objetivos “ e estão calcados em duas falácias. A primeira é de que a arma diminui o risco de seu proprietário, tema sobre o qual existe ampla literatura sugerindo o contrário. A segunda é a que chamamos nas ciências sociais de ”falácia ecológica”. [1] Em linhas gerais, é um erro formal de inferência na interpretação de dados estatísticos, onde inferências a respeito de indivíduos são deduzidas de inferências sobre o grupo a que estes indivíduos pertencem. Em outras palavras, não se pode inferir que o risco individual de morte por homicídio seja alto apenas com base na taxa de homicídio agregada em nível estadual.

Com efeito, o risco pessoal de homicídios varia segundo um grande número de fatores. Homicídios são concentrados no espaço o que significa que dentro do estado existem municípios com altas e baixas taxas de homicídio e dentro das cidades, bairros com elevadas e baixas taxas de homicídio. O risco varia também fortemente com a idade e o gênero, sendo maiores para jovens do sexo masculino e menores para mulheres idosas. São maiores para não brancos do que para brancos, para pobres do que para ricos. O estilo de vida também afeta o risco, como o consumo de álcool e drogas, estar casado ou tipo de emprego.

Se for para levar a sério o conceito probabilístico de risco e justificar a efetiva necessidade com base nele, a implicação seria que a posse de armas deveria ser garantida apenas aos jovens não brancos do sexo masculino, pobres e moradores da periferia dos grandes centros urbanos. O risco de morte por homicídios de homens mais velhos e brancos, residentes nas áreas nobres das cidades, - que são os que clamam pela legítima defesa - é bastante menor e raramente alcançaria a taxa de 10 por 100 mil, mesmo nos Estados mais violentos.

O mesmo se pode argumentar com relação à “área rural” ou proprietário de estabelecimento comercial ou industrial. Regra geral, áreas rurais são menos violentas do que áreas urbanas e existe uma variedade enorme de situações diferentes encobertas sobre a categoria “área rural”. Uma fazendo na divisa com a Venezuela tem o mesmo risco e necessidade de um sítio de veraneio em Atibaia? De uma fazenda de cocos no litoral da Bahia? Em todas existe a efetiva necessidade? Ou em todos os estabelecimentos comerciais ou empresariais? Imagino que os autores do decreto tinham em mente aqui o risco de roubo e não o de homicídio. Se for este o caso, deveriam ter utilizado como critério de corte a taxa de roubo e não a taxa de homicídios. E mesmo utilizando taxa de roubo como indicador, as ressalvas são as mesmas: depende da localização, do perfil do indivíduo, estilo de vida e dezenas de outras variáveis.

As estatísticas mostram um risco probabilístico médio e não são suficientes para caracterizar os riscos individuais. O critério estatístico, apesar da aparente objetividade, é tão ou ainda mais subjetivo do que a fórmula anterior. A rigor, me parece que a análise de um processo individual onde um cidadão apresenta suas justificativas, inclusive as taxas de criminalidade local, é muito mais objetivo que o modelo atual, que pressupõe equivocadamente que todos os membros de determinada categoria ou local são expostos aos mesmos riscos e tenham as mesmas necessidades.




Pensemos num outro contexto onde probabilidades estatísticas e direitos individuais estão em conflito. As polícias tem o perfil estatístico dos grupos mais frequentemente envolvidos em crimes violentos contra o patrimônio: jovens, desempregados, pobres, não brancos, moradores de periferia, etc. Com base neste “profile” estatístico, é legitimo conduzir buscas individuais nas ruas? A sociedade entende que não, pois se trata de uma probabilidade e basear revistas pessoais com base nelas fere direitos fundamentais. Só a suspeita fundamentada é que justifica, em tese, que alguém seja parado e revistado pela polícia. (suspeita fundamentada = efetiva necessidade). Existem também estudos estatísticos precisos que mostram que perfil de presos tem maior probabilidade de reincidir. Temos o direito de impedir que todos os indivíduos com aquele perfil sejam soltos, mesmo sabendo que a probabilidade de reincidência é elevada? Novamente, a sociedade entende que não, pois a probabilidade nunca é de 100% e estaríamos ferindo direitos individuais. Se não podemos ferir direitos individuais com base em critérios probabilísticos, podemos garantir “direitos individuais” com base nestes mesmos critérios?

A inconsistência dos critérios estabelecidos pelo Decreto deriva de questões mais profundas. A argumentação dos defensores da flexibilização sempre foi de ordem filosófica e moral: acham que todos devem ter o direito a legitima defesa e às armas, por princípio. Não interessa se do ponto de vista coletivo o resultado é desastroso e se a medida traz externalidades. E caíram na armadilha de tentar justificar a medida tomando por base o conceito de risco, que é probabilístico e não serve bem para justificar direitos individuais. Estas contradições talvez expliquem em parte a precariedade técnica do Decreto.

O fato é que com a flexibilização do Estatuto e o aumento da quantidade de armas em circulação, teremos um aumento do risco coletivo: é alta a probabilidade de crescimento dos suicídios, feminicídios e acidentes com armas de fogo, sem falar no aumento de armas para o mercado ilegal, onde serão utilizadas nos roubos e latrocínios. E sabemos disso porque os crimes e eventos  relacionados a armas caíram – ou subiram menos do que o previsto – depois do Estatuto. Dizer que as elevadas taxas de homicídio atuais provam que o Estatuto não funcionou é outra falácia de inferência, pois é preciso pensar contrafactualmente. Existe o conceito de direito de defesa coletiva? Se existisse, deveríamos invoca-lo para sustar o Decreto, pois ele ameaça este direito.

Mas os defensores da legítima defesa não estão preocupados com pesquisas e estatísticas, ou com o fato de estratégias individuais gerarem frequentemente desastres coletivos. Estão, na melhor dar hipóteses, preocupados com direitos, questões filosóficas e os perigos do comunismo. Na pior das hipóteses, em devolver recursos aos patrocinadores de suas campanhas eleitorais.








[1] An ecological fallacy (or ecological inference fallacy)[1] is a formal fallacy in the interpretation of statistical data where inferences about the nature of individuals are deduced from inferences about the group to which those individuals belong. Ecological fallacy sometimes refers to the fallacy of division, which is not a statistical issue. The four common statistical ecological fallacies are: confusion between ecological correlations and individual correlations, confusion between group average and total average, Simpson's paradox, and confusion between higher average and higher likelihood.

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