segunda-feira, 8 de junho de 2015

quinta-feira, 21 de maio de 2015

O que os criminosos podem nos dizer sobre os crimes?


Para conhecer a criminalidade ouvimos as vítimas, as testemunhas, investigamos as características do local, as evidências forenses, os padrões estatísticos, etc. Mas esquecemo-nos quase sempre de ouvir um dos atores principais deste drama: o criminoso.

No Brasil pelo menos, uma vez desvendado o crime e preso o suspeito, perde-se totalmente o interesse por ele. Em outros países os presos são estudados para saber sobre facilidade de acesso a armas e drogas, modus operandi, técnicas de dissuasão, carreira criminal. Aqui são bastante raras as pesquisas que procuram explorar mais informações desta fonte valiosa e menosprezada.

Uma exceção foram dois relatórios produzidos pelo Depen em 2007 e 2008 com o perfil dos presos nos estabelecimentos federais. A amostra de 249 casos é enviesada pois só vão para os presídios federais de segurança máxima os presos que oferecem perigo nos seus estados de origem, que cometeram crimes graves e exerciam alguma liderança nos presídios estaduais. A metodologia também peca por não garantir anonimato. Não obstante, ainda assim a pesquisa traz inúmeros insights sobre fatores de risco e de proteção para o envolvimento com o crime e sobre o que pensam os criminosos sobre alguns temas.

Assim, por exemplo, o perfil aponta que em média 13% dos entrevistados serviu o exército, proporção maior do que o percentual nacional, que gira em torno de 4,5 a 5% dos alistados em cada ano. Fazer o serviço militar não parece ser um fator protetivo para o envolvimento com o crime, mas antes o contrário. O afastamento do mercado de trabalho e da escola e a familiarização com armas de fogo e táticas de combate podem ser incentivos para o envolvimento com o crime?

Mais de 40% cresceram em lares onde os pais eram separados, a mãe solteira ou o pai desconhecido, corroborando a literatura criminológica que aponta lares monoparentais como fator de risco criminal. Cerca de 60% eram provenientes de famílias numerosas e tinham mais de quatro irmãos, o que implica em menor supervisão parental. Ainda no rol dos fatores de risco vemos a baixa renda familiar (55% com renda familiar inferior a 3 salários), a ausência de crença religiosa (17,6% entre os presos de Catanduva X 9,7% entre os homens em geral, no Censo de 2010), envolvimento prévio de algum familiar com crime (26,4% dos presos em Catanduva e 37% em Campo Grande declararam familiar preso, principalmente por roubo, homicídio e tráfico), o envolvimento com drogas (61% dos presos de Catanduva e 51% de Campo Grande já usaram drogas na vida, em especial maconha, cocaína e crack em contraste com 11% da população adulta, estimado pelo LENAD 2012),  início precoce na criminalidade (cerca de 63% dos presos de Catanduva e quase metade dos de Campo Grande cometeram o primeiro delito antes de completar 21 anos). Baixa escolaridade e desemprego ou emprego precário também figuram na lista dos fatores de risco (58% dos entrevistados nesta situação na época do primeiro delito) embora esta condição seja comum entre os jovens.

A pesquisa perguntou as razões que os levaram a cometer o primeiro delito e os criminosos de Catanduva listaram, nesta ordem: dificuldades financeiras (28,6%), más companhias (25%), não sabe dizer (21,3%), desemprego (7,3%), desentendimento (7,3%) e drogas (5,8%). Em Campo Grande a ordem foi:  más companhias (41,4%), dificuldades financeiras (25,2%), desemprego (9,9%), drogas (9,9%), curiosidade (7,2%) e desentendimento (7,2%).

Embora a motivação varie em função do tipo de crime, é curioso que os criminosos apontem as más companhias como um dos principais motivos. Andar com pares delinquentes é um dos grandes fatores de risco na literatura criminológica e algo pouco estudado por aqui. Por outro lado, as drogas, que merecem grande destaque entre os “especialistas” como responsáveis pela criminalidade, aparecem relativamente pouco nas menções dos criminosos.

Outro aspecto de interesse para o entendimento de políticas públicas dissuasórias é conhecer o que temem os criminosos. Pelo menos para os entrevistados de Catanduva, a pena de prisão aparenta não ter muito efeito intimidatório: apenas 1,5% dos detidos ali respondeu que teve medo de ser preso quando cometeu o delito. Sendo correta a estimativa, de pouco adianta a ameaça de penas maiores se o criminoso não teme a prisão ou acha que a probabilidade de ser capturado é baixa. Com efeito, 36% deles afirmaram não ter medo de nada e os maiores medos confessados foram trocar tiros com a polícia ou as vítimas (22%) ou ser reconhecido ou visto por alguém (11%). A questão precisa, contudo, ser melhor explorada em futuras pesquisas pois as estimativas foram bastante diferentes entre os detidos em Campo Grande, onde 48,6% confessou que o maior medo no início da vida no crime era ser preso...


Mais do explorar os resultados substantivos destes dois levantamentos, a intenção aqui é chamar a atenção para um tipo de fonte e de metodologia que é pouco utilizada no Brasil mas que pode trazer subsídios relevantes para ajudar a traçar políticas de segurança pública mais eficientes, atuando sobre os fatores de risco.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Idade mínima de responsabilização criminal – em quem queremos nos espelhar?



A CRIN (Childs Rights International Network) é uma rede que monitora os direitos das crianças pelo mundo desde 1991. O site da rede atualiza sistematicamente a idade da responsabilidade penal nos diversos países (MACR – minimal age of crime responsability) e em quais deles se está discutindo o rebaixamento ou o aumento da idade penal.

Uma consulta ao site revela que Dinamarca (2010), Geórgia (2008), Hungria (2012) e Panamá (2010) passaram legislações recentes diminuindo a idade de responsabilização penal (em geral, de 14 para 12 anos, lembrando que no Brasil, na minha interpretação e de muitos outros,  a idade de responsabilização já é de 12 anos e não de 18. Dos 12 aos 18 temos uma justiça juvenil específica e o cumprimento de medidas de internação em estabelecimentos separados, mas há responsabilização pelo ECA ).

Além destes quatro países, estavam em discussão medidas de rebaixamento na Argentina, Bolívia, Brasil, França, Índia, Coreia, México, Peru, Filipinas, Rússia, Espanha e Uruguai – neste último um plebiscito rejeitou o rebaixamento em outubro de 2014.

O debate ocorre nas mais diferentes regiões do planeta – Américas do Sul e Central, Europa, Ásia – mas há uma concentração em países de língua hispânica (7 dos 15 países). Pode existir assim um efeito contágio, com países emulando a discussão de outros similares.

Na maioria dos casos o rebaixamento vale para crimes graves como os homicídios, mas os dados não nos permitem ainda tirar conclusões sobre o efeito da medida sobre os homicídios pois as séries históricas disponíveis são curtas. Além disso, podem existir inúmeras outras variáveis não controladas que expliquem as tendências observadas, para além da alteração da idade penal. Tampouco os dados parecem muito confiáveis e seria preciso aperfeiçoar a coleta antes de tentar alguma avaliação válida.

Em todo caso, uma curiosidade é que a discussão veio à tona não apenas em países onde os homicídios são elevados e crescentes (Bolívia, México, Panamá, Peru, Brasil), mas também em países onde os homicídios são relativamente baixos e não apresentam tendência aparente de crescimento, como Dinamarca, França, República da Coreia, Espanha ou Hungria). Assim, o nível – considerado em termos de taxa e não absolutos - ou tendência dos homicídios não parecem explicar integralmente o interesse pela questão do rebaixamento da idade penal nos países.

É possível que outros crimes, como roubos, tenham aumentado em alguns destes países, inflando a sensação de insegurança e estimulando os parlamentos a passarem resoluções mais “duras” contra o crime, no ciclo bem conhecido de criação legislativa denominado “populismo penal”. Assim, é preciso acompanhar também as tendências subjetivas de insegurança, pois estas podem crescer mesmo que os crimes estejam com tendência de queda.

A cobertura de crimes graves cometidos por crianças e adolescentes, por exemplo, pode servir de estopim para aumentar a insegurança e reascender as discussões. Foi o caso na Espanha em 2009 após duas meninas serem violentadas por um grupo de meninos de 12 e 13 anos e do Brasil após o assassinato de um casal de adolescentes em 2003. Finalmente, em alguns países os tratados internacionais assinados e a Constituição dificultam ou vedam o rebaixamento, impedindo que o debate prolifere.

Em resumo, a emergência da discussão sobre idade mínima de responsabilização penal, como qualquer alteração penal significativa, envolve um contexto complexo do qual fazem parte não apenas os níveis e tendências criminais, mas também a inseguridade subjetiva, contágio, eventos históricos específicos e o sistema legal de cada país.

E qual o padrão de idade mínima observada nos outros países? Esta discussão é confusa pois uma coisa é a idade mínima de responsabilização penal (MACR) e outra é a idade em que o indivíduo para a ser julgado plenamente de acordo com a legislação penal comum, por um juizado comum e cumpre pena em estabelecimento penal comum, como adulto. Em geral, como no Brasil, temos não uma, mas duas ou mais idades limite: antes dos 12 anos, nenhuma responsabilização, dos 12 aos 18 há responsabilização, mas o jovem esta sujeito a uma legislação especial (ECA), a uma justiça especial e cumpre medida sócio educativa em estabelecimentos juvenis.

O mesmo ocorre em boa parte dos demais países. A média mundial de 225 países é de 11,3 anos, maior na Europa e menor na África e Ásia, mas bastante próximo ao que o ECA estabelece no Brasil, que é 12 anos.

Mas, como discutido, isto não quer dizer que acima desta idade os jovens sejam tratados nestes países como adultos plenos pela justiça. Em boa parte dos países há uma faixa intermediária onde, como vimos, aplicam-se leis e procedimentos específicos, próprios para jovens. Esta faixa no Brasil vai até os 18 anos, assim como na média da Europa Ocidental e da América do Sul. Tomando todos os países a média cai para 15,2 anos, puxada para baixo pela Oceania.

Embora acima da média mundial neste segundo limite, não somos um caso único ou extravagante quando adotamos estes limites, mas estamos em linha com a legislação de um grupo de países “avançados”. Mas, mais importante que a definição dos limites é saber se, uma vez ultrapassado, o jovem passa a responder plenamente como adulto ou se ainda será protegido de algum modo pela sociedade, com leis próprias, avaliado por um ramo especializado da justiça e submetido a internação, em último caso, em estabelecimentos adequados a sua etapa de desenvolvimento.

Não estão em jogo aqui apenas argumentos utilitários – como os efeitos sobre a criminalidade – ou biológicos, sobre a partir de que momento na vida o ser humano passa a ter capacidade de compreender plenamente seus atos. Trata-se antes de tudo de uma opção de política pública, de uma escolha sobre o tipo de sociedade que queremos ser.


Fontes:

sexta-feira, 24 de abril de 2015

A ambiguidade brasileira com relação ao terrorismo



O Brasil está pouco aparelhado para prevenir atentados e atividades terroristas em seu território. Tais atividades não são meras hipóteses fantasiosas: sabe-se parte da trama para o atentado do Hezbolah à AMIA na Argentina em 1994, que resultou em 96 mortos, passou livremente pela embaixada iraniana no Brasil e que o alvo não foi aqui apenas porque na Argentina teria mais visibilidade e acarretaria menos danos diplomáticos caso a trama fosse descoberta, como foi. Na tríplice fronteira, há relatos sistemáticos de que o tráfico de armas, drogas, contrabando e falsificação são utilizados para o financiamento de atividades terroristas. Em diversas ocasiões as Farcs adentraram em território brasileiro, a mais ruidosa em 1991, quando mataram três militares e feriram nove. Como os episódios são raros, o tema tem baixa prioridade na agenda política.

Esta falta de preparo ocorre em diversos níveis: embora o Brasil tenha ratificado 14 dos 18 documentos internacionais sobre o tema, não há lei atualizada que tipifique terrorismo em nossa legislação interna (apenas menção na antiga Lei de Segurança Nacional de 1983 e na lei que define os crimes hediondos, de 1990), não há doutrina, treinamento, bases de dados, equipamentos, contatos internacionais. E o serviço de inteligência, outrora famoso pela sua capilaridade, foi praticamente desmontado após a redemocratização, carecendo de recursos humanos, tecnológicos e de capacidade legal para agir: a ABIN não pode fazer escutas, infiltrar agentes ou valer-se da técnica investigatória da “ação controlada”.
A origem comum destas mazelas pode estar na cultura em favor dos movimentos armados que se desenvolveu na América Latina durante o período de resistência aos regimes autoritários, a partir dos anos 60. Durante este período, aqueles que pegaram em armas para combater os governos militares foram taxados de “terroristas” pelos então donos do poder. As Forças Armadas, serviços de inteligência e polícias locais foram instrumentalizadas para combater a ameaça terrorista e comunista. De fato, boa parte destes movimentos insurgentes que pegaram em armas na América Latina não lutava pela volta ao regime democrático e retorno dos direitos civis, mas antes pela instauração de um regime comunista, igualmente autocrático.

Como quer que seja, há uma confusão conceitual sobre o que é uma luta legítima pela liberdade nacional diante de um regime autoritário e o que é “terrorismo”. O que é vandalismo, crime organizado ou formas violentas de pressão dos movimentos populares, mas que tampouco se confundem com terrorismo. Com a derrocada dos regimes autoritários e a ascenção dos grupos de esquerda ao poder, que através das eleições alçou a cargos importantes muitos dos antigos insurgentes, estas questões, ao menos no Brasil, ficaram adormecidas por muitos anos: os serviços de inteligência definharam, terrorismo jamais foi tipificado ou seriamente discutido ou combatido.

Culturalmente, grupos terroristas como as FARCS, Tupac Amaru, Sendero Luminoso, os Montoneros e MIR gozam de prestigio entre os militantes de esquerda e na política externa brasileira, assistimos a uma aproximação amistosa com governos que patrocinam o terrorismo internacional. Na esfera internacional, o discurso brasileiro é de que é preciso ver as causas sociais do terrorismo e o país não qualifica as Farcs, por exemplo, como organização terrorista...

Após a Lei de Segurança Nacional de 1983, o tema voltou episodicamente a ser abordado após os atentados de 11/9 nos EUA, dos ataques do PCC em São Paulo em 2006 e, mais recentemente, quando o Brasil se candidatou a sediar eventos internacionais importantes, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Diante do risco de ameaças terroristas aos eventos, nos demos conta do nosso enorme despreparo: o Congresso tenta passar uma legislação mais adequada, que permita atuar contra grupos terroristas sem confundi-los com os movimentos sociais e as forças de segurança recebem treinamentos acelerados e equipamentos vistosos. No sistema de busca do Congresso encontramos nada menos do que 67 proposições onde consta a palavra chave terrorismo.

Um sistema eficiente de monitoramento não se estabelece, contudo de um momento para outro e nem por decreto: é preciso desenvolver uma doutrina sólida, estabelecer redes de contatos, ter acesso a bancos de dados, intercâmbio com outras agências, estabelecer os marcos legais para a atuação, investir muito esforço e dinheiro em tecnologia de ponta. Tipificar o crime é a parte mais fácil; difícil é se organizar adequadamente para preveni-lo e combate-lo.
Se algo de pior não aconteceu até hoje não é em função da eficiência do nosso sistema de segurança. Deve-se muito mais a esta simpatia generalizada de que o Brasil goza internacionalmente e eventualmente ao flerte dos últimos governos com grupos (Farcs) e países patrocinadores do terrorismo como Líbia, Síria e Iran. O que nos protege é nossa imagem de país pacífico e amigável e certa ambiguidade moral com relação ao uso da violência para fins políticos.

terça-feira, 31 de março de 2015

Delinquência juvenil se resolve aumentando oportunidades e não reduzindo idade penal


Tulio Kahn*

 obs: este artigo foi publicado na Falha de S.Paulo há 15 anos, mas como alguns argumentos ainda são válidos, segue para reflexão sobre o tema
Com a justificativa de que “a medida já é adotada no mundo inteiro” e de que os menores de idade “são utilizados pelo crime organizado para acobertar as suas ações”, o Congresso Nacional discute no momento a alteração da menoridade penal, retirando a previsão de inimputabilidade para menores de 18 anos e delegando a questão à lei específica que estabeleça um novo limite etário, que leve em conta “os aspectos psicossociais do agente”. O deputado e ex-coronel Alberto Fraga vai ainda mais longe e sugere que a idade limite deva ser fixada aos 11 anos de idade. Não está longe o dia em que algum parlamentar, preocupado com a delinquência juvenil, proporá emenda sugerindo a internação imediata de todos os recém-nascidos de famílias pobres, cuja soltura eventual ficará condicionada ao exame de suas características psicossociais.
O argumento da universalidade da punição legal aos menores de 18 anos, além de precário como justificativa, é empiricamente falso. Dados da ONU, que realiza a cada quatro anos a pesquisa Crime Trends (Tendências do Crime), revelam que são minoria os países que definem o adulto como pessoa menor de 18 anos e que a maior parte destes é composta por países que não asseguram os direitos básicos da cidadania aos seus jovens.
DEFINIÇÃO DE ADULTO
FREQÜÊNCIA
PORCENTAGEM
Homem Idade 16 ou acima, Mulher Idade 18 ou acima
1
1,7
Pessoa Idade 15 ou acima
3
5,2
Pessoa Idade 16 ou acima
4
7,0
Pessoa Idade 17 ou acima
2
3,5
Pessoa Idade 18 ou acima
35
61,4
Pessoa Idade 19 ou acima
3
5,2
Pessoa Idade 20 ou acima
3
5,2
Pessoa Idade 21 ou acima
4
7,0
Pessoa Idade 21 ou acima, ou Pessoa Casada
1
1,7
Pessoa Responsável Idade 18 ou acima
1
1,7
Total
57
100,0
Fonte: Crime Trends / ONU
Das 57 legislações analisadas, apenas 17% adotam idade menor do que 18 anos como critério para a definição legal de adulto: Bermudas, Chipre, Estados Unidos, Grécia, Haiti, Índia, Inglaterra, Marrocos, Nicarágua, São Vicente e Granadas. Alemanha e Espanha elevaram recentemente para 18 a idade penal e a primeira criou ainda um sistema especial para julgar os jovens na faixa de 18 a 21 anos.
Com exceção de Estados Unidos e Inglaterra, todos os demais são considerados pela ONU como países de médio ou baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), o que torna a punição de jovens infratores ainda mais problemática. Enquanto nos EUA e Inglaterra a juventude tem asseguradas condições mínimas de saúde, alimentação e educação, nos demais países – como o Brasil – isto está longe de acontecer. Nos países desenvolvidos pode fazer algum sentido argumentar que a sociedade deu aos jovens o mínimo necessário e, com base nesse pressuposto, responsabilizar individualmente os que transgridem a lei. Por outro lado, na Nicarágua, Índia ou no Brasil, este pressuposto é totalmente falso: em todo o país, apenas 3,96% dos adolescentes que cumprem medida socioeducativa concluíram o ensino fundamental. É imoral querer equiparar a legislação penal juvenil brasileira à inglesa ou norte-americana - esquecendo-se da qualidade de vida que os jovens desfrutam naqueles países. Que o Estado assegure primeiro as mesmas condições e depois, quiçá, terá alguma moral para falar em responsabilidade individual e alterar a lei.
Não se argumente que o problema da delinqüência juvenil aqui é mais grave que alhures e que por isso a punição deve ser mais rigorosa: tomando 55 países da pesquisa da ONU como base, na média os jovens representam 11,6% do total de infratores, enquanto no Brasil a participação dos jovens na criminalidade está em torno de 10%. Portanto, dentro dos padrões internacionais e abaixo mesmo do que se deveria esperar, em virtude das carências generalizadas dos jovens brasileiros. No Japão, onde tem tudo, os jovens representam 42,6% dos infratores e ainda assim a idade penal é de 20 anos. Se o Brasil chama a atenção por algum motivo é pela enorme proporção de jovens vítimas de crimes e não pela de infratores.
É típico da estrutura do pensamento conservador argumentar em abstrato e jogar a discussão para o plano da responsabilidade individual, como se as pessoas e suas “características psicossociais” pairassem no vácuo. Uma análise superficial da origem dos infratores é suficiente para mostrar como “responsabilidade” e “moralidade” estão longe de ser atributos distribuídos aleatoriamente pela sociedade. 
A Secretaria de Desenvolvimento e Bem Estar Social, que administra a Febem, divulgou recentemente um estudo sobre os bairros de origem dos internos da instituição. Não por acaso, existe uma elevada correlação com os bairros mais violentos de São Paulo: Sapopemba, Capão Redondo, Jardim São Luis, Grajaú, Cidade Ademar, Brasilândia e Jardim Ângela foram os bairros com maior número absoluto de homicídios entre 1996 e 1999. Cerca de ¼ dos internos da Febem paulista residiam precisamente nestes locais. O gráfico abaixo mostra a estreita correspondência entre o número de homicídios nos 96 bairros da Capital e o número de internos na Febem, por bairro.
Isto significa que estes jovens cresceram em contextos extremamente violentos, criados na periferia de uma das cidades mais violentas do planeta. Diante desta forte associação entre delinqüência e contexto de socialização, como argumentar que se tratou de uma “opção” pela marginalidade e querer responsabilizar individualmente o adolescente por “decidir” delinqüir?
Rebaixar a idade penal para que os indivíduos com menos de 18 não sejam utilizados pelo crime organizado equivale a jogar no mundo do crime jovens cada vez menores: adote-se o critério de 16 e os traficantes recrutarão os de 15, reduza-se para 11 e na manhã seguinte os de 10 serão aliciados como soldados do tráfico.
A idéia de que a medida tem um impacto intimidatório e que contribuiria para diminuir a criminalidade não se sustenta, pois a cadeia já se demonstrou punição insuficiente para refrear aos adultos. Ao contrário, a experiência precoce na cadeia contribuirá para aumentar ainda mais a criminalidade uma vez que a taxa de reincidência no sistema carcerário é superior a taxa nas instituições juvenis: 
Em resumo, além de imorais numa sociedade excludente como a brasileira, os argumentos da universalidade do rebaixamento e de que a medida contribuiria para reduzir a criminalidade ou o crime organizado são equivocados. Responsabilizar diferentemente um jovem de 17 e outro de 18 anos por atos idênticos é uma opção de política criminal adotada na maioria dos paises desenvolvidos, que procuram oferecer oportunidades diferenciadas para que o jovem supere o envolvimento com o crime. Não se trata de sua capacidade de entendimento e sim da inconveniência de submetê-los ao mesmo sistema reservado aos adultos, comprovadamente falido. Baixar a idade penal é baixar um degrau no processo civilizatório. Ao invés disso, propomos aumentar as oportunidades que a sociedade brasileira raramente concede aos seus jovens.

*Tulio Kahn, 35, é doutor em ciência política pela USP e coordenador de pesquisa do Ilanud – Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinqüente. www.conjunturacriminal.com.br

terça-feira, 17 de março de 2015

Um exercício teórico sobre contagem de multidões



No exercício abaixo estimamos a população presente na manifestação da Av Paulista no dia 15/3 em cerca de 240 mil pessoas. Não contamos com fotos aéreas nem com pessoas em campo para fazer as medições empíricas. Partimos de um cálculo puramente teórico levando em conta os seguintes parâmetros:

-extensão da avenida: 2.700 mts
- largura: 27,6 mts (12,6 em cada pista e 2,4 do canteiro central)
- densidade: 3 faixas, seguindo os critérios de Jacobs. Uma mais densa (4,3 pessoas por metro) ao redor do Masp, decaindo para 2,4 e 1,08 nos extremos da avenida. A densidade média, conservadora, foi de 2,34 pessoas por metro.
- a avenida foi dividida em 28 fatias com 2760 metros cada (total 77.280 mts) e acrescentamos em cada faixa 10% de sua população estimada, de modo a incluir as pessoas nas áreas adjacentes, que se concentravam principalmente nas esquinas.
- como o evento dura várias horas, existe uma troca de participantes no decorrer do tempo. Estimamos uma taxa de turn over de 20% dos participantes.

Estes foram os parâmetros utilizados para chegar a uma estimativa conservadora de 238.520 participantes (próxima aos 210 estimados pelo Datafolha) no dia 15 de março. Usando os mesmos critérios, a manifestação da CUT/MST de sexta feira (3 blocos compactos, sem áreas adjacentes, sem turnover, usando apenas meia faixa, etc.) teria contado com 45.713 participantes.

Numa estimativa menos conversadora, vamos supor que a densidade em todas as faixas fosse de 4,3 pessoas/mt e que a taxa de turn over foi de 25% e não apenas 20%. Usando estes inputs mais otimistas, o cálculo é de 461.168 pessoas.

No gráfico abaixo estão representadas cada uma das 28 fatias da Paulista, tendo o MASP como marco zero, com suas respectivas densidades e estimativas de participantes:


Como argumentamos, estes são apenas exemplos teóricos sobre como realizar a contagem mas não é possível chegar a uma estimativa concreta sem as fotografias aéreas, levantamentos empíricos da densidade em cada faixa, turn over e outros dados que compõem a fórmula.

De todo modo, a estimativa de 1 milhão de pessoas parece exagerada, pois isto significaria algo em torno de 9 pessoas por metro (algo próximo a um ônibus lotado) por toda a extensão da Paulista, o que é improvável e não corroborado pelas fotografias. Imagino que para chegar a estimativa de 1 milhão de pessoas a PM tenha incluído uma grande área adjacente no cálculo e / ou adotado uma taxa de renovação maior do que a usada neste exercício. O Datafolha, por sua vez, parece não levar em conta as áreas adjacentes na sua metodologia. Seria interessante conhecer os respectivos cálculos.

Ps: organizadores da Parada Gay e de manifestações religiosas já falaram em 2,5 milhões e até 4 milhões de pessoas na Paulista, o que é impossível sem revogar as leis da física...

segunda-feira, 16 de março de 2015

Contando Multidões



Contar quantas pessoas comparecem a um evento pago, em recinto fechado ou espacialmente delimitado - como um show musical ou partida de futebol - é moleza. Basta contar os ingressos vendidos ou saber de antemão a capacidade de lugares disponíveis.

O procedimento fica algo mais complexo quando se trata de estimar o número de pessoas num evento em local aberto, com várias horas de duração, sem espaço delimitado. É preciso observar o epicentro da manifestação e as ruas adjacentes. Estimar quantos indivíduos chegam e quantos saem durante o evento. Calcular a extensão das áreas e as diversas densidades de ocupação. Descontar os vazios provocados por obstáculos naturais ou arquitetônicos. Acrescentar áreas cobertas ou sombreadas, etc.

Não se trata apenas de curiosidade ou de ter um número para esgrimir politicamente para inferir o sucesso ou fracasso do evento. Uma estimativa razoável do público é necessária para a alocação de recursos operacionais, como policiais, ambulâncias, banheiros, controlar o tráfico e diversos outros objetivos operacionais.

Assim, jornalistas, organizadores dos eventos e órgãos policiais procuram fazer suas estimativas do público. O problema é que elas raramente coincidem e frequentemente são bastante díspares. Não se trata apenas de distorções propositais politicamente motivadas mas do uso de diferentes métodos e critérios.

Assim, por exemplo, na manifestação de 15 de março na Av. Paulista em São Paulo a Polícia Militar estimou em mais de um milhão o número de presentes enquanto o Instituto Datafolha falou em 210 mil, uma diferença gritante, de quase 5:1. E não estamos aqui falando de estimativas produzidas pelos organizadores e seus opositores, que tendem a produzir números enviesados, mas de contagens feitas por instituições (teoricamente) neutras. Se tivéssemos algumas dezenas de estimativas, seria possível que a média nos fornecesse um parâmetro razoável mas não é o caso quando se trata de “crowd counting”, que exige recursos que o cidadão comum não dispõe.
Um dos métodos mais simples de contagem foi imaginado por um jornalista chamado Herbert Jacobs, que o criou para medir a quantidade de estudantes que compareciam aos eventos contra a guerra do Vietnam na Universidade de Berkley, nos anos 60. Como jornalista ele não contava com imagens de satélites e ainda não existiam os drones. A vantagem é que a área onde os estudantes se reuniam era demarcada com linhas que formavam grades. Assim, bastava saber a área de cada grade, multiplicar pelo número de estudantes em cada quadrado (densidade) e somar quantos quadrículos estavam ocupados. As densidades variavam ligeiramente de acordo com a distância do epicentro mas a matemática básica envolvida é primária.

Os recursos evoluíram desde então mas a lógica subjacente é basicamente a mesma. Como raramente o espaço é previamente quadriculado, esta grade é montada hoje digitalmente, superposta a fotografias aéreas provenientes de drones, aviões ou satélites, de preferência. Os passos são aproximadamente os seguintes, conforme sumarizado por Farouk El-Baz, do departamento de sensoriamento remoto da Universidade de Boston:

1. Sobrevoe a multidão no horário de pico utilizando uma aeronave de asa fixa (helicópteros chacoalham e borram as fotos, aumentando os esforços requeridos para analisá-las). A altitude deve ser de 2000 pés ou menos;
2. Fotografe a área em faixas usando uma câmera digital, com sobreposição de 60% entre sucessivas fotos para permitir uma visão estereoscópica (útil para esclarecer fotos ambíguas). A resolução deve ser de aproximadamente um pé por pixel (o artigo é de 2005, hoje pode ser maior);
3. Carregue as fotografias num programa de processamento de imagens e registre a resolução em torno de 1 metro utilizando ortho fotos do terreno, que corrigem a perspectiva das imagens áreas, levando em consideração a curvatura da terra;
4. Superponha uma grade sobre a imagem e classifique os quadrículos pela densidade aparente de pessoas por unidade. É possível também extrair amostras de diferentes áreas e utilizar as estimativas obtivas por estas amostras para calcular as densidades.
5. Insira um ponto para cada indivíduo ou ponto de sombra.
6 Conte ou estime o número de pessoas em casa unidade da grade e depois tabule os números.
7. Calcule o erro – basicamente o número de unidades da grade pelo grau de incerteza a respeito de quantas pessoas elas contem.

Não é possível fugir muito a este procedimento e as diversas mensurações deveriam levar a resultados aproximados ou dentro de margens de erro razoáveis, tal como ocorre nas pesquisas de opinião com base amostral.
Provavelmente o que ocorre é que as instituições estão lançando mão de critérios diferentes, que precisariam ser esclarecidos pois do contrário não são comparáveis. A medida foi feita no horário de pico ou levou-se em consideração o fluxo de entradas e saídas durante o dia? Como foram trabalhadas as sombras e acidentes urbanísticos? (por exemplo, área embaixo das marquises, área da construção da ciclovia, etc.). Como foram obtivas as estimativas de densidades? Áreas adjacentes ao epicentro foram incluídas? Quais os limites destas áreas?

Estudiosos do caos (estamos falando dos matemáticos, não dos profetas) mostraram como diferenças insignificantes nos cálculos iniciais podem gerar resultados finais drasticamente diferentes... Não é preciso que haja necessariamente uma unificação das metodologias mas pelo menos uma explicitação dos critérios empregados para não compararmos bananas e maças. Passado um certo patamar, o olho humano não consegue estimar quantidades com precisão e o olhar fica influenciado pelo véu da ideologia.

Chegar a um número confiável é relevante não apenas pelo aspecto político mas também para garantir a segurança e infraestrutura destes eventos que, aparentemente, pela dimensão demonstrada no final de semana, não se diluirão tão cedo...

keepinhouse

Arquivo do blog

Seguidores