sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Comentários sobre o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou seu 8º Anuário de Segurança em novembro, com informações atualizadas sobre o cenário criminal do país em 2013. Desde sua primeira edição, tenho colaborado com a publicação do Anuário, de extrema relevância para avaliar as políticas de segurança e as tendências criminais no país. O material recebeu ampla cobertura dos meios de comunicação de modo que minha intenção não é resumir o relatório mas antes destacar alguns aspectos interessantes pouco observados:

1) Os homicídios continuam na marca dos 50 mil por ano, não obstante uma pequena queda de 2,6% na taxa por 100 mil hab (os homicídios cresceram em termos absolutos) com relação a 2012. Particularmente interessante é o caso de Alagoas, que desponta já há alguns anos como a maior taxa de homicídios no Brasil, a ponto do governo federal escolher o Estado para iniciar o programa Brasil Mais Seguro, direcionando investimentos federais da ordem de 25 milhões para diversos programas de redução dos homicídios. O programa começou na metade de 2012 e ainda é cedo para avaliar seu impacto. É preciso levar em conta também, como sempre, o argumento contra factual, ou seja, de que a situação poderia ser pior se o programa não existisse. Assim mesmo, não deixa de ser interessante observar que os homicídios cresceram cerca de 0,5% em Alagoas em 2013. Este crescimento chama ainda mais a atenção pois deu-se após uma queda de 21% nos homicídios, comparando 2012 com 2011. É necessário analisar o caso em profundidade mas a primeira vista não é possível identificar alterações de monta na tendência dos homicídios em Alagoas, após o início do programa Brasil mais Seguro. De resto, como o próprio Anuário já se incumbiu de sugerir várias vezes, não existe uma relação direta entre investimentos e desempenho na segurança. Alagoas é novamente um exemplo deste ponto, pois, como porcentagem do PIB, o governo estadual investe mais em segurança do que a maioria dos Estados brasileiros. Fica a sugestão para futuros projetos de avaliação.

2) Outro ponto que mereceria uma avaliação mais aprofundada é a relação entre o programa bolsa família e a criminalidade. Trata-se do maior programa de transferência de renda do mundo e que, em tese, produz externalidades positivas, na medida em que condiciona o recebimento da bolsa à frequência escolar, conhecido fator protetivo na literatura criminológica. Como explicar então que a região Nordeste, uma das principais receptoras do bolsa família na última década, seja precisamente a região onde a criminalidade mais avançou no período? Minha hipótese é de que o bolsa família (junto ao crescimento no emprego formal) aumentou a renda das comunidades, o que por sua vez aumentou a quantidade de bens em circulação. Com mais bens circulando (celulares, motocicletas) aumentou também a oportunidade para o crime patrimonial. O aumento dos roubos e furtos fez crescer a sensação de insegurança e com esta a demanda por armas de fogo. Com mais armas em circulação, finalmente, temos a explosão dos homicídios no Nordeste. Trata-se de uma hipótese a ser investigada. Observe-se que o Anuário já sugere que as maiores taxas de homicídio ocorrem nos Estados onde é maior a proporção de mortes com armas de fogo, corroborando o último elo desta sequencia. Mas o fato é que são poucos os estudos que se dedicaram a verificar o impacto do bolsa família sobre o crime e a violência, o que é curioso, uma vez que se trata de um dos maiores programas de cash transfer do mundo, como observamos.

3) Tostines vende mais porque é sempre fresquinho ou é sempre fresquinho porque vende mais? O Anuário chama a atenção para o fato de que 4% dos congressistas eleitos para a próxima legislatura são policiais ou ex-policiais. Assim, parece que quanto mais grave é o problema da segurança e da criminalidade na sociedade, maior a tendência e eleger parlamentares ligados às polícias. Os candidatos oriundos das forças policiais tiveram desempenho expressivo também nas eleições estaduais. O problema é que o atual modelo policial bipartido é hoje um dos maiores entraves ao aperfeiçoamento do sistema de segurança pública! E os maiores defensores deste sistema inoperante são, frequentemente, as bancadas oriundas das polícias que, como mostra a análise dos projetos de segurança aprovados nos últimos anos, estão mais preocupadas com questões corporativas (43% dos projetos) do que com a segurança pública. Assim temos um sistema em que, quanto mais criminalidade e insegurança, maior a bancada da segurança nos parlamentos federal e estaduais e quanto maior a bancada da segurança nos parlamentos, menores as chances de alteração do atual modelo de policiamento, que é hoje um dos maiores obstáculos para melhorarmos os índices de criminalidade.

4) Comparação com os Estados Unidos. O Anuário deu bastante destaque ao elevado número de mortes em confronto no Brasil, em comparação aos Estados Unidos. Bem, depende do indicador que utilizamos para fazer a comparação. Um cálculo rápido e aproximado: cerca de 1.500 pessoas morrem em confrontos todos os anos no Brasil, considerando apenas as mortes em serviço, num universo de 50 mil homicídios. Ou seja, cerca de 3% dos homicídios brasileiros ocorrem em confrontos (embora em alguns Estados, esta porcentagem seja bem maior). Vista por este ângulo a porcentagem brasileira equivale aproximadamente à norte americana (2,6%), onde, por alto, morrem cerca de 400 pessoas em confronto por ano, em serviço, num universo de 15 mil homicídios. O indicador “porcentagem de mortes em confronto no total de homicídios” é um indicador clássico de brutalidade policial. O que ele sugere é que tanto no Brasil quanto nos EUA a brutalidade policial é elevada mas que talvez nosso padrão não seja tão diferente do norte-americano, analisando especificamente por este indicador.

5) Custo da violência. O IPEA estimou que o custo da violência no Brasil está em torno de 5% do PIB, ou cerca de 258 bilhões de reais por ano. Com uma população de 200 milhões, isto significa algo em torno de R$ 107.50 por mês a cada brasileiro. Temos cerca de 600 mil presos no país e vamos, por hipótese, supor que tenhamos um número de criminosos 10 vezes superior a este, ou seja, 6 milhões, totalizando algo em torno de 6 milhões e seiscentos mil criminosos (3,3% da população). Num cálculo aproximado, com este montante de recursos seria possível investir mensalmente cerca de R$ 3.250,00 em cada criminoso. O suficiente para pagar a mensalidade de uma escola privada de nível mediano, um plano de saúde simples, um aluguel numa pensão ou hotel popular e talvez sobrasse até um troquinho pra um cinema. Ou, supondo que o indivíduo tenha moradia e estude na rede pública e seja atendido pela saúde pública, seriam R$ 3.250,00 para investir em tratamento psicológico, contra drogadição, aquisição de novas habilidades sociais, visitações domiciliares, acompanhamento por pares, etc. Trata-se de um exercício hipotético pois não é possível simplesmente transferir os recursos do sistema de justiça criminal para programas sociais. Mas em algum momento precisaremos repensar este balanço entre gastos no sistema de justiça e gastos em programas de prevenção, tendo em vista seus benefícios correspondentes para a redução da criminalidade. Até agora só investimos em repressão e os resultados estão documentados no Anuário...

6) Desde sua primeira edição em 2006 o Anuário revela um quadro que pouco se altera: crescimento da criminalidade, aumento no número de presos, aumento no déficit de vagas no sistema prisional, grande proporção de prisões relacionadas a drogas, baixos investimentos federais na segurança, padrão elevado de mortes de e por policiais, número desproporcional de negros entre presos e vítimas de homicídio, baixo investimento em inteligência, etc. Se nada for tentado de radicalmente diferente, os próximos anos trarão as mesmas notícias e conclusões, bastando alterar as quantidades. Um novo período governamental tem início no plano federal e nos legislativos. Esperamos que os dados do Anuário ajudem a reconhecer a necessidade de uma mudança profunda nas instituições e nos paradigmas vigentes para lidar com a criminalidade no país. Como alguém já disse, quem não aprende com o passado está condenado a repetir os erros no futuro.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Summus lança "Junho de 2013 - A sociedade enfrenta o Estado"


Os movimentos de junho de 2013 foram uma das mais importantes manifestações populares da história brasileira. Além disso, apresentaram um caráter absolutamente inédito. Não tiveram uma causa, como nas diretas-já e no impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Não foram convocadas por instituições representativas tradicionais, como partidos, sindicatos e grêmios estudantis. E foram surpreendentes porque não existia no horizonte nada que indicasse uma movimentação social tão intensa.

No livro Junho de 2013 – A sociedade enfrenta o Estado (160 p., R$ 47,20), lançamento da Summus Editorial, expressivos intelectuais brasileiros comentam as manifestações. Organizada pelo cientista político Rubens Figueiredo, a obra é uma contribuição para o aprofundamento da análise daquela que foi, provavelmente, a mais complexa e difusa manifestação popular de que se tem notícia no Brasil. Os 10 capítulos contemplados no livro foram escritos, quase todos, no segundo semestre de 2013 e refletem o clima da mais absoluta surpresa que tomou conta da sociedade. “É como descrever um furacão sendo levado pelo vendaval”, diz o organizador. O lançamento acontece no dia 21 de outubro, terça-feira, das 18h30 às 21h30, no piso térreo da Livraria Cultura do Conjunto Nacional (Av. Paulista, 2.073).

O primeiro capítulo traz uma linha do tempo que relembra os principais acontecimentos daquele mês de junho, situando os leitores na perspectiva do momento. “É interessante observar a sequência dos fatos e a reação errática das autoridades e das próprias lideranças das manifestações, que a certa altura do processo confessaram não ter mais controle sobre o que estava acontecendo”, lembra Figueiredo. Em seguida, no segundo capítulo, ele explica o ânimo da opinião pública naquela época e desenvolve hipóteses sobre os fatores que podem ter contribuído para a explosão social e sobre os motivos de irritação da sociedade, entre eles a questão do “inferno da vida privada” e da “escalada da esperteza governamental”.

O economista Roberto Macedo faz, no terceiro capítulo, uma análise dos aspectos econômicos relacionados às manifestações, apresentando dados sobre a urbanização no Brasil e mapeando os investimentos do governo federal nas mais diferentes áreas. No quarto capítulo, o consultor Ney Figueiredo lança luzes sobre a participação dos empresários durante as manifestações, mostrando a omissão completa desse segmento durante os momentos mais críticos dos episódios que mobilizaram a atenção nacional.

“Todo eleitor é um eleitor.com”, afirma o jornalista e especialista em redes e mídias sociais Marcelo Tognozzi ao iniciar o quinto capítulo. Apoiando-se em dados de pesquisa, ele faz uma tipologia do usuário das redes sociais e defende a ideia de que se está criando um ambiente mais propício para fazer política no mundo virtual. Para o autor, esse tipo de mobilização e manifestação não tem líderes, mas ativadores. Já para o cientista social Bernard Sorj, que assina o sexto capítulo, a grande novidade para uma geração acostumada a viver no mundo virtual foi a rua – e não a internet.

No sétimo capítulo, o jornalista multimídia José Nêumanne Pinto interpreta os acontecimentos de junho, com destaque para as reações das autoridades. Ele analisa o zigue-zague governamental, mostrando que o governo atuava a esmo, sem ter a mínima noção do que se passava de fato na sociedade. Em seguida, no oitavo capítulo, um dos maiores especialistas do Brasil na área de estudos sobre a criminalidade e violência, Tulio Kahn, analisa as questões relacionadas à segurança pública que estiveram presentes nos episódios de junho.

Na sequência, o filósofo gaúcho Denis Rosenfield faz uma reflexão crítica acerca do PT e da estrutura política brasileira. O autor insere em sua análise a crise das instituições políticas tradicionais, como partidos, sindicatos e até os movimentos sociais mais conhecidos, que ficaram à margem das manifestações. No décimo e último capítulo, o cientista político Rogério Schmitt faz uma esclarecedora análise da participação dos jovens na população e na política brasileira.

O organizador

Rubens Figueiredo é diretor‑geral do Cepac – Pesquisa e Comunicação. Consultor político, pós‑graduado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), fez estágio nas principais centrais patronais da França, da Inglaterra e da Espanha. É comentarista da rádio Jovem Pan, associado a World Association for Public Opinion Research (Wapor), fundador e diretor executivo da Associação Brasileira de Consultores Políticos (Abcop), integrante do Centro de Estudos de Opinião Pública da Unicamp (Cesop), conselheiro da Fundação Konrad Adenauer e da Associação Comercial de São Paulo. Escreveu, em parceria com Fernando Henrique Cardoso, o paper “Reconciling capitalists with democracy: the Brazilian case”, apresentado na Itália e publicado na Inglaterra. É diretor da Fundação Espaço Democrático e publicou, entre outros, A era FHC: um balanço e As cidades que dão certo (em parceria com Bolivar Lamounier), O que é opinião pública (em parceria com Silvia Cervellini) e Empresariado brasileiro: política, economia e sociedade.

Título: Junho de 2013 – A sociedade enfrenta o Estado
Organizador: Rubens Figueiredo
Editora: Summus Editorial
Preço: R$ 47,20 (Ebook: R$ 30,00)
Páginas: 161 páginas – 14 x 21 cm
ISBN: 978-85-323-0941-9
Atendimento ao consumidor: (11) 3865-9890
Site: http://www.summus.com.br

O junho que não acabou...



Imprimir Detalhes Publicado em Segunda, 20 Outubro 2014 22:04 Escrito por Victória Brotto



Largo da Batata, em Pinheiros, no dia 17 de junho de 2013: os sons da multidão ainda ecoam hoje na vida política brasileira. / Gabriela Biló/Estadão Conteúdo
Os movimentos populares de junho de 2013 entraram para a história do País, mas uma pergunta ainda estava sem resposta. Como os protestos explodiram em um momento em que as estatísticas apontavam para uma sociedade em considerável estado de calmaria? Os protestos ganharam tal relevância que aquele período foi considerado uma "jornada", as chamadas "Jornadas de Junho".

Quase 16 meses depois daquelas manifestações – que não tiveram uma causa como a das Diretas já ou do impeachment de Collor –, o consultor político Rubens Figueiredo assumiu o desafio de responder à pergunta acima, junto com oito renomados especialistas de forma multidisciplinar no livro Junho de 2013 – A sociedade enfrenta o Estado.

"O momento é oportuno porque agora é possível fazer uma análise serena do que de fato aconteceu", diz Figueiredo, organizador da edição. "O mar não estava revolto e ocorreu um naufrágio."

Figueiredo reuniu textos de um time de peso no livro: o economista Roberto Macedo; o consultor Ney Figueiredo; o filósofo e colunista do Diário do Comércio, Denis Rosenfield; o jornalista José Nêumanne Pinto; o sociólogo Bernardo Sorj; o consultor em Comunicação Marcelo Tognozzi; o cientista político Rogério Schmitt e o sociólogo Tulio Kahn.

No livro, que será lançado hoje, às 18h30 na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, os cenários não só dos protestos, mas o anterior a eles, são dissecados pelos especialistas ao longo de sete capítulos e 159 páginas. O economista Roberto Macedo, por exemplo, explica os fatores econômicos ligados ao movimento; o consultor Ney Figueiredo fala sobre a participação dos empresários.

Sobre os protestos no Brasil e no resto do mundo, escreve Bernard Sorj e o jornalista José Nêumanne Pinto fala sobre a relação dos manifestantes com as autoridades, relação esta que é complementada por Túlio Kahn, que analisa a polícia e sua ação "estrategicamente errada". Ao final, o filósofo Denis Rosenfield discorre sobre a resposta do governo de Dilma Rousseff diante de uma geração de jovens desencantados com o PT.


Fotos: Masao Goto Filho/e-SIM, Leonardo Rodrigues/e-SIM e Newton Santos/Hype


Em entrevista ao Diário do Comércio, Rubens Figueiredo afirma que os manifestantes, que em 2013 enfrentaram o Estado, uma polícia "romana que marcha para cima de supostos inimigos" e uma imprensa aterrorizada, conseguiram mudar sim o cenário político do País – mesmo elegendo um Congresso conservador nas eleições deste ano. "Se não houvesse o movimento, a Dilma não estaria empatada com o candidato da oposição, ela ganharia no 1º turno. Após as manifestações, o PMDB e PT, que representavam aquilo contra o qual se insurgiram os jovens, perderam 25 cadeiras no Congresso." Leia a seguir a entrevista:

Diário do Comércio – Como surgiu a ideia do livro e como foram definidos os autores e os aspectos das manifestações a serem analisados?
Rubens Figueiredo – A ideia do livro foi tentar explicar de uma forma multidisciplinar o que aconteceu no ano passado em junho. Quando a ideia surgiu existiam varias interpretações do processo. Então eu pensei: 'Olha vamos convidar analistas que abordem o fenômeno de diferentes perspectivas'. Ele dá uma visão mais serena e mais abrangente do que aconteceu naquele ano. Alguns livros foram publicados, mas acredito que o livro que a gente está lançando tem a vantagem de ter uma análise mais ponderada, os outros foram escritos no calor do momento. Temos, portanto, não só a questão temporal, mas a qualidade dos autores e a abordagem multidisciplinar.

DC – No livro, o senhor diz que os protestos mostraram que houve um AVC na opinião pública sem que houvesse um paciente hipertenso. Como assim?
RF – O governo federal, os estaduais e os municipais estavam bem avaliados, a situação econômica do País estava de acordo com aquilo que vinha acontecendo nos meses anteriores, você não teve uma grande crise institucional, nem um grande escândalo. Então, era difícil você explicar uma manifestação daquele tamanho, daquela virulência, num contexto de aparente calma. O mar não estava revolto e aconteceu um naufrágio. Mas eu levanto hipóteses do que poderia ter acontecido, como por exemplo, a irritação com a esperteza do Estado, colocando a culpa no outro e vendendo o Brasil como o melhor dos mundos, e a péssima qualidade da vida privada, com empresas não dialogando com os clientes e fazendo o que bem entendiam.


O organizador do projeto Rubens Figueiredo e a capa do livro (ao lado): 'Em poucos dias, a mobilização dos jovens acuou a presidente da República'. - Fotos: Divulgação
DC – Ao mesmo tempo que o senhor diz que quer explicar as manifestações, o senhor diz que é impossível fazê-lo. Afinal, o senhor gostaria que o leitor tirasse qual conclusão do livro?
RF – Eu queria que o leitor falasse assim: 'Puxa vida, eu entendi melhor o que aconteceu. Agora eu sei que se a polícia tivesse agido de outra forma, as coisas teriam sido diferentes, eu agora entendo que as explosões sociais não tiveram causas definidas e eu entendo que aquilo que o governo fala nem sempre é aceito pela sociedade, quando ela vê um cenário diferente.

DC – O título do livro é "A sociedade enfrenta o Estado", mas vimos estabelecimentos comerciais sendo quebrados e aversão à imprensa. Não foi então somente um enfrentamento ao Estado.
RF – Sem dúvida, foi um movimento mais amplo. Mas o que me chamou muito a atenção em termos de imagem e simbologia foi aquela tentativa de invasão ao Congresso que foi reportada pela televisão de uma forma muito dramática, até porque a imprensa estava aterrorizada. Mas a sociedade estava enfrentando, de forma revolucionária, o Estado.

DC – E por que a necessidade de enfrentamento e não de diálogo com o Estado?
RF – No capitulo de segurança, temos lá a avaliação da polícia que não estava preparada para enfrentar um movimento daquela natureza. A polícia brasileira parece os legionários romanos, ela identifica alguém que acha que é inimigo e marcha sobre ele. Ao meu ver, o enfrentamento aconteceu, em grande parte, por causa da falta de preparo da polícia. Ela tinha que agir com mais inteligência, pensando em acalmar a situação e não criando mais fogo.

DC – Um ano depois dos protestos, elegeu-se um Congresso. É o mais conservador da última década. Podemos dizer, então, que as manifestações não deram em quase nada?
RF – Depende da temporalidade que você analisa. Quando os acontecimentos ocorreram abaixou-se a tarifa dos ônibus, a presidente da República foi em cadeia nacional, propôs um plebiscito para reforma política, propôs um pacto pela mobilidade e criou-se o Mais Médicos. Não é assim ‘não aconteceu nada’. Se não houvesse o movimento, a Dilma já teria sido reeleita no 1º turno. A avaliação dela caiu 30 pontos e isso foi inédito para as pesquisas. Agora o PMDB e PT que eram governo e representavam tudo daquilo contra ao qual se insurgira, perderam 25 cadeiras no Congresso.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Entrevista para SCAInews



Entrevista com Tulio Khan

especialista em segurança pública

O SCAI News conversou este mês com a Ph.D, Tulio Kahn, especialista em segurança pública. O tema da segurança pública é de extrema relevância para o mundo dos negócios. Ele compromete seriamente o sistema logístico do pais, inibe investimentos que vem de dentro e de fora, limita o potencial turístico e exige a alocação de recursos para a segurança privada. Não há melhor pessoa para esclarecer nossas dúvidas do que o sr. Kahn.

Existe uma forte presunção que políticas de segurança pública no nível estadual tendem a fracassar uma vez que as armas, drogas e outros contrabandos passam pelas fronteiras brasileiras com facilidade. Qual é seu ponto de vista?

Se fizermos uma análise das armas acauteladas na justiça, aquelas que foram apreendidas pela polícia porque estavam envolvidas em algum crime, verificaremos que mais de 80% delas são armas nacionais de baixo calibre: basicamente Taurus e Rossi calibre 32 e 38. Este é o perfil das armas envolvidas na maioria dos homicídios e roubos. Assim, fronteira é um problema apenas para armas mais sofisticadas, que alimentam grupos criminosos organizados, mas cujo volume é relativamente pequeno. Por outro lado, pesquisas sobre o DNA das drogas feitas pela polícia técnica de São Paulo revelam que estas são produzidas majoritariamente fora do país e um controle maior das fronteiras, inclusive estaduais, contribuiria para diminuir o fluxo de entrada. Minha posição, contudo, é que é preciso desestimular a demanda, pois se esta existe, a droga entra de um jeito ou de outro. O controle das fronteiras pode ser útil também para o controle de outros crimes, como roubo de veículos e carga e contrabando. Esta seria a maior contribuição para o sucesso de uma política de

Seria correto dizer que existe uma relação entre o sucesso de políticas de segurança pública e os gastos do setor privado em segurança?

O setor privado exerce um papel complementar mas relevante para a segurança pública. Ian Van Dijk, um criminólogo Holandês, argumenta que parte da responsabilidade para queda dos crimes patrimoniais na Europa na última década cabe a “responsive securization”, ou seja, ao uso mais intensivo dos equipamentos de proteção pela população em geral. Quanto mais o setor privado se protege, mais os recursos públicos podem ser alocados para outras áreas de maior risco. No agregado, todos ganham com a maior participação do setor privado. Estamos falando aqui não apenas dos investimentos das empresas mas dos gastos da população em geral com alarmes, câmeras de vídeo e outros equipamentos de prevenção que se tornaram mais acessíveis ao grande público.

Um dos grandes problemas das empresas brasileiras se refere a fraude e crimes dos próprios funcionários, terceirizados e fornecedores. Há dados confiáveis sobre este tema no Brasil? O que eles dizem?

Não existem dados confiáveis sobre o tema no Brasil e em todo o mundo as estimativas estão subnotificadas. Por isso a ONU (UNICRI) organizou durante um período o projeto ICBS, International Crime Busines Surveys, que perguntava a uma amostra de empresas de vários portes e de diversos países sobre a incidência e prevalência do fenômeno, modus operandi, prejuízos causados, etc. O Brasil fez apenas uma vez esta pesquisa, em 2002, organizada pela consultoria Brasiliano & Associados. Outras empresas de consultoria e segurança privada internacionais fazem levantamentos parecidos, como a Pinkerton, mas os dados não são públicos. Ainda falta no país, portanto, um projeto para estimar, em base nacional e permanente, a magnitude do problema.

É possível criar uma estratégia de segurança pública efetiva sem integrar o sistema de educação, melhorar o sistema judiciário e penitenciário?

Existem políticas isoladas bem sucedidas, como foi o caso da redução dos homicídios em São Paulo em 70% na última década, do qual participei como coordenador de análise e planejamento da SSP. Mas em longo prazo, é inviável pensar numa solução que não passe pela prevenção e funcionamento sistêmico de todo sistema de justiça criminal (polícia, ministério público, justiça, sistema prisional, etc.) Hoje esta integração inexiste até mesmo entre as polícias civil e militar e muito menos com as demais secretarias de Estado. Tampouco existe integração com as esferas Federal e Municipal. Para acelerar este processo de integração, é preciso repensar o modelo presente no art.144 da Constituição, que engessa iniciativas de integração. É preciso pensar numa nova engenharia institucional, como um Ministério da Segurança Pública atuante coordenando o processo de integração e secretaria estaduais e municipais dedicadas à prevenção criminal, com políticas públicas multisetoriais. Assim, por exemplo, um dos projetos que a literatura criminológica identifica como mais eficientes para a prevenção da criminalidade é um projeto da área da saúde onde profissionais visitam por longos períodos e alguma frequência as residências de mães solteiras que engravidaram na adolescência, desde antes do parto, monitorando os cuidados elementares com higiene, saúde e alimentação da criança. Estamos a anos luz de iniciativas como estas no Brasil.



Do ponto de vista de segurança. Quais seriam os 3 melhores e piores estados para uma empresa de logística operar no Brasil?

Do ponto de vista exclusivo da segurança seria desejável operar fora do eixo São Paulo, Rio e Minas, que concentram o grosso do roubo de carga do país. Mas é lógico que é justamente nestes estados que estão grande parte dos produtores e consumidores, de modo que isto implicaria em custos de transporte e operacionais que poderiam não compensar os prejuízos com a segurança. Assim, meu conselho é procurar o localização ideal do ponto de vista da distribuição, armazenamento, etc. e criar um bom setor de inteligência para minimizar os riscos na operação.

Tulio Kahn

Sociólogo formado pela PUC de São Paulo, com mestrado e doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, Tulio Kahn é conselheiro da Fundação Estado Democrático. Foi consultor da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, atuando na Coordenadoria de Análise e Planejamento de 2003 a 2011. Nesta função, atuou também como coordenador do Disque Denúncia no Estado. Foi Diretor do DECASP – Departamento de Cooperação e Articulação das Ações de Segurança Pública – do Ministério da Justiça no final do governo Fernando Henrique Cardoso e Secretário Executivo e Pesquisador do ILANUD - Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinqüente entre 1999 e 2002. Consultor por diversas vezes de órgãos como o PNUD e BID nos últimos anos, foi o gestor estadual do programa de Ensino a Distância da Senasp, do Ministério da Justiça. Foi assessor de gabinete da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo, entre 1997 e 1998. Pesquisador Visitante do Centro de Estudos Brasileiros de Oxford em 2005, Visiting Scholar do CILAS, University of California, San Diego entre 1996/97 e bolsista do Latin American and Caribean Studies da University of Michigan, Ann Arbor, 1995. Ex-pesquisador associado, no Núcleo de Estudos da Violência da USP entre 1992 e 1995 e no Núcleo de Política Comparada da USP em 1996. Ex bolsista da CAPES e CNPq, Kahn recebeu bolsas de iniciação científica, mestrado, doutorado e bolsa "sanduíche" entre 1988 e 1998. Autor de várias pesquisas e artigos no campo da criminologia e da ciência política, Kahn é colaborador do Grupo de Pesquisa da Discriminação da USP , conselheiro do Instituto Sou da Paz, conselheiro do IPT e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Fez parte dos conselhos estadual e municipal de segurança pública e é membro do IIDEJUAL. Entre 1992 e 1995, foi colaborador da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos e, em 1994, membro da comissão de discriminação e racismo do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo. Colabora ainda com o conselho político da Federação Israelita do Estado de São Paulo. Na área de Informática e informação criminal, Kahn foi gestor do sistema INFOSEG do Ministério da Justiça em 2002 e desde 2003 é um dos responsáveis pelo aperfeiçoamento do sistema INFOCRIM na Secretaria de Segurança Pública. Entre 2003 e 2007 foi consultor da E-BIZ solution e da CTIS, ambas empresas de informática, onde ajudou a desenvolver o módulo de auditoria e o SISP – Sistema Inteligente de Mapeamento de Suspeitos – dentro do Infocrim. Coordenador Acadêmico do curso de "Criminologia Social" do Ilanud e do curso "O Crime na Mídia", Kahn lecionou durante 3 semestres no curso de ciências sociais da USP, professor no curso de Gestão de Segurança da Brasliano & Associados e vem realizando inúmeras palestras sobre ciência política, racismo, criminologia e direitos humanos nos últimos anos, tendo participado em vários encontros e seminários nacionais e internacionais. Coordenador do relatório brasileiro sobre o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1992) e, junto com Flávia Piovesan, elaborou os relatórios brasileiros relativos às Convenções da ONU sobre tortura e contra discriminação racial (1996). Também colaborou na elaboração do Plano Nacional de Direitos Humanos, lançado pelo governo federal em 13 de maio de 1996 e foi um dos mentores e autores do Plano Nacional de Segurança Pública, lançado em 2000 pelo Ministério da Justiça. Coordenador da Pesquisa de Vitimização UNICRI em São Paulo em 1997, da Pesquisa de Vitimização UNICRI 2002 em São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória e Recife e atualmente, da pesquisa de Vitimização SSP/Seade, realizada mensalmente na RMSP desde 2005. Paralelamente, tem elaborado argumentos para vídeo nos últimos anos.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O financiamento federal da segurança ou “tem, mas acabou”


Desde os anos 90 o governo federal vem aumentando sua participação na área de segurança pública através da criação de diversos fundos, como por exemplo o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), Fundo Penitenciário (FUNPEN), Fundo Nacional Antidrogas (FUNAD) e Fundo Nacional de Segurança e Educação no Trânsito (FUNSET).

Este esforço para reforçar as políticas e ações estaduais em segurança e prevenção, todavia, acabam muitas vezes seriamente comprometidos pois boa parte dos recursos disponíveis nestes fundos deixam de ser efetivamente utilizados. Na prática, não saem dos cofres do governo, sendo apenas artifícios contábeis.

Assim, por exemplo, o programa que centraliza as ações voltadas às políticas de prevenção, atenção e reinserção social aos usuários de drogas com recursos do FUNAD aplicou apenas 15% do total de R$ 373 milhões previstos para 2013, apesar da existência de 370 mil usuários de crack apenas nas Capitais, de acordo com a Fiocruz.

Desde a sua criação até 2011, o Funpen arrecadou cerca de R$ 3 bilhões, mas repassou às unidades federativas aproximadamente R$ 1,9 bilhão, não obstante um déficit estimado de 237 mil vagas para abrigar adequadamente os 548 mil presos no país. Nos últimos 2 anos, as execuções dos recursos do Funpen não passaram de 20%, apesar do caráter “medieval” do sistema penitenciário, como reconhece o Ministro da Justiça.
Criado para incentivar a conscientização e prevenção de acidentes automobilísticos no Brasil, do total de R$ 860,6 milhões orçados para as iniciativas do FUNSET em 2013, apenas 26,8% foram pagos, o equivalente a R$ 230,5 milhões. Num país onde as mortes por acidente de trânsito superam os 43 mil casos em 2011, segundo o Datasus.

Segundo o site Contas Abertas, apenas entre 2011 e 2012, R$ 3,3 bilhões do montante autorizado para as aplicações no setor de segurança deixaram de ser investidos e considerando o período 2003 e 2012, R$ 7,5 bilhões deixaram de ser investidos na área, levando em conta os investimentos da Polícia Federal (PF), Polícia Rodoviária Federal (PRF), Fundo Penitenciário Nacional (Funpen), Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) , do Fundo de Aparelhamento da Polícia Federal e do Ministério da Justiça (MJ).

Isto num país onde o número de homicídios cresceu 7,8% entre 2011 e 2012 e ultrapassam a casa dos 50 mil casos.
A baixa execução orçamentária na segurança pública tem diversas causas e decorrem, entre outros motivos, da falta de projetos dos estados e municípios, falhas de gestão, como a perda de prazos, contingenciamento pelo Ministério da Fazenda para obtenção de superávit primário, devoluções devido ao mau uso da verba pelos estados, exigências rígidas para a liberação das verbas, excesso de burocracia, despreparo das equipes que lidam com os pedidos de recursos.

É preciso pensar o problema em sua totalidade, qualificando equipes e projetos nos Estados, reduzindo as exigências burocráticas e impedindo que boa parte deste dinheiro seja contingenciado para cobrir o déficit fiscal. Do contrário, ficamos como o freguês do restaurante quando pergunta pelo prato ao garçom e recebe a famosa explicação: “tem, mas acabou”.

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