terça-feira, 5 de agosto de 2025

Observações sobre anuário brasileiro de segurança pública de 2025

 


O Fórum Brasileiro de Segurança Publica divulgou nesta semana a 19º edição do Anuário, com dados relativos a 2024. O Anuário – que ajudei a conceber e analisar – é uma das melhores fontes para refletir sobre o tema e mostra inúmeras tendências em andamento.

A interpretação sobre estas tendências e padrões, todavia, nem sempre é unívoca entre os analistas , de modo que costumo fazer anualmente meus próprios comentários sobre os dados, à guisa de reflexão. Seguem então alguns apontamentos e sugestões para futuras pesquisas e aprofundamentos!

  • ·       Homicídios continuam processo de queda observado desde 2017. Queda é praticamente nacional e ocorre em municípios sem qualquer presença de crime organizado, de forma que explicações baseadas na dinâmica dos conflitos entre as facções são frágeis. Listas de “cidades mais violentas” são interessantes, mas também um baita viés de seleção: ilustra uma dinâmica ligada a guerra de facções, que está longe de ser generalizável para os demais milhares de cidades do país.  Fenômeno se explica antes por mudanças nacionais como demografia, melhora da economia, melhora da educação, menos armas em circulação, migração para crimes digitais, melhoras nas políticas de segurança, etc. Conflitos de facções só explicam surtos agudos, momentâneos e localizados de violência.
  • ·       Observe-se que a queda de homicídios ocorre num contexto de crescimento da posse de armas: registros de posses ativos passam de 628 mil em 2017 para mais de 2 milhões em 2024. A hipótese é de que estas armas não estão em circulação nas ruas, mas guardadas nas residências. Evidência disso é que quantidade de armas apreendidas pelas polícias está em queda, assim como ocorrência de posse e porte ilegal. Hipótese: Estas armas não foram para as ruas por conta da diminuição dos crimes violentos de rua nos últimos anos. Armas não protegem contra estelionatos digitais.
  •  
  • ·       Observe-se o aumento das mortes violentas intencionais (MVI) em São Paulo, em razão do crescimento de várias categorias de mortes, principalmente mortes em decorrência de intervenção policial (MDIP), que estão em forte contraste com a tendência nacional, que é de queda; mortes pela polícia provocaram uma interrupção na trajetória de queda de homicídios do Estado. Inobstante, SP continua com a menor taxa de homicídios do país (8,2) e bem abaixo da taxa nacional de 20,8:100 mil. Olhando a série de SP em longo prazo vemos um retorno à média histórica do Estado;
  • ·  Homicídios de mulheres caem enquanto feminicídios sobem? Não faz muito sentido. Dados mostram que porcentagem de feminicídios sobre homicídios femininos cresce a cada ano: proporção de feminicídios em relação ao homicídio de mulheres: vai de 9,4 em 2015 a 40,3% em 2024. Como sugeri anteriormente, o fenômeno se explica pelo uso progressivo da nova categoria penal pelo sistema de justiça, em detrimento da categoria homicídio e não se trata do crescimento do fenômeno de feminicídio. Somadas as duas categorias (homicídio de mulheres + feminicídios) , vemos queda na morte violenta de mulheres.
  •  
  • ·       Observe-se que apenas entre 50 e 70 mulheres tinham Medida Protetiva de Urgência no momento do óbito, num universo de quase 1500 vítimas de feminicídio por ano. Grande maioria das mulheres mortas, portanto, aparentemente não recorreu à medida, por algum motivo que precisaria ser investigado. Quantas vítimas tiveram o pedido negado?  Feminicídio vem de histórico de agressões (portanto pode ser contido pela MPUs) ou é um “raio em dia de céu azul”?  Pesquisa interessante seria comparar o número de MPUs concedidas por UF com o número (taxas) de feminicídios por UF.
  • ·       Homicídios contra LGBTs: números diminutos e em queda, e taxa pode ser menor do que a média nacional da população com mesmo perfil demográfico, dependendo do tamanho estimado da população LGBT que se utilize no denominador. Ser LGBT pode ser fator protetivo e não de risco, uma vez que população não tende a reproduzir muitos dos comportamentos de risco dos heterossexuais (álcool, armas, brigas, cultura de violência, etc.);
  • ·       Continuidade da queda de crianças e adolescentes apreendidos e cumprindo medidas, como apontei em artigos anteriores. Adolescentes masculinos cumprindo medida em maio fechado caem de 23 mil em 2018 para 11500 em 2024. Observe-se que não se trata apenas de tratamento menos rigoroso pelo judiciário, uma vez que a queda já se observa na entrada do sistema de justiça criminal, pelas quedas nas apreensões policiais em flagrante. Fenômeno é compatível com o impacto da melhoria do sistema educacional na criminalidade, como viemos apontando;
  •  
  • ·       Crimes contra patrimônio violentos e de rua em queda (roubo de veículos, residência, transeuntes, estabelecimentos, carga, bancos, etc.), em contraste com forte crescimento dos estelionatos digitais (17%), tendência de inversão que apontamos pioneiramente já em 2019. Note-se em 2024 a queda até mesmo do roubo e furto de celulares, usados em golpes digitais, em contradição com o aumento dos estelionatos. A “narrativa” é de que PCC estava por traz dos roubos de celulares para cometer estelionatos digitais. Como explicar agora o aumento dos estelionatos digitais e a queda dos roubos e furtos de celulares?
  • ·       Programas estaduais de recuperação de celulares podem explicar a queda na modalidade de furtos e roubos, mas impacto precisa ainda ser testado. Numa análise rápida, as maiores quedas nos roubos e furtos de celulares não foram observadas nos estados que iniciaram programas de recuperação. (RR, AP,RS, GO). A quantidade de celulares restituídos aos proprietários é ainda ínfima diante da quantidade de celulares roubados e furtados, o que atenua talvez o impacto dos programas.
  • ·       Diversos governos estaduais tem associado estas quedas nos crimes em geral, que são nacionais, a políticas de segurança adotadas em seus respectivos estados: falta ainda provar se e em quanto estas medidas locais contribuíram para o processo de queda; muita gente por ai – inclusive analistas e jornalistas – comprando discursos de governo, sem avaliação rigorosa.
  • ·       Dinâmica das facções não pode explicar tampouco a tendência de queda dos crimes patrimoniais, jogando água no moinho das explicações macro sociais e econômicas (demografia, economia, melhora educacional, etc.) além da migração para estelionatos. Diferente do caso dos crimes ambientais, não existe evidência palpável de que crime organizado esteja preponderantemente envolvido nos estelionatos digitais, exceto por casos anedóticos.;
  •  
  • ·       Estelionatos são mais compensadores que crimes de contato, pois a probabilidade de prisão é pequena, risco menor e o lucro mais elevado. O número de estelionatários cumprindo pena no país caiu em termos absolutos e relativos (Sisdepen), não obstante o aumento da modalidade criminal;  em 2018 tínhamos na prisão 4173 estelionatários, equivalente a 1% dos estelionatos. Porcentagem atual é de 0.2%. São apenas 4112 presos para mais de 2 milhões de estelionatos registrados. Estado ainda não aprendeu a investigar e punir estelionatários e receptadores, pois é demasiado ocupado com policiamento ostensivo e investe pouco em perícia e investigação. Aumentar a pena não resolve se autores não são presos.
  • ·       Dado do INEP sugere que 3,6% das escolas tiveram aulas interrompidas por conta de episódios de violência em 2023. Junto com indicadores como: óbitos criminais prisionais, razão homicídios consumados por tentados, presença de facções no território, etc. este indicador pode ser uma boa proxy para estimar crime organizado por UF / cidade! Seria interessante verificar como este indicador se relaciona com a taxa local de homicídios.
  • ·       Perfil das vítimas de estupro. Os dados do Anuário sugerem de 77% das vítimas de estupro no Brasil tem até 17 anos, o que revelaria uma predileção acentuada dos estupradores brasileiros por crianças e adolescentes. Na maioria dos países a porcentagem de vítimas crianças e adolescentes é menor que a brasileira. Embora se saiba que a violência sexual seja em boa parte doméstica, as porcentagens de estupros cometidos em residências (66%) e por conhecidos da vítima (78%) são bastante elevadas e podem estar enviesadas. É preciso lembrar aqui que talvez exista um grande viés de seleção nos boletins de estupros reportados à polícia e que a probabilidade de notificação muda conforme a idade, sendo maior quando a vítima é criança ou adolescente. Nesta faixa etária a escola e profissionais de saúde ajudam a identificar os casos e a notificação é feita pelos pais ou responsáveis. A partir da adolescência, a identificação é mais problemática e a notificação fica por conta da própria vítima. Assim, o perfil em termos de idade, local, relacionamento com o autor, etc., fica enviesado por conta da notificação proporcionalmente maior das vítimas juvenis.
  • ·       Com PEC da segurança governo federal quis exclusividade para traçar as diretrizes nacionais de segurança pública, mas contribui apenas com 12% dos recursos totais na área, diferente do que acontece com o SUS. Estados ainda arcam com 80% da conta e municípios com outros 8%. Como na saúde e na educação, a coordenação nacional do sistema de segurança deveria começar pelo investimento massivo de recursos da União na área. Quem põe o dinheiro, tem moral para dar as diretrizes.
  • ·       Porcentagem de negros cumprindo pena no sistema prisional cresce anualmente, indo  de 58,4 em 2005 para 68,7% em 2024. Cabem diversas interpretações aqui: além do racismo estrutural, talvez uma mudança no perfil das naturezas das condenações, como o aumento das prisões por tráfico. Ou simplesmente aumento da (auto) classificação das pessoas como negras, como observado no Censo e em outras pesquisas, desde o início das ações afirmativas.

 

O Anuário traz dezenas de tabelas e gráficos e para comentar todos eles seria necessário um livro. Os dados brutos estão sempre sujeitos a diferentes interpretações e para respondê-las seria preciso pesquisas que ninguém ainda tem. Mas em termos de diagnósticos, estamos inegavelmente numa situação muito melhor do que há 20 anos, quando sequer tínhamos os dados! Vida longa ao Anuário!

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Melhorias no sistema prisional diminuem o crime?

Não obstante a percepção generalizada de piora da segurança pública na última década, existem diversos indicadores criminais que apresentam melhoria, principalmente  a partir de 2017, como homicídios, roubos de veículos, roubos de carga e a instituições financeiras, entre outros.

É difícil estimar qual o papel direto da melhoria das condições carcerárias sobre a queda da criminalidade, mas em si mesmas estas melhorias são positivas, contribuindo por exemplo para a melhora no clima dentro das prisões, diminuindo a motivação para rebeliões, aumentando a probabilidade de ressocialização , diminuindo o poder das facções criminais, entre outros objetivos relevantes. A criação do Depen e do Fundo Nacional Penitenciário no final dos anos 90 foram marcos importantes neste processo de melhora das condições de cumprimento da pena. Com o Depen vimos a retomada dos “censos” penitenciários nacionais, - que respondi pelo primeira vez em 1997 como assessor da SAP e posteriormente contribui para o aperfeiçoamento do questionário e aplicação da pesquisa.

Os indicadores abaixo foram extraídos do SISDEPEN e permitem analisar a evolução de alguns indicadores entre 2016 e 2024, no que tange a melhorias físicas e aos serviços prestados pelas cerca de 1500 unidades prisionais do pais.

Ao observar os dados de “Existe” ao longo de 2016/2 a 2024/2, percebe-se um fortalecimento consistente de serviços de saúde nas unidades prisionais. A presença de consultório médico saltou de 51,1 % para 66,5 %, enquanto o consultório odontológico subiu de 46,3 % para 54,5 %. A farmácia, que em 2016/2 existia em apenas 45,6 % dos estabelecimentos, em 2024/2 já alcançava 58,1 %, e o atendimento clínico multiprofissional mais que acompanhou essa curva, de 31,4 % para 47,5 %. Esses avanços refletem maior investimento em saúde do preso, sobretudo após 2019, quando as taxas de existência desses serviços cresceram de forma mais acentuada.

Na esfera educacional e de reforço social, o progresso também é nítido. A sala de aula aumentou de 58,6 % para 70,8 %, e a biblioteca, que iniciava em 43,8 %, alcançou impressionantes 71,7 %, elevando significativamente as oportunidades de leitura e estudos formais. As salas de professores também cresceram, de 30,6 % para 38,4 %, no período. A introdução e ampliação de laboratórios de informática — de meros 15,1 % para 28,3 % — e de oficinas de trabalho — de 36,7 % para 44,7 % — apontam para uma estratégia de ressocialização cada vez mais orientada a habilidades práticas e digitais, preparatória para o pós-prisão.

Quanto às condições regimentais, os números já partiam elevados, com 79,3 % de unidades possuindo regimento interno em 2016/2 e estabilizando em torno de 90 % a partir de 2020. Os espaços destinados a visitação íntima e coletiva passaram de 31,9 % e 44,0 % para 36,7 % e 60,5 %, respectivamente. Esse incremento em infraestrutura de convivência e disciplina evidencia um esforço para equilibrar segurança, disciplina e dignidade, ainda que o ritmo de expansão de áreas de visita íntima tenha sido mais lento do que o das demais melhorias.

Ao longo de oito anos, houve um avanço generalizado na oferta de infraestrutura e serviços nas unidades prisionais. Em 2016/2, cerca de 28,6 % das unidades não dispunham de sala de atendimento para serviço social, percentual que caiu para 19,2 % em 2024/2, revelando maior atenção ao suporte psicossocial. De modo semelhante, a ausência de salas para psicólogo diminuiu de 33,6 % para 24,6 %, e a falta de espaço para atendimento jurídico reduziu-se de 19,4 % para 14,0 %, o que evidencia progressos constantes na assistência ao preso.

O avanço mais expressivo deu-se, porém, na sala de videoconferência: o índice de unidades sem esse recurso, que beirava 91 % em 2016, despencou para apenas 19,2 % em 2024/2, demonstrando forte investimento em tecnologia e na comunicação remota entre detentos, tribunal e familiares. Paralelamente, a acessibilidade para pessoas com deficiência, antes ausente em cerca de 84,6 % das unidades, melhorou para 71,7 %, embora ainda indique a necessidade de aceleração das adaptações físicas. Já a assistência jurídica gratuita permanece raríssima, sem redução significativa desde os 80,6 % de 2016, o que revela uma lacuna crônica no acesso à defesa técnica.

Por fim, observam-se ganhos importantes nas atividades laborais e educacionais. A proporção de unidades sem laborterapia recuou de 33,0 % para 14,8 %, e a ausência de atividades educacionais diminuiu de 41,8 % para 17,3 %, apontando para expansão de oficinas e cursos de ensino. Em suma, o sistema prisional avançou de forma notável na infraestrutura tecnológica e nos programas de reabilitação e ensino.

O sistema prisional vem caminhando numa direção de maior humanização e enfoque na ressocialização. O crescimento consistente da disponibilidade de consultórios médico e odontológico, farmácia e atendimento clínico multiprofissional indica um reconhecimento crescente de que a atenção à saúde mental e física do preso não é apenas uma questão de direitos humanos, mas também uma estratégia de redução de comportamentos violentos e surtos epidêmicos dentro das unidades. Consequentemente, investimentos em equipes de saúde e em medicamentos, embora onerosos, devem gerar economia a médio prazo, ao reduzir internações de emergência, surtos de doenças transmissíveis e litigiosidade interna.

No âmbito educacional e ocupacional, o avanço na oferta de salas de aula, laboratórios de informática, oficinas e bibliotecas reflete um compromisso maior com a formação profissional dos reeducandos. Isso tende a ampliar as oportunidades de trabalho formal após o cumprimento da pena, contribuindo para a diminuição da reincidência. A construção dessas estruturas requer planejamento orçamentário contínuo e parcerias com órgãos de ensino e empresas, mas os benefícios sociais — como a quebra do ciclo de pobreza e crime nas comunidades de origem — podem superar largamente o custo inicial.

A consolidação de regimentos internos e a expansão de espaços de convivência e visita íntima demonstram que a segurança e a disciplina podem conviver com a dignidade e o vínculo familiar. Unidades mais regimentadas e, ao mesmo tempo, mais acolhedoras têm menor potencial para tumultos e rebeliões, gerando ambiente mais estável tanto para agentes quanto para presos. As consequências práticas são a redução de gastos com contingentes extras de segurança e a melhoria do clima de trabalho dos servidores, o que, em última análise, torna o sistema penitenciário melhor para todos.

Embora investir em presídio não seja uma política popular, a melhora das condições de cumprimento da pena traz uma série de benefícios intrínsecos e pode ser uma das muitas explicações para a queda da criminalidade violenta de rua no país a partir de 2017.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Cobrança por serviços policiais

 


Tulio Kahn

A proposta legislativa em tramitação no estado do Paraná, que visa obrigar condenados definitivamente pela Justiça a arcarem com os custos da atuação policial em seus casos, reabre um debate complexo sobre os limites da responsabilização penal e os fundamentos do financiamento do sistema de justiça criminal. O projeto estabelece que os valores pagos pelo condenado, que englobariam despesas com diligências, captura e investigação policial, seriam revertidos a um fundo destinado à própria segurança pública. Tal iniciativa, ainda que inédita nos moldes amplos sugeridos, encontra ecos parciais em experiências internacionais, especialmente no contexto de países com sistemas federativos e modelos penais descentralizados.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a cobrança de taxas e custas judiciais de condenados é amplamente praticada, sob a justificativa de que o usuário do sistema deve arcar com parte dos seus custos. Os chamados court costs e criminal fees são impostos em muitos estados para cobrir serviços como perícias, assistência jurídica e manutenção do sistema judicial. Em algumas jurisdições, essas cobranças se estendem até mesmo a custos administrativos de prisão e liberdade condicional. Contudo, é importante observar que essas taxas raramente incluem diretamente os custos da investigação policial, uma vez que esta é considerada uma função essencial do Estado, financiada por meio de impostos e destinada à coletividade. A Suprema Corte de Michigan, por exemplo, tem permitido a cobrança de determinadas taxas desde que haja autorização legislativa clara e critérios objetivos para sua imposição, evitando o que seria uma delegação inconstitucional de poder de tributar, como analisado por entidades como o Mackinac Center for Public Policy.

Na Alemanha, adota-se o princípio de que o condenado deve reembolsar determinadas despesas do processo, como honorários de defensores públicos e custas processuais, mas não os custos da investigação policial. A lógica adotada no direito penal alemão reconhece a natureza pública e indelegável da atividade policial e a considera parte do dever geral do Estado de manter a ordem e proteger os direitos fundamentais. Similarmente, no Canadá e na Irlanda, embora haja mecanismos de recuperação de ativos criminosos — como o confisco de bens por meio do Criminal Assets Bureau irlandês — não se impõe ao réu o pagamento direto das despesas operacionais da polícia, sendo os valores arrecadados revertidos para o erário público e não para fundos corporativos das agências responsáveis.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece a gratuidade da jurisdição penal e protege o condenado contra penas que extrapolem a privação de liberdade. A imposição de encargos financeiros ao condenado, especialmente quando relacionados a serviços estatais prestados de forma obrigatória e unilateral, suscita dúvidas constitucionais relevantes. A dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1º, III), e os princípios da isonomia e da vedação de penas cruéis ou desproporcionais (art. 5º, incisos III e XLVII), seriam diretamente tensionados por uma legislação que impusesse a condenados financeiramente vulneráveis o ônus de custear ações estatais que não foram voluntariamente solicitadas, mas sim exercidas como parte do dever do Estado de investigar e punir crimes. Além disso, a exigência de lei específica para a criação ou majoração de tributos (art. 150, I) também representa um obstáculo jurídico, já que a cobrança poderia ser interpretada como uma taxa disfarçada de pena, em evidente desvio de finalidade.

Ainda que se reconheça a racionalidade aparente da proposta, baseada na ideia de que o autor de um crime deve assumir os custos que impôs à sociedade, os riscos de se instituir uma medida como essa são significativos. Há o perigo concreto de se aprofundar a criminalização da pobreza, com indivíduos sem recursos acumulando dívidas impagáveis com o Estado, o que dificultaria ainda mais sua reintegração social. A medida poderia, inclusive, reforçar ciclos de reincidência, já que o endividamento do ex-presidiário comprometeria sua capacidade de recomeço. Além disso, há o risco de induzir os órgãos de persecução penal a aumentarem o custo das investigações ou multiplicarem diligências como forma de arrecadação, comprometendo a imparcialidade e a racionalidade da ação estatal.

Por outro lado, defensores da proposta argumentam que ela promoveria justiça distributiva, responsabilizando o autor do crime pelos danos econômicos causados à coletividade. Além disso, os recursos obtidos poderiam financiar melhorias nas corporações policiais, modernizando equipamentos, treinamentos e condições de trabalho. Trata-se, segundo essa visão, de um incentivo à eficiência do sistema penal e um desestímulo à prática criminosa, ao associar custos concretos à violação da norma penal.

No entanto, mesmo que se considere legítimo o objetivo de melhorar o financiamento das instituições de segurança pública, parece mais adequado buscar alternativas que não comprometam princípios constitucionais fundamentais. Entre essas alternativas, destaca-se o fortalecimento dos mecanismos de recuperação de ativos obtidos de forma ilícita, com a reversão dos valores para fundos públicos de segurança, conforme já previsto na legislação brasileira sobre lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito. Outra possibilidade seria a ampliação do uso de penas patrimoniais em substituição à pena privativa de liberdade, nos casos em que o crime permitir tal substituição, desde que respeitados os princípios da proporcionalidade e da capacidade contributiva.

Em conclusão, a proposta legislativa paranaense representa uma inovação que, embora motivada por preocupações legítimas com a sustentabilidade fiscal da segurança pública, suscita sérias objeções jurídicas e éticas. A atividade policial deve permanecer como função essencial do Estado, custeada por toda a sociedade e exercida de forma equitativa. A responsabilização do condenado deve ser proporcional, razoável e orientada pela proteção de seus direitos fundamentais, não sendo compatível com mecanismos que possam aprofundar desigualdades sociais ou comprometer a natureza pública da repressão estatal. Para que políticas de responsabilização financeira possam ser discutidas de maneira construtiva, é necessário que estejam ancoradas em estudos empíricos, comparações internacionais robustas e, sobretudo, no respeito ao arcabouço constitucional vigente.

Referências

·      Este artigo foi escrito com auxílio do Chagpt

·     
BEALE, Sara Sun. Too Many and Yet Too Few: New Principles to Define the Proper Limits for Federal Criminal Jurisdiction. Hastings Law Journal, v. 46, 2004.
MACKINAC CENTER FOR PUBLIC POLICY. Is it Constitutional to Require Criminal Defendants to Fund Their Own Prosecution?
Disponível em: https://www.mackinac.org/is-it-constitutional-to-require-criminal-defendants-to-fund-their-own-prosecution.
Brennan Center for Justice. The Steep Costs of Criminal Justice Fees and Fines. Disponível em: https://www.brennancenter.org/our-work/research-reports/steep-costs-criminal-justice-fees-and-fines.
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
WHITMAN, James Q. Harsh Justice: Criminal Punishment and the Widening Divide Between America and Europe. Oxford University Press, 2003.
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

 

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Descentralização legislativa em matéria penal

 


Tulio Kahn

A proposta do governador do Paraná, Ratinho Junior, de conferir aos Estados brasileiros autonomia para legislar em matéria penal reacende um debate relevante sobre a organização federativa do país e os limites constitucionais da descentralização legislativa. Trata-se de uma ideia com repercussões importantes para o equilíbrio entre a uniformidade normativa e a autonomia dos entes subnacionais, exigindo uma análise cuidadosa à luz de comparações internacionais, do histórico jurídico-institucional brasileiro e das potenciais consequências práticas dessa descentralização.

A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 22, inciso I, que compete privativamente à União legislar sobre direito penal. Esse dispositivo reflete uma tradição centralizadora que remonta ao período imperial e foi mantida nas constituições republicanas subsequentes. A lógica por trás dessa centralização é garantir a igualdade jurídica entre os cidadãos de diferentes partes do território nacional, além de assegurar segurança jurídica, previsibilidade e coesão no sistema penal. Permitir que os Estados criem suas próprias leis penais implicaria o risco de que uma mesma conduta fosse considerada crime em um Estado e perfeitamente legal em outro, minando os princípios de isonomia e universalidade do direito penal.

Ainda assim, o modelo federativo brasileiro já admite alguma flexibilidade normativa nos campos da segurança pública e da execução penal. Os Estados podem legislar concorrentemente sobre direito penitenciário (art. 24, I) e editar normas administrativas para a organização das polícias civis e militares. Diversas inovações ocorreram nesse espaço de manobra, como os programas de tolerância zero, políticas de mediação de conflitos, centrais de alternativas penais e medidas de contenção da criminalidade local. No entanto, esses arranjos não envolvem a criação de novos tipos penais ou penas, o que permanece como exclusividade da União.

A comparação com outros países federativos é instrutiva. Nos Estados Unidos, os estados possuem códigos penais próprios, o que resulta em grande diversidade normativa. Crimes como homicídio, posse de drogas, furto ou mesmo o aborto podem ser tratados de maneiras substancialmente diferentes conforme a jurisdição. Esse modelo, embora permita maior adaptação local e experimentação, também gera críticas quanto à desigualdade de tratamento, à insegurança jurídica e à complexidade do sistema. Além disso, o país conta com um sistema judicial complexo e recursos materiais significativos para lidar com essas diferenças. Na Alemanha, por outro lado, a legislação penal material é federal, mas a execução penal e certos procedimentos são descentralizados e conduzidos pelos Länder. Esse arranjo permite alguma adaptação local sem comprometer a uniformidade do sistema jurídico penal. O Canadá segue caminho semelhante, com legislação penal unificada e espaço para variações nos programas de justiça restaurativa e na aplicação de penas, respeitando os direitos fundamentais garantidos pela Carta de Direitos e Liberdades.

Esses modelos indicam que há espaço para descentralização em aspectos administrativos, procedimentais ou de execução, mas a legislação penal material permanece, na maior parte dos casos, como competência federal. A razão central está na necessidade de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, assegurando que o poder de punir — expressão máxima da força do Estado — seja exercido de forma equânime e controlada.

No Brasil, não há precedentes constitucionais que autorizem os Estados a legislar sobre matéria penal. Tentativas nesse sentido, como leis estaduais que buscaram proibir o uso de celulares em presídios ou impor sanções a estabelecimentos que vendessem bebidas alcoólicas em determinados horários, foram sistematicamente invalidadas pelo Supremo Tribunal Federal por invadirem a competência da União. Mesmo projetos de lei no Congresso que propunham flexibilizações nessa regra esbarraram em questionamentos sobre a constitucionalidade e os riscos federativos associados.

Os defensores da proposta de Ratinho Junior argumentam que os Estados enfrentam realidades criminais muito distintas, o que justificaria certa liberdade para adaptar suas normas penais. Estados como São Paulo e Paraná, com estruturas de segurança mais robustas, poderiam adotar políticas mais rigorosas, enquanto estados da Amazônia Legal poderiam ter normas específicas para combater crimes ambientais e conflitos fundiários. Sustenta-se ainda que a descentralização favoreceria a inovação e a responsabilização política local, criando incentivos para que os governos estaduais desenvolvessem respostas mais eficazes ao crime. Além disso, a morosidade do Congresso Nacional em reagir a novas formas de criminalidade — como cibercrimes ou novas drogas sintéticas — seria mitigada pela capacidade legislativa estadual mais ágil e sensível às urgências locais.

Entretanto, os argumentos contrários à proposta são numerosos e substanciais. Em primeiro lugar, permitir legislações penais distintas entre os Estados comprometeria o princípio da isonomia, resultando em cidadãos sendo julgados e punidos de maneira desigual por condutas semelhantes. Além disso, tal fragmentação normativa dificultaria a atuação das instituições de segurança pública e do Judiciário em crimes transfronteiriços, que exigem coordenação interestadual. Há ainda o risco de proliferação de legislações populistas, punitivistas e ineficazes, adotadas por pressão midiática ou eleitoral, aprofundando o já grave problema de superlotação carcerária. Ademais, uma mudança como essa exigiria reforma constitucional profunda e abriria precedentes para disputas federativas mais amplas e instabilidades jurídicas significativas.

Diante desse cenário, parece mais prudente adotar um modelo que preserve a centralização da legislação penal material, mas amplie o espaço para inovação subnacional em políticas de prevenção e repressão. Os Estados poderiam, por exemplo, instituir programas de justiça restaurativa, penas alternativas, mediação penal e sistemas de monitoramento eletrônico mais eficazes, além de experimentar novas tecnologias na prevenção da reincidência e na investigação de delitos. A literatura sobre federalismo penal, como os trabalhos de Sara Sun Beale (2004) e James Q. Whitman (2003), mostra que políticas penais descentralizadas só funcionam adequadamente quando acompanhadas de forte coordenação intergovernamental, sistemas de responsabilização e garantia de direitos fundamentais.

Uma proposta concreta seria a criação de um Marco Nacional de Inovação Penal Subnacional, permitindo que os Estados, por meio de convênios com o Ministério da Justiça e com supervisão do Conselho Nacional de Justiça, desenvolvessem projetos-piloto em políticas criminais, desde que ancorados em evidências empíricas e submetidos à avaliação independente. Isso preservaria a unidade normativa do sistema penal brasileiro ao mesmo tempo que promoveria a experimentação responsável e adaptada às realidades locais.

Assim, a proposta de dar autonomia legislativa penal aos Estados, embora sedutora em termos de resposta rápida à criminalidade, apresenta mais riscos do que benefícios no contexto brasileiro atual. A alternativa mais promissora é fortalecer os espaços de inovação subnacional dentro dos marcos constitucionais existentes, com foco em prevenção, execução penal e reabilitação, sem romper com os fundamentos do Estado de Direito e da federação brasileira.

Referências

·      Esse artigo foi parcialmente escrito com auxílio do ChatGpt

BEALE, Sara Sun. Too Many and Yet Too Few: New Principles to Define the Proper Limits for Federal Criminal Jurisdiction. Hastings Law Journal, v. 46, 2004.

WHITMAN, James Q. Harsh Justice: Criminal Punishment and the Widening Divide Between America and Europe. Oxford University Press, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.

 

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Informações sobre drogas: BOs servem pra isso?

 


Uma das justificativas do governo federal para a criação da PEC da segurança é a padronização das informações criminais. Não é preciso necessariamente uma PEC para isso, mas antes um grande esforço administrativo, estudos, consulta a operadores e especialistas, para construir alguns consensos mínimos entre os Estados. De todo modo a preocupação é válida e o governo federal avançou muito na construção de uma base nacional de informações criminais nas últimas décadas.

Para alguns tipos de informações – sexo, idade, escolaridade da vítima ou do autor, local e data da ocorrência, tipo de meio utilizado, etc. está padronização não apresenta grandes desafios. Embora até definições aparentemente corriqueiras, como sexo, hoje em dia podem dar margem a várias categorizações e interpretações...

Outras informações, porém, são bem mais difíceis de serem padronizadas e tomo aqui como exemplo as informações sobre drogas. É crucial para qualquer país ter bons dados sobre drogas, como tipos, quantidade, qualidade, preços, rotas, incidência de uso, para que se possam traçar políticas efetivas de prevenção e repressão ao uso e tráfico. Quantidade, qualidade e preço das drogas, em alguns países, são utilizados como indicadores de sucesso da política de controle, supondo-se que o combate eficaz faz diminuir a quantidade de apreensões e simultaneamente piorar a qualidade e aumentar o preço da droga.

Mas montar um bom sistema informacional sobre o tema não é tarefa simples. É preciso pensar antes de tudo em questões filosóficas sobre o que é droga e se estamos incluindo aqui as danosas drogas legais, como remédios, o álcool e o tabaco. O que é droga ilegal, por sua vez, depende também de contexto, época e lugar, como nos recordam os exemplos da ayahuasca, da Lei Seca nos anos 20 e de Freud recomendando cocaína aos pacientes.

Existem ainda as novas drogas sintéticas, muitas delas sequer catalogadas pelos órgãos policiais. Também é preciso lembrar-se de produtos que, embora legais – cola de sapateiro, éter, benzina, etc. podem ser utilizados indevidamente como drogas. E dos insumos utilizados na produção de coca e outras drogas. Assim, estamos diante de uma lista imensa de itens monitoráveis, que vão muito além de maconha, haxixe, cocaína, heroína, crack, oxi, anfetaminas, etc., para mencionar algumas das principais. Em algum momento é preciso jogar as menos comuns numa grande categoria “outras drogas”.

Uma segunda dificuldade é que às vezes o que tem aparência de droga, não é. E o que não tem aparência é, como no caso da transformação da cocaína em selos de papel dissolvíveis, que circulam nos presídios. No momento da apreensão, o policial não tem como afirmar se o objeto é realmente droga e de que droga está se falando. Para isso é preciso enviar o material apreendido para a perícia, cujos laudos determinarão se são drogas e de que tipo.

Semelhante problema encontramos na mensuração do peso, já que é preciso vários tipos de balanças para estimar corretamente o peso da mercadoria apreendida. É a perícia que estima corretamente o peso, algo que necessita de precisão, ainda mais agora que a quantidade objetiva da droga apreendida pode determinar a decisão da justiça -  conjuntamente a outros elementos – para classificar o caso como uso ou tráfico[1]. O Boletim de Ocorrência das polícias traz geralmente apenas estimativas imprecisas do tipo e da quantidade de droga.

Na tabela abaixo vemos exemplos de como a apreensão de drogas costuma a ser registrada nos boletins de ocorrência. A nomenclatura do objeto apreendido muda conforme o tipo de droga e segundo variações regionais usadas pelo tráfico: balinhas, buchas, trouxinhas, etc. As unidades de medida, como discutido, são às vezes bastante imprecisas, do tipo, “uma porção“. Descreve-se também o objeto apreendido pela forma de acondicionamento, tal como “caixas”, “potes” e outros. A descrição é do tipo “2 buchas de maconha”, “3 invólucros pequenos com haxixe”, “Quatro papelotes de cocaína”, uma porção de heroína”,  e por ai afora.

Exemplos de descrição de drogas apreendidas

NOMENCLATURA

UNIDADE

ACONDICIONAMENTO

BALINHAS

G / GRAMAS

AMPOLA

BARRAS / BARRINHAS

GRANDE

CAIXAS

BOMBINHAS

KG / KILOS

EMBALAGEM / EMBRULHO

BUCHA

MAIORES

FRASCOS

CARTELA

MÉDIO / MEDIANO

INVÓLUCRO

CIGARROS

MENORES

PACOTE

COMPRIMIDOS

PÉ / PÉS / MUDAS

PAPEL ALUMÍNIO / FILME

PAPELOTE

PEDAÇO

POTES

PEDRA

PEQUENO

RECIPIENTE

PETECA

PORÇÃO / PORÇÕES

SACO ZIP LOCK

PINOS

VÁRIAS

SACOLA

SACOLÉ

TUBO PLÁSTICO

SAQUINHOS / SACOLETES

VASILHA

TABLETE

TIJOLO

TROUXA / TROUXINHA

 

Mas quanto pesa um papelote de cocaína? Ou uma pedra de crack? Existem variações regionais ou os criminosos criaram um sistema para padronizar pesos e medidas, antecipando-se ao MJ? Como determinar qual o tamanho (e peso, portanto) de uma caixa, um pacote ou pote, uma vez que há uma infinidade de possibilidades no mercado de invólucros?

Resolvido o problema da pesagem de forma mais ou menos precisa, temos os problemas interpretativos, como já discutimos com relação a outros indicadores na área de segurança. A distribuição dos pesos é bastante assimétrica, com poucos casos envolvendo apreensões gigantescas e uma grande quantidade de casos envolvendo pequenas quantidades de drogas.

São Paulo é um dos poucos estados que estima e divulga entre as estatísticas de produtividade a quantidade de drogas apreendidas pelas polícias em cada ocorrência, em gramas, por tipo de droga.

Como é possível observar na tabela, a média é altamente inflacionada pela existência de algumas dezenas de grandes apreensões. Nestes casos é preciso usar a mediana ou algum estimador de média que exclua os casos extremos, como M de Huber. Usar a média é produzir uma visão bastante equivocada do problema. Em média, cada ocorrência envolvendo cocaína implicou na apreensão de aproximadamente 1 quilo da droga...enquanto a mediana nos mostra 29 g e o M de Huber 35 g.

Quantidade apreendida por natureza da droga, São Paulo, 2024

NATUREZA_APURADA

Média

Mediana

Estimador M de Hubera

QTDE (GRAMAS)

COCAÍNA

1018.91

29.00

35.36

CRACK

201.72

14.00

16.81

MACONHA

2984.01

38.00

48.50

OUTROS

895.34

17.00

21.78

SSP-SP

A base de São Paulo com 130.795 BOs permite inferir, por exemplo, que no ano passado 57,3% das apreensões de cocaína envolveram até 40 gramas de drogas apreendidas, ocorrendo o mesmo com 75,2% das apreensões de crack, 51,1% das apreensões de maconha e 65,5% das apreensões de outras drogas. Em suma, muitos casos com pouca droga e poucos com muita. Trata-se de informação relevante do ponto de vista da política pública, quando se procura estabelecer critérios “objetivos” para a distinção entre usuários e traficantes.

É possível e desejável, portanto melhorar este sistema de registro das polícias estaduais– começando pela criação de preenchimento com máscaras (permitindo apenas campos numéricos para descrever quantidades) e tabelas pré-definidas de preenchimento, ao invés de usar campos abertos, que admitem quaisquer variações das mesmas palavras. Estabelecer uma média ou mediana de quanto pesa em gramas um cigarro de maconha ou um pino de cocaína. Coletar junto aos suspeitos dados sobre o valor das drogas.

Mas ao final é preciso se perguntar se não estamos pedindo ao BO informações além das que ele pode fornecer com um mínimo de qualidade. Vale a pena investir no refinamento desta coleta ou é melhor buscar estas informações em outras fontes, como laudos e estudos específicos?

Muitas informações sobre crimes são obtidas apenas depois que a investigação tem início, com a coleta de provas, dados periciais, oitiva de testemunhas. É o caso da “motivação” dos homicídios, que quando (raramente) aparece, é só nas etapas finais. Do uso de álcool ou drogas pelas vítimas e suspeitos, coletados nos laudos toxicológicos. Da “causa mortis”, em mortes dúbias. BO não é fonte boa para estas informações.

Talvez um próximo passo para a obtenção deste tipo de informação, seja integrar as bases de Boletins de Ocorrência com as bases de laudos da Polícia Científica, de Inquéritos do Ministério Público, de sentenças  da Justiça, de execuções da pena do sistema Carcerário. Nos anos 80 em São Paulo – quando computadores, softwares e programadores eram caríssimos e exclusivos de algumas poucas instituições - como a Prodesp -, o sistema de informações criminais nasceu integrando as informações destes diversos órgãos, apesar da cultura de supressão de informações interinstitucional.

O barateamento de computadores, programas e programadores teve como externalidade negativa a separações das bases de dados do sistema de justiça criminal. São poucos os Estados onde é possível acompanhar um suspeito de crime do momento em que ele é abordado pela Polícia Militar até o momento em que cumpriu sua pena no sistema prisional ou é atendido em um programa para egressos. Neste percurso um individuo percorre diversas bases de dados – chamados do Copom, Boletim de Ocorrência, laudos da Polícia Técnica, base fotográfica, base de DNA, Inquérito no MP, decisões da Justiça, bases do sistema penitenciário, base do programa de egressos, etc. O pulo do gato está em conseguir unir estas diversas bases.

Estas inciativas não são incompatíveis e é possível ao mesmo tempo aperfeiçoar o sistema de coleta das polícias, integrar as bases policiais com as bases dos outros órgãos do sistema de justiça e financiar pesquisas ad hoc sobre temas de interesse não cobertos adequadamente pelos dados administrativos. É preciso saber pedir de cada fonte, com suas características próprias, aquilo que elas podem oferecer!

O registro policial traz sempre o dado do “calor da hora”, muitas vezes impreciso, pelas condições em que são coletados. Seja para fins de investigação ou para traçar boas políticas públicas para a prevenção e repressão às drogas, é preciso complementa-los com dados coletados “no frio dos anos”.

 



[1] Outro imbróglio é definir que quantidade de droga corresponde a cada suspeito numa ocorrência. Suponhamos 1 quilo de maconha apreendido num veículo com 4 suspeitos. Atribuímos este quilo a cada suspeito? Apenas ao proprietário do veículo? Ao motorista? Dividimos por 4, ficando cada um responsável por 250g? Aceitamos a versão dos suspeitos, que colocarão a responsabilidade no menor?

keepinhouse

Arquivo do blog

Seguidores