sábado, 13 de janeiro de 2024

Ainda uma vez sobre homicídios

 


O governo federal publica dados de homicídios dolosos por município, usando como fonte os Boletins de Ocorrência enviados pelos Estados para o Ministério da Justiça. Este procedimento teve início em 1999 (com dados retroativos a 1997), mas a série disponibilizada atinge apenas o período de janeiro de 2018 a outubro de 2023.

Para permitir a comparação entre os anos, na análise abaixo utilizamos apenas o período de janeiro a outubro de cada ano. De 2018 para cá a queda nos homicídios foi de aproximadamente 25%, passando de 41 mil para 31 mil casos nacionalmente. Apenas cinco UFs não apresentaram queda neste período, quais sejam: AM, AP, MA, PI e RO. Três destes Estados estão na Região Norte, que em conjunto apresenta o pior desempenho regional, seguida do Nordeste.

Os demais 22 estados tiveram quedas – algumas expressivas – sugerindo que estamos diante de um fenômeno nacional generalizado e como tal, provocado por fenômenos igualmente nacionais e generalizados. Os suspeitos habituais são a demografia, a economia, mudanças de legislação, pandemia, ou políticas de âmbito nacional.

Onde entram neste cenário as facções criminosas e seus ciclos de conflito e pacificação? Elas ajudam a entender o cenário apenas em estados e momentos específicos. A observação das variações anuais são um meio para tentar identificar sua presença. Observe-se, por exemplo, o crescimento de 56% dos homicídios no AM em 2021, ou de 58% no AP em 2023. Ou ainda o crescimento de 86% das mortes no CE em 2020, antecedido por uma queda de 53% no ano anterior. Parece claro que estas variações abruptas e intensas guardam alguma relação com a dinâmica das facções.

 

De modo geral, todavia, a explicação fundada na dinâmica das facções é bastante frágil e insuficiente para explicar o quadro geral. Observe-se, neste sentido, a forte queda em 21,3% nos homicídios em 2019 com relação ao ano anterior, em 26 dos 27 estados. Difícil argumentar que se tratou de um acordo de pacificação nacional e simultâneo. Mudanças demográficas tampouco explicam quedas desta magnitude e neste intervalo curto de tempo. Não sabemos ao certo ainda a que se deveu, mas certamente não foi nenhum destes fatores.

O aumento de 2020 de 7,2% - abrangendo 19 estados – no ano da pandemia de Covid-19 – é mais fácil de entender, uma vez que crescimento similar foi observado em diversos países, em razão da diminuição da vigilância natural, diminuição do policiamento,  aumento da violência doméstica, variações no consumo de álcool  e outros fatores aventados pela literatura. Os anos seguintes retomam a trajetória de queda, de respectivamente -4,7%, -1,7% e -5% em 2021, 2022 e 2023. Aspectos regionais, como vimos no caso do Norte, ajudam a entender alguns matizes desta tendência.

Uma curiosidade digna de nota é que nenhum estado teve cinco pontos consecutivos de queda nos homicídios (nem de crescimento). Assim, se é que houve alguma política estadual bem sucedida de combate aos homicídios neste período, ela não foi constante nem forte o bastante para superar os fatores nacionais em sentido oposto.

Como o ano de 2024 se inicia, é o momento de invocar a bola de cristal. A população continua envelhecendo e a economia apresenta sinais de melhora, em especial do emprego. Desde 2023 interrompeu-se o fluxo desenfreado de aquisição de armas de fogo pela população. As polícias estaduais parecem progredir aos trancos e barrancos no uso de dados, evidências, gestão por resultado e tecnologias – como câmeras corporais – que implicam na redução da letalidade. Programas como o bolsa educação devem impactar na taxa de evasão escolar a partir deste ano. Pelo menos com relação às macro tendências, portanto, parece que os homicídios vão continuar o processo de queda neste ano. Hora de focar no que está explodindo, como os estelionatos virtuais e no crime organizado. Aproveito para desejar sucesso ao meu ex-professor Ricardo Lewandowsky e ao colega Bendito Mariano à frente do MJ e da Senasp!

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Violência contra homossexuais no Brasil

 A população homossexual é alvo frequente de diferentes tipos de violência no Brasil, tanto devido à intolerância social com relação ao homossexualismo como à maior exposição ao risco, uma vez que nessa população vitimada estão incluídos profissionais do sexo e práticas sexuais com parceiros eventuais e desconhecidos, entre outros fatores de risco.

Matérias jornalísticas e relatórios produzidos por grupos ativistas alertam que o Brasil pode ser o país mais perigoso do mundo para os homossexuais. A percepção de violência exacerbada, por um lado, fez avançar no país as práticas preventivas, o reconhecimento público do problema e a nova legislação contra a homofobia, aprovada em 2019. Mas por outro lado afeta a qualidade de vida desta parcela da população e traz inúmeros outros inconvenientes, como a diminuição do turismo ou atividades nos eventos ou estabelecimentos voltados para este público, para citar apenas alguns.

Trata-se, contudo, de uma afirmação difícil de ser atestada em razão da falta de registros oficiais sobre o problema no Brasil e na maioria dos países, além de diferenças metodológicas e conceituais entre os poucos levantamentos existentes.

No quadro abaixo trazemos algumas estimativas anuais de homicídios contra homossexuais (conceito que pode incluir diferentes subgrupos) nos anos recentes. Tanto o Dossiê de Mortes e Violências quanto o relatório do Grupo Gay da Bahia utilizam como fontes de dados os jornais, mídias sociais, relatos públicos e outras fontes abertas de dados para identificar casos. O Atlas da Violência do Ipea, por sua vez, utiliza dados do serviço Disque 100, do governo federal, que coleta denúncias sobre diferentes tipos de violência. Apenas recentemente o sistema de justiça criminal incluiu, em alguns Estados, a orientação sexual das vítimas e autores nos registros administrativos, de modo que inexiste uma base nacional de dados – seja na área de segurança, seja na saúde – que permita calcular a incidência do fenômeno.

Estimativa de homossexuais mortos violentamente, por ano

A estimativa do Disque 100 é sistematicamente menor do que a feita pelo terceiro setor e ambas são certamente subnotificadas, uma vez que é raro que notícias ou denúncias tragam detalhes sobre a orientação sexual das vítimas, principalmente quando a própria vítima ocultava essa condição. Assim, apenas os casos mais dramáticos e onde as vítimas assumiam a sua condição sexual chegam ao conhecimento público e daí aos relatórios. De todo modo, em média as estimativas vão de 150 a 313 casos por ano, sendo 235 casos anuais a média que utilizaremos aqui para efeito de cálculo das taxas.

Note-se que as fontes não afirmam que estas mortes ocorreram por motivações homofóbicas ou transfóbicas, algo ainda mais difícil de corroborar, mas apenas que as vítimas eram homossexuais e sofreram mortes violentas e intencionais. A questão da motivação dos homicídios é complexa, como discutimos em outros artigos, e boa parte delas é simplesmente desconhecida. Trata-se de uma dificuldade, alias compartilhada por outros fenômenos criminais, como o feminicídio, ou as mortes atribuíveis ao racismo em geral. Apenas uma investigação demorada e detalhada pode levantar evidências sobre a motivação dos homicídios e matérias de jornal, denúncias e boletins de ocorrência raramente trazem estas informações.

Acreditamos que as fontes utilizadas não permitem uma estimativa fidedigna da quantidade de homossexuais mortos no País e menos ainda para inferir quantos se devem à motivação homofóbica. Elas são úteis para chamar a atenção da sociedade para o problema da violência contra homossexuais e para levantar características dos casos como sexo, idade, meio utilizado e outras características associadas a estas mortes. Mas a se fiar nestes levantamentos, as mortes de homossexuais representariam somente 0,6% das cerca de 40 mil mortes violentas anuais no Brasil, porcentagem pequena e que, provavelmente, como discutido, é subestimada.

Como o Brasil tem a 7ª maior população do mundo e o maior número absoluto de homicídios, é natural que em termos absolutos sejamos o país que mais mata homossexuais, mulheres, negros e qualquer outro subgrupo que imaginarmos. É nos números absolutos que normalmente os informes se baseiam para afirmar que o Brasil é o país mais perigoso para homossexuais. Isso não significa, sem pretender minimizar o problema, que seja o lugar mais arriscado.

Risco é um conceito epidemiológico relativo e para sua estimativa precisamos de um nominador (homicídios de homossexuais) e de um denominador (população homossexual) para estimar as taxas usando a população de base. E aqui nos defrontamos com outra grande dificuldade, que é estimar o tamanho dessa população base. Os problemas vão desde o conceito de homossexualidade e seus diferentes subgrupos e gradações, subnotificação em razão da sensibilidade do tema e metodologias de levantamento, que permitem maior ou menor anonimato das respostas. Estas diferenças explicam em parte as grandes diferenças entre as estimativas existentes.

O quadro abaixo traz algumas estimativas recentes sobre o tamanho da população homossexual no Brasil, todas elas com base em pesquisas amostrais probabilísticas nacionais, utilizando diferentes formas de redação e abordagens. Existem graduações de homossexualidade, que vão desde sentir atração por pessoas de mesmo sexo até praticar sexo exclusivamente com elas.

E as estimativas se alteram, obviamente, com a forma como a questão é formulada. Também se alteram dependendo de se a pesquisa foi feita eletronicamente ou em papel, com ou sem presença do entrevistador e outras situações que garantem o anonimato.

De todo modo, apenas a título de ilustração, os resultados incluem deste uma estimativa conservadora feita pelo IBGE, em 2019, que encontrou apenas 1,8% de homossexuais autodeclarados no País (número que o próprio IBGE reconhece como subestimado, embora similar a de outros países) até uma pesquisa da Unesp, de 2022, na qual 12% dos entrevistados se declararam homossexuais. As estimativas dependem também da opção de incluir os que declaram “não saber” ou “não quiseram responder” à questão. Se criarmos uma categoria “não heterossexual”, somando estas categorias, a estimativa do IBGE, por exemplo, sobe para 5,2% da população.

Estimativas da população homossexual no Brasil

No exercício acima, estimamos as taxas de homicídio por 100 mil, considerando uma média de 235 mortes e as diferentes estimativas de população. Como é possível notar, quanto maior a estimativa de população homossexual, menor a taxa. Muito simplificadamente, assumindo que 7,6% da população seja homossexual, teríamos uma taxa de 1,5:100 mil, bastante inferior à taxa nacional, em torno de 23:100 mil.

Vendo de outro modo – igualmente simplista, pois a demografia da população homossexual não se assemelha à da população em geral – se temos cerca de 40 mil homicídios no Brasil e os homossexuais representam 7,6% da população, deveríamos esperar algo em torno de 3 mil homossexuais mortos. Os relatórios, contudo, conseguem identificar apenas uma pequena parte destes casos. O que queremos sugerir é que alguma coisa parece errada aqui: ou na quantidade de mortes, seriamente subestimada, ou no tamanho da população homossexual – e provavelmente em ambas.

As estimativas aqui são um exercício e não tem nenhuma pretensão à validade, e penso que todos os levantamentos sobre a questão, no estágio atual, tampouco deveriam ter. A intenção, como sempre, é colocar as coisas nas suas devidas proporções, com base nas evidências disponíveis e fazer uma crítica metodológica construtiva sobre como esses números são obtidos.

Espero que tenha ficado clara a necessidade de aperfeiçoar os registros públicos e as metodologias utilizadas nos levantamentos: as estimativas atuais sobre mortes de homossexuais, motivação homofóbica e tamanho da população homossexual são precárias. Levando em consideração os dados atuais, não conseguimos estimar a gravidade do problema. E sem boas estimativas, como sempre, não conseguimos formular boas políticas públicas.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Brasil carece de sistema eficiente de inteligência

A história está cheia de exemplos de falhas catastróficas dos serviços de inteligência antes de atentados, guerras ou tentativas de golpe. Apesar de todo aparato tecnológico e bilhões investidos em inteligência, os Estados Unidos foram incapazes de prever os atentados da Al Qaeda, em 11 de setembro de 2001. Israel não detectou a movimentação do Hamas antes dos atentados de 7 de outubro – apesar de alertas do Egito – e também não anteviu a invasão do Egito e Síria na Guerra de Yom Kipur, em outubro de 1973, apesar de alguns indícios prévios. Tampouco os serviços de segurança brasileiros conseguiram se antecipar às invasões na Esplanada dos Ministérios, em 8 de janeiro deste ano, ou os atentados do PCC, em 2006, em São Paulo.

 É claro que os órgãos de segurança já conseguiram se antecipar e frustrar inúmeros ataques e atentados, muitos dos quais jamais saberemos – e é por isso que todos os países investem em estruturas de inteligência, em especial para lidar com o terrorismo, crime organizado e potências inimigas. Mas estes eventos simbólicos ilustram as centenas de falhas a que estão sujeitos os órgãos de segurança e as consequências catastróficas destes erros. Estamos citando aqui grandes “operações”, que certamente deixaram rastros de seu planejamento, mas que apenas posteriormente vieram à luz.

 Eventos desta magnitude não são como um raio em dia de céu azul: demandam recursos e tempo para serem planejados e quase sempre deixam pistas, mas que não foram corretamente interpretadas, em tempo hábil, pelos responsáveis pela segurança. Os motivos das falhas podem ser muitos: ausência de uma estrutura eficiente de inteligência, falta de uma doutrina de inteligência, excesso de confiança na tecnologia, falta de coordenação entre órgãos responsáveis, erros de avaliação, ausência de informações ou às vezes excesso de informações, para mencionar somente alguns. Existem, assim, diversos itens que precisam ser revistos e aperfeiçoados, de investimentos a treinamentos, o eventual retorno a algumas práticas clássicas de inteligência baseadas em fontes humanas (humanit), o estabelecimento de uma rede eficiente de trocas de informações, aperfeiçoamento da legislação antiterrorista etc. 

Estes fracassos servem de lições, duras, para rever procedimentos e estratégias e a comunidade de inteligência de todo o mundo, neste momento, se debruça sobre eles. Dado o baixo padrão de eficiência demonstrado pelas polícias e forças armadas brasileiras para lidar com o crime organizado, contrabando, tráfico de drogas e armas, migração ilegal e controle de fronteiras terrestres, alguém acredita que o setor de inteligência brasileiro teria capacidade para impedir atentados terroristas como os perpetrados contra a Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA) e embaixada israelense em Buenos Aires, nos anos 1990, caso ocorressem no Brasil? É sabido que parte do financiamento e planejamento logístico destes atentados passou pela embaixada iraniana em Brasília e que na região da tríplice fronteira existe uma conexão entre o crime organizado e membros de grupos terroristas como o Hamas e o Hezbolah. 

Para ficar apenas neste caso célebre, em 1992 as investigações revelaram que o coordenador das operações terroristas na Argentina agiu a partir de Foz do Iguaçu. fazendo uso de um telefone atribuído a um certo XXXXXXX (Nisman & Burgos 2013b, p. 9). Esse mesmo número de telefone foi conectado a várias ligações telefônicas feitas pelo grupo operacional do atentado (Nisman & Burgos 2013a, p. 25 e p. 565). O relatório aponta ainda que o attaché Civil da Embaixada do Irã em Brasília entre 1991 e 1993, Jaffar Saadat Ahmad-Nia, era um agente da inteligência iraniana (VEVAK). Segundo depoimentos constantes do relatório, o. Jaffar teria ido à Argentina para ajudar a resolver potenciais problemas logísticos do grupo operacional para os atentados. De qualquer forma, independentemente da acusação, os registros demonstram que Jaffar entrou na Argentina no dia anterior aos ataques e retornou no dia posterior ao ataque à embaixada Israelense em Buenos Aires (Nisman & Burgos 2013b, p. 27). Existem inúmeros registros de atividades, desde a passagem de Moshen Rabbani pelas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba, em 1984. Tanto a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) quanto a Polícia Federal acompanharam, em 1995, a presença de Khalid Sheikh Mohammed no Brasil. Preso em Guantánamo, ele ficou conhecido como a mente por trás dos ataques de 11 de setembro e esteve ligado a vários ataques da Al Qaeda entre 1993 e 2003. De acordo com a famosa 9/11 Commission Report, Mohammed esteve em Foz do Iguaçu em 1995, para encontrar com um contato indicado por Mohamed Atef (Abu Hafs), à época chefe operacional da Al Qaeda (9/11-Commission 2005, p. 148). 

 Ainda em 2016, durante a realização dos Jogos Olímpicos no Brasil, a agência antiterrorismo da Polícia Federal monitorava nada menos do que 42 indivíduos suspeitos de ligação com o terrorismo islâmico em território nacional. Não é o caso de relatar aqui a tentativa de entrada e a passagem, pelo Brasil, de inúmeros suspeitos pelo envolvimento com o terrorismo, nas últimas décadas. Basta saber que eles atuam por aqui e que num momento de acirramento da conjuntura internacional no Oriente Médio, assim como a Argentina foi o Brasil pode ser alvo de algum atentado. Conheci de perto as estruturas de inteligência federal e do Estado de São Paulo, suas capacidades e deficiências, ambas seriamente sub-dimensionadas, sub-financiadas e incapazes de lidar com este tipo de ameaça. O Brasil não é alvo por conta de sua histórica postura de neutralidade durante os conflitos no Oriente Médio e não pelo receio de detecção e antecipação pelos órgãos de segurança. 

 Passou da hora de o Brasil repensar sua estrutura de segurança pública e inteligência. Se não para lidar com o perigo remoto do terrorismo, ao menos para confrontar a ameaça imediata que o crime organizado e radicais impõem ao estado democrático de direito e à qualidade de vida da população.

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