terça-feira, 26 de julho de 2022

“Non ducor, duco”

 

Em 9 de julho comemoramos mais uma vez o aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932. O início do movimento deveria coincidir com a data da independência Americana, 4 de julho, mas como sempre no Brasil, houve um pequeno atraso na organização.

O MIS organizou uma exposição sobre o tema e desenterrou um documentário que ajudei a produzir nos anos 90, como responsável pela pesquisa histórica e argumento – uma série de documentários sobre a história do Brasil começando pela Revolução de 30 e que infelizmente foi interrompida na “Intentona Comunista” de 1935, uma vez que documentários históricos não são exatamente o gênero preferido da população. https://www.youtube.com/watch?v=U2aFvcDVc1k&t=56s

Em linhas muitos gerais o episódio resumido é o seguinte. Em 30 Getúlio Vargas toma o poder, prometendo a realização de novas eleições presidenciais e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte em seguida. A eleição prometida, contudo, não vem, o que gera descontentamento na elite política, principalmente em São Paulo, que alternadamente com Minas Gerais, ocupava a presidência na República Velha.

Todo fenômeno histórico é multifacetado e passível de diversas leituras. Além da insatisfação com a postergação das eleições e o alijamento dos paulista do governo federal, podemos agregar a insatisfação com o interventor “forasteiro” escolhido pelo governo central para o Estado, o bombardeamento de São Paulo por tropas federais em 1924, alguma dose de regionalismo  (a velha tese de que SP é a locomotiva que arrasta 26 vagões como peso morto), reflexos da crise econômica de 1929 e demandas de parte da elite liberal por uma nova Constituição – o que explica porque em São Paulo o episódio ficou conhecido como a Revolução Constitucionalista enquanto o governo federal vendia a ideia de que se tratava de uma movimento separatista.

Não é o caso de aprofundar as causas e consequências da Revolução, que como é sabido foi derrotada militarmente, mas que forçou a promulgação da nova constituição em 1934. Gostaria de ressaltar alguns aspectos sociológicos do evento para efeitos de comparação com a conjuntura atual. Em 32, elite e povo se uniram num grande movimento que mobilizou toda a sociedade paulista, algo que talvez só tenha ocorrido novamente no movimento pelas Diretas Já, mas em escala regional: imprensa, fazendeiros, industriais, estudantes, trabalhadores, donas de casa – participaram dos esforços de guerra no front e na retaguarda, neste confronto que matou mais de 2200 brasileiros, quase cinco vezes o número de soldados brasileiros mortos na Segunda Guerra (a estimativa oficial é de 937 mortos em 32). Durante os 3 meses de combate, os estudantes da faculdade de direito aglutinaram-se em batalhões, as famílias doavam ouro para o bem de São Paulo, as moças alistavam-se como enfermeiras, trilhos de bonde foram arrancados das ruas para a produção de armas, poetas compunham odes ao movimento, que se valeu também das modernas técnicas de comunicação para a mobilização popular, como o rádio e posteres publicitários.

Razões históricas e conjunturais explicam em parte porquê a demanda por eleições democráticas e uma nova constituição encontraram eco principalmente em São Paulo. Mas existem razões “estruturais” que explicam o motivo de quase todos os movimentos democráticos e antiautoritários nascerem ou contarem com a adesão generalizada no Estado. O argumento aqui foi bastante e melhor desenvolvido no estudo sobre “Capitalismo e Liberdade” de Friedman: a defesa da liberdade política e da liberdade econômica estão entrelaçadas e ambas as bandeiras tem melhores condições de se desenvolver em sociedades de mercado relativamente complexas. Recorrendo a Gramsci por equidade, os intelectuais orgânicos da burguesia – jornalistas, advogados, poetas – fornecem apenas o discurso ideológico que tem um substrato econômico e social mais profundo.

É nas sociedades de mercado complexos que surge uma burguesia relativamente independente do Estado, com autonomia para lutar por seus próprios interesses. Um movimento sindical e estudantil ativos, uma imprensa autônoma que não depende umbilicalmente dos recursos públicos. É onde existe um mercado de trabalho na agricultura, indústria e comércio muitas vezes superior em tamanho ao mercado dos empregos públicos. É ali que passa a existir uma relativa independência do orçamento público, dos impostos, das sinecuras, do protecionismo, das amizades com o governo de plantão. A vida econômica não começa e termina com o Estado, mas se desenvolve de maneira relativamente autônoma. As ideias circulam nas universidades, jornais, livros pois há uma classe média desenvolvida, que já forma um “povo” e não apenas uma “multidão”.

Não é só o tamanho da população mas principalmente as características da economia e da sociedade  paulistas que explicam porque os ideais democráticos de 32 encontram campo fértil para crescer em São Paulo. E a razão pela qual os intelectuais, as entidades e instituições paulistas são sempre as primeiras a aderir às causas democráticas e libertárias: é que sem liberdade política não existe liberdade econômica. Sem direito ao voto, a propriedade privada é ameaçada. Sem eleições, o mercado não funciona de modo eficiente. Sem capitalismo não há liberdade, mas sem liberdade tampouco há capitalismo.

É de São Paulo, principalmente, que vem agora novamente o alerta do “perigo contra a normalidade democrática”, como expresso no recente manifesto supra partidário pró-democracia gestado na Faculdade de Direito da USP, repetindo a Carta aos Brasileiros de 1977. Não somos mais idealistas do que os demais brasileiros nem defensores mais ardorosos da democracia. Temos apenas uma economia de mercado mais complexa e uma sociedade mais independente do governo central– o que nos dá, como em 32, o dever moral de servir como um anteparo aos eventuais abusos do Estado.

 

 

quarta-feira, 13 de julho de 2022

“Em Deus, nós confiamos. Todos os outros tragam dados”

 

A frase do título é atribuída ao estatístico Edwards Deming e sugere que se tratava de homem tanto de ciência quanto de fé. Mas nem sempre o Senhor gozou desta confiança inabalável. A leitura do Velho Testamento fala de um período em que o Criador do Universo ainda se apresentava ao mundo e nem todos confiavam na sua existência, onisciência ou onipresença.

Diante desta audiência primitiva e desconfiada, às vezes até mesmo o Todo Poderoso (bendito seja) precisou às vezes apelar para as evidências científicas, dados e fatos para demonstrar  seu poder.

Estas semanas andei lendo os comentários de Rashi[1] sobre a saída do Egito, quando Deus precisava comprovar seu poder tanto para o Faraó quanto para os próprios hebreus e convencer o Faraó a libertar seu povo da escravidão. Para tanto, como é sabido, instruiu Moises e seu irmão Arão a irem até Ramsés e demostrarem – através das 10 pragas – que Ele existe é Moises e Arão falavam em Seu Nome.

Faraó, contudo era um sujeito aparentemente bastante cético – daria um excelente revisor de artigos acadêmicos - e queria provas convincentes da origem Divina da demanda. Como saber com algum grau de certeza de que não se tratava apenas de “magia” e truques o que Moisés e Arão apresentavam como provas do poder celestial? Quando o cajado de Moises se transforma numa serpente, os necromantes do Egito replicam o mesmo truque usando magia e o mesmo acontece quando as águas do Nilo são transformadas em sangue ou quando os sapos infestam a terra... Tudo podia não passar de coincidências e truques e Faraó parecia acreditar firmemente que “correlação não significa causação”.

É então que Deus passa a apelar para um pouco de ciência, design de experimentos e probabilidades estatísticas...Faraó pede a Moises que termine a praga dos sapos e Moises pergunta “para quando você quer que os sapos sejam destruídos?” Ele pede então que o faça para amanhã e na manha seguinte os sapos desaparecem (Shemot, 8:5). Trata-se talvez do primeiro experimento “antes-depois” da história, pois a “intervenção” divina subitamente interrompe a epidemia, justamente após o pedido. Mas o design antes-depois, como sabia o Faraó, é um design de pesquisa bastante frágil, pois não elimina a hipótese da interrupção ter se devido ao acaso. Diante da inexistência de uma prova mais robusta, ele recusa-se a autorizar a saída dos escravos hebreus do Egito.

Com a aparição da terceira praga, piolhos,  os mágicos do Egito procuram por todos os meios e truques conhecidos reproduzir o experimento e falsear a hipótese divina, mas desta vez em vão. Eliminadas as teorias alternativas, os mágicos e necromantes concluem (erroneamente, do ponto de vista científico) de que se trata “do dedo de Deus” (Shemot, 8:15) pois tal praga não poderia ser produzida através de magia. Mas Faraó, popperiano antecipado, não se deixa convencer e se recusa a acreditar mais uma vez. Outras hipóteses poderiam ser pensadas para explicar o fenômeno.

Segue-se então a praga dos animais peçonhentos, mas desta vez Moises, mais precavido, introduz um grupo de controle: pois a praga atingiria toda a terra do Egito, mas naquele dia “ eu irei separar a terra de Goshen, onde meu povo fica, e não haverão animais peçonhentos ali, de modo que você saiba que eu sou o Senhor no meio da terra” (Shemot, 8:18). A mesma separação é feita na praga seguinte, peste sobre os animais, de modo que apenas os animais egípcios foram atingidos, mas não os dos filhos de Israel. E desta vez, para tornar a prova ainda mais robusta, Moises diz exatamente quando a praga vai ocorrer, propondo um design de prova que os pesquisadores modernos denominam “antes-depois-com grupo de controle”. Assim, no dia seguinte, como afirmado, todo o rebanho egípcio morre, mas não o dos filhos de Israel.

O design “antes-depois-com grupo de controle” é mais rigoroso do que os anteriores, mas assim mesmo Faraó não está convencido e não deixa o povo partir. Observe-se que, como os hebreus são os protegidos do Senhor, não seria possível desenhar um experimento randômico controlado, padrão ouro da ciência. Este tipo de estudo exige o sorteio aleatório prévio dos grupos intervenção e controle, mas isso faria com que grupos egípcios fossem poupados das pragas enquanto grupos hebreus fossem castigados. O grupo de controle fora escolhido intencionalmente uma vez que parâmetros éticos impediam neste caso o uso da aleatoriedade – como é comum nos estudos científicos. Havia, portanto, um possível viés de seleção difícil de ser eliminado. E se a terra de Goshen tivesse características não controladas, que impediam a propagação das pragas?

Assim, para convencer o cético Faraó, o Senhor dos Exércitos produz uma sucessão de novas provas: chagas, chuva de pedras, nuvens de gafanhotos, trevas e, finalmente a mais terrível, morte dos primogênitos. Moises vai refinando suas provas, dizendo a que horas exatamente as pragas ocorreriam, por quanto tempo durariam, poupando sempre os locais onde habitavam os hebreus (Shemot, 9:18; 9:26). Depois desta série de evidências acumuladas, parte dos egípcios passou a acreditar nas ameaças e a proteger seus rebanhos, escravos e a si mesmos em abrigos, enquanto os que não acreditavam nas evidências abandonaram-nos desabrigados nos campos. Naquela época como agora, a crença nas evidências e provas salva vidas e a descrença traz infortúnios!

A prova mais sofisticada e contundente é sem dúvida a última praga, morte dos primogênitos. Não só Moises diz que apenas os filhos mais velhos serão afetados por ela, mas não os demais filhos, como cria um procedimento que é difícil de ser refutado. A passagem bíblica é conhecida como “pessach” que significa “passar sobre”. Os hebreus são instruídos a fazer um sacrifício e com o sangue do animal imolado, pintar o umbral de suas casas, como um sinal. Assim, mesmo nos locais onde egípcios e hebreus moram lado a lado, Ele mesmo passará pelas casas e “passará sobre” as casas dos hebreus, afligindo apenas as casas dos egípcios. Como explicar que a morte atinge apenas os primogênitos e apenas nas casas dos egípcios, mesmo vivendo lado a lado, senão como prova do “dedo de Deus”? (ok, algum revisor chato poderia arguir que o sangue do animal ou algum outro procedimento adotado afastou a pestilência, mas ainda sim há a questão do primogênito). A décima praga não apenas é a mais terrível como também é a mais robusta do ponto de vista dos procedimentos adotados.

Como é sabido, Ramsés só liberta os hebreus depois da 10º e mais terrível praga. Mesmo desacreditando de cada prova individualmente (algumas realmente fracas, como a da serpente), Faraó parece chegar à conclusão, revendo as evidências, que a probabilidade de que não estivesse diante do “dedo de Deus” era afinal bastante baixa, analisando uma sequencia de 10 provas consecutivas com 10 “sucessos”. Mesmo desconhecendo a distribuição binomial, a probabilidade acumulada de provas seguidas mostrarem o mesmo resultado dificilmente poderia ser produto de truques ou do acaso. (na realidade, mesmo que Faraó tivesse interpretado corretamente as evidências desde o início, Deus “endureceu” seu coração, pois queria que os sinais de sua intervenção fossem reconhecidos em todo o mundo, mas esta é outra estória).

A história das 10 pragas do Egito serve para mostrar também que nenhuma evidência é forte o suficiente quando existem motivos exteriores para não enxerga-las, como o orgulho, preconceito ou as ideologias. Ela é interessante também porque mostra que nem todos os homens tem a fé cega de um Moisés ou de um Arão – embora mesmo Moisés, que tinha problemas de fala, duvide inicialmente que conseguira executar a tarefa. Assim, por diversas vezes na Toráh, Deus tem que  fornecer evidências e sinais tangíveis de seu poder, apelando para o intelecto humano, para a lógica e para probabilidades. O Homem, afinal, foi feito à sua imagem e semelhança e busca por associações causais. E o “desenho” destas provas se assemelha algumas vezes, como no caso das 10 pragas, ao que os estudiosos costumam utilizar na ciência, para mostrar que os resultados não são, com algum grau de certeza, apenas coincidências.

Deus não joga dados com o Universo, mas o Homem joga e aprendeu a conhecer as regras do acaso. Como Ele só manifesta sua presença diante de alguns poucos, tem que convencer os demais, mais céticos,  não somente pelo medo, mas também através da razão.



[1] Um rabino francês dos anos 1000, Shlomo ben Yitzhak,  conhecido por seus comentários e explicações sobre a Toráh e outros textos judaicos.

terça-feira, 5 de julho de 2022

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segunda-feira, 25 de abril de 2022

Migração dos crimes violentos de rua para crimes digitais

 


Em artigo recente mostrei como o pico das séries criminais no Brasil parece ocorrer por volta de 2016 e 2017 - depois de dois anos de aguda contração na economia. Analisando por modalidade criminal, vimos que roubo a instituição financeira e tentativa de homicídio caíram a parir de 2015, furto de veículos e roubo seguido de morte a partir de 2016, homicídios, lesão corporal seguida de morte, roubo de carga e roubo de veículos desde 2017. (Kahn, 2022 – Sensação de insegurança e criminalidade em queda. https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6912794055009542144/)

Discutimos também nos últimos anos em diversos artigos algumas hipóteses para a queda dos homicídios no Brasil e que podem se aplicar agora também aos demais crimes violentos, também em queda após o pico de 2017, como temos mostrado: demografia, ciclos econômicos, regressão à média, securitização responsiva, etc.

Entre as hipóteses mais plausíveis há uma conjectura segundo a qual a migração dos crimes violentos para os crimes digitais se deveria a mudanças de tecnologia, que por sua vez estariam induzindo a mudanças na atividade de rotina. Entre estas mudanças tecnológicas estão a proliferação de celulares, o acesso praticamente universal à internet e o aumento do tempo dedicado pelos jovens aos jogos on-line, redes sociais e serviços de streaming.  Estas novas rotinas produziram recentemente mudanças bruscas no estilo de vida, diminuindo a motivação dos agressores e as oportunidades de contato entre agressores e vítimas.

A teoria do crime como atividade de rotina diz que para que um crime ocorra é preciso que ofensor e vítima se encontrem num determinado espaço (pouco protegido) e tempo. Pelo menos esse é o caso para os crimes de contato. O avanço das novas tecnologias impõe uma revisão da teoria uma vez que o encontro físico entre agressor e vítima tornou-se secundário. A hipótese é que a proliferação de celulares, especialmente entre os jovens, é tão intensa e seu uso tão intensivo, que estes encontros entre ofensores e vítimas estão deixando de ocorrer com tanta frequência como antes. (por outro lado, é uma boa explicação para o crescimento do roubo e furto de celulares). Menos interação social implica em menos conflitos e, por conseguinte, menos homicídios. O fenômeno é mundial e aparentemente também se observa em algumas partes do Brasil, de uns anos para cá.

Vejamos alguns dados sobre o fenômeno. O celular é a principal forma de conexão com a internet e redes sociais. Segundo a pesquisa Global Digital Repport de 2022, o tempo médio diário global dispendido nos celulares é de 4 horas e 48 minutos. Os brasileiros lideram o ranking de uso, com uma média de 5 horas e 25 minutos. Segundo a pesquisa, no Brasil, 77% da população acessam a Internet e o uso é intenso. Enquanto o tempo médio diário global na Internet é de 6 horas e 58 minutos, no Brasil o tempo online é 10 horas e 19 minutos diários, atrás apenas da África do Sul e das Filipinas. Desse total, as pessoas dedicam em média no mundo, 2 horas e 27 minutos às redes sociais, enquanto no Brasil, chegamos a 3 horas e 41 minutos diários. As pessoas ficam online principalmente para buscar informações (61%), manter contato com familiares e amigos (55%) e ficar atualizado (53%).

Em artigo de 2019 comentei este intenso crescimento, identificado pelo IBGE e a hipótese da migração: “De acordo com os dados da pesquisa TIC do IBGE de 2018, em 2008 apenas 34% da população brasileira tinha acesso à internet.  Dez anos depois, este número dobrou. Em 2018, 69,8% da população tem acesso a internet. Nas classes A e B esta porcentagem supera os 90%. Isto representa 127 milhões de pessoas ou 46,5 milhões de domicílios com acesso a internet. Proporcionalmente, o crescimento foi maior nas classes C,D e E, embora a penetração absoluta ainda seja menor nos grupos de renda mais baixos.

 

Entre os jovens de 20 a 24 anos 88,4% tem acesso à internet e a grande maioria, 97%, acessa a internet pelo smartphone. No sudeste, 76,5% utilizam a internet, em comparação com 60,1% no Norte e 58,4% no Nordeste. Esta distribuição se encaixa no fato da criminalidade ter caído mais no Sudeste e menos no Norte e Nordeste.

 

Não só o acesso à internet cresceu como também o tempo que as pessoas passam conectadas na rede, especialmente os jovens. Segundo a pesquisa We are social de 2019, o brasileiro passa em média 9 horas e vinte minutos conectados a internet, por dia. Deste tempo, 3:30 minutos são gastos acessando as redes sociais. Somos o segundo país no ranking mundial de tempo gasto na internet. Regra geral, nações em desenvolvimento passam mais tempo na internet do que nações desenvolvidas. Isso ocorre porque eles têm população mais jovem, cuja permanência diária na internet é maior do que a média da população.

 

O elevado nível de acesso e o tempo gasto na internet explicam porque o Brasil está nos primeiros lugares do ranking de crimes cibernéticos do mundo (somo 2,8% da população mundial, mas cerca de 5% da origem dos ataques cibernéticos no mundo)  e ajuda a entender também a predileção dos criminosos, em geral jovens, pelos smartphones. A hipótese é de que este aumento dos celulares, do acesso à internet e tempo gasto na internet, deslocou parte dos criminosos para os crimes digitais”. (Kahn, 2019.Ladrões e vítimas no ciberespaço: internet, mudança de estilos de vida e queda dos roubos, in Segurança Pública: diagnósticos e prognósticos - 2019 eBook Kindle). No artigo mostrei como a queda do roubo de veículos nos Estados  guardava uma correlação inversa elevada (r=-.71) com a porcentagem de jovens com acesso à internet.

 

Os dados de explosão dos estelionatos no país reforçam a ideia de que é possível que estejamos passando de uma transição dos crimes de contato – que são potencialmente mais violentos – para os crimes digitais. Se a hipótese for correta, deveríamos observar uma diminuição da criminalidade violenta nas regiões onde o acesso à internet foi mais intenso e precoce. Embora os crimes digitais não tenham fronteira geográfica, é uma possível explicação para o fato dos homicídios e outros crimes terem começado a cair antes no Sudeste e apenas tardiamente no Nordeste e Norte.

Para uma minoria de ofensores conectados e mal intencionados, abriu-se um novo e imenso mercado de oportunidades criminais. Há uma discussão sobre se se trata de antigos criminosos que passaram a adotar um novo modus operandi ou de uma nova geração de criminosos, mas não temos informação suficiente para esclarecer o ponto. Tampouco sobre se estamos lidando com criminosos isolados e eventuais ou quadrilhas organizadas. Mal começamos a mensurar a magnitude do fenômeno e ainda a menos a estudar suas características.

 No Rio de Janeiro os estelionatos aumentaram 103% entre 2018 e 2021, no Rio Grande do Sul 274%, no Espírito Santo 230%, no DF 186% e em Santa Catarina, nada menos que 288% no mesmo período. O crescimento médio nos cinco estados foi de 201% no período, quando os estelionatos passam de 100 para 300 mil casos anuais. Dados dos dois primeiros meses de 2022 sugerem que a média mensal de casos continua crescendo. Infelizmente apenas alguns Estados disponibilizam os dados de estelionatos ou de crimes digitais, mas é bastante provável que o fenômeno seja nacional. Note que a epidemia apenas exponenciou um fenômeno pré-existente, levando mais gente a ficar em casa, acessando a internet através de computadores mais desprotegidos do que nas empresas ou escolas.

Os crimes digitais podem englobar também os furtos e roubos, mas os mais comuns são as diversas modalidades de estelionatos, onde o crescimento é mais visível. O artigo 171 do Código Penal define estelionato como “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.”, com pena de 1 a 5 anos de reclusão e multa. Mudança importante ocorreu em 2019, através da Lei 13.964 de 2019, conhecida como Lei Anticrime, que estabeleceu que o crime de estelionato não é mais de ação penal pública incondicionada, mas sim pública condicionada à representação. Em outras palavras, deveríamos esperar uma diminuição no número de casos reportados à justiça, mas presenciamos justamente o contrário. É provável que o crescimento vertiginoso na quantidade de casos tenha induzido esta mudança na legislação.

Para tentar conter o avanço do fenômeno, o legislativo fez o de sempre, ou seja, procurou aumentar a pena para o estelionato. O Congresso apresentou vários projetos como o 2068/20, PL 4554/20 e o Projeto de Lei nº 2905/2021, para aumentar as penas para o crime de estelionato, com agravamento de pena “se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.” Finalmente, uma nova lei sobre o assunto (14.155) entrou em vigor em maio de 2021. https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-14.155-de-27-de-maio-de-2021-322698993. É preciso uma analise rigorosa dos efeitos destas propostas, mas a julgar pelo gráfico acima e pelo histórico dos “aumentos de pena” no país, a proposição não intimidou muito os estelionatários...

É preciso também aprofundar o estudo do fenômeno e pensar em medidas preventivas – alertas para a população, uso de tecnologia, melhoria na investigação e monitoramento do problema,  etc. - que vão além do aumento das penas. Uma das dificuldades na prevenção ao estelionato é que existem dezenas de tipos diferentes de golpes. Assim, por exemplo, segundo o Observatório de Segurança Pública do Mato Grosso, os golpes mais comuns em 2021 foram a clonagem do Whatsapp (27%), golpes por sites de comércio eletrônico e redes sociais (21%);  transação financeira sem autorização do titular, como o saque do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), auxílio emergencial ou empréstimo (12%); boleto e código de barra falso (4%); cartão clonado (4%); SMS ou Link falso que quando acessado furta os dados da vítima (2%); outros golpes (cheque clonado, depósito com envelope vazio, documento falso), com 2%; e golpe do motoboy (1%). Entre os golpes mais comuns, segundo a FEBRABAN, estão o da “falsa reputação”, a pirâmide financeira, o golpe do falso funcionário do banco, falso motoboy, falso leilão, o “pisching”, golpe do extravio do cartão, do delivery, entre diversos outros.

Desnecessário dizer que o prejuízo potencial para as vítimas destes golpes supera em muito os valores que podem ser perdidos com o roubo de uma carteira ou mesmo de um carro ou residência. Para o criminoso, a punição é menor e bem menos arriscada do que para roubo. Tampouco é preciso intermediários para transformar o fruto do crime em dinheiro. Com o processo de securitização, veículos e residências são cada vez mais difíceis de roubar. Em resumo, mão é preciso ser um grande calculador racional para entender a troca dos roubos pelo estelionato.

O aspecto positivo, se é que existe, é que se realmente temos uma migração, então os crimes violentos de contato podem entrar numa tendência duradoura de queda. Ainda é cedo para adiantar e talvez estejamos apenas diante de um ciclo de queda, mas é possível que em alguns anos o Brasil passe por algo parecido com que vem ocorrendo nos países desenvolvidos, onde a criminalidade tem caído sistematicamente nos últimos 20 anos: homicídios, arrombamentos, roubos de veículos diminuíram intensamente na Europa Ocidental, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão e diversos outros em todo o mundo. A exceção por lá, como aqui, são os crimes digitais e os roubos/furtos de celulares, que cresceram em muitos países. Estas tendências são corroboradas não apenas pelos dados oficiais, mas também por pesquisas de vitimização e fontes paralelas ao sistema de justiça. (Farrel, 2014; Farrel, 2018; Sidebotton, 2018; Matews, 2018).

Sempre teremos alguém querendo vender o Pão de Açúcar e cartões de loteria premiada e gente inocente o suficiente para pagar por eles. As novas tecnologias apenas abriram novos mercados para uma prática milenar enquanto fecharam outros mercados, reforçando a proteção de veículos e residências. Criminosos, como todos nós, se adaptam aos novos tempos.

sexta-feira, 25 de março de 2022

Sensação de insegurança e criminalidade em queda

 

O brasileiro parece estar relativamente menos preocupado com a situação da segurança pública, a julgar por dois indicadores da pesquisa CNT/DMA. A pesquisa é realizada desde 2011, o que permite alguma comparação temporal do tema.

Uma das perguntas do questionário é sobre a expectativa para a situação da segurança pública no país para os próximos seis meses. A maioria dos entrevistados na última edição de fevereiro de 2022 (48,6%) acha que a situação vai ficar igual, enquanto 29,2% avaliam que a situação vai melhorar. O que chama a atenção na última edição é a baixa porcentagem (20,3%) dos que acham que a situação vai piorar ainda mais. Há oito anos, os pessimistas chegaram a ser 45,7% dos entrevistados.

A série histórica mostra que o otimismo com relação à segurança do início da gestão Bolsonaro (38,9% de vai melhorar) caiu posteriormente no segundo ano do governo, mas foi aos poucos crescendo progressivamente, de 18,5% em maio de 2020 até os 29,2% atuais. Se não podemos dizer que o brasileiro está otimista com a situação de segurança, os dados da pesquisa CNT sugerem que talvez estejam menos pessimistas.

Essa interpretação é corroborada quando analisamos a questão sobre “quais setores precisam de melhorias no Brasil”, onde o entrevistado pode escolher dois temas entre os sugeridos. A questão da saúde aparece sempre em primeiro lugar, entre 71 e 88% das menções. A educação é mencionada por metade dos entrevistados, com exceção da rodada de janeiro de 2020, quando sobe para 66,5% das escolhas. O tema da segurança pública costumava superar a preocupação com o emprego, principalmente no ano de 2014, pré crise econômica, onde apenas uma minoria mencionava o emprego como uma preocupação, enquanto segurança preocupava mais de um terço dos entrevistados. Porém, na última rodada, em fevereiro de 2022, a ordem dos temas se inverte: enquanto o emprego continua como preocupação de um terço dos entrevistados, a menção à segurança cai abruptamente para o menor patamar da série, sendo mencionada por apenas 15,5% dos entrevistados. [1] Trata-se de uma queda de 28% com relação à edição de 2020, um fenômeno digno de estudo, se descartarmos as hipóteses de erro ou grandes mudanças metodológicas. A série histórica é curta e intermitente e não permitem grandes ilações. Mas analisadas em conjunto sugerem uma melhora na percepção de segurança da população nos últimos anos.

Mas o que significa realmente a melhora na percepção da segurança?

Sabe-se que percepção de segurança nem sempre guarda relação com a evolução da criminalidade medida pelas estatísticas de criminalidade e que é possível que eventualmente caminhem em direções opostas. As pesquisas de vitimização já mostraram exaustivamente que as pessoas que se sentem mais inseguras não são necessariamente as pessoas mais vitimadas.

É possível que a expectativa da situação de segurança e a avaliação dos setores que mais precisam de melhorias sejam em parte somente um reflexo da aprovação geral do governo e que guardem pouca relação com a evolução da criminalidade. Estudos mostram que a aprovação da segurança depende em grande parte da avaliação geral do governo, embora em alguns períodos elas se comportem de modo independente. Não é simples interpretar o significado destes indicadores de “percepção de segurança”, pois eles podem refletir em parte apenas uma avaliação genérica do governo de plantão. São poucos os cidadãos que acompanham de fato as medidas tomadas pelos governos ou as estatísticas criminais.

De todo modo, sabendo desta relação entre aprovação genérica do governo e aprovação da segurança, chama ainda mais a atenção que os indicadores de segurança da pesquisa CNT/MDA apresentem esta melhora recente, quando a avaliação do governo atual é em geral negativa: apenas 35% da população aprovam a atual gestão, segundo os dados na PoderData de 17 de março de 2022. A pesquisa Exame/Ideia de 24/3 levantou que apenas 28% do eleitorado avalia o governo como “ótimo ou bom”. Em 2019 e 2020 esta porcentagem beirava os 50%, segundo os dados da CNI/Ibope.

Se a melhora dos indicadores subjetivos de segurança não parecem refletir a aprovação geral do governo (apesar do ligeiro aumento recente), será que estão relacionadas ao desempenho da criminalidade?

Se não há uma correlação exata, espera-se que as percepções sobre segurança sejam em longo prazo pelo menos congruentes com a situação criminal tal qual mensurada pelos dados oficiais. A se basear nas estatísticas criminais coletadas pelo Sinesp a partir dos dados enviados pelas secretarias estaduais de segurança, a queda na sensação de insegurança é congruente com a queda de alguns indicadores criminais nos últimos anos.

O pico da criminalidade no Brasil parece ocorrer entre 2016 e 2017, depois de dois anos de aguda contração na economia – com exceção dos estupros, que continuam a crescer até 2019.

Analisando por modalidade criminal, vemos que Roubo a instituição financeira e tentativa de homicídio caem desde 2015, Furto de veículos e roubo seguido de morte caem a partir de 2016, homicídios, lesão corporal seguida de morte, roubo de carga e roubo de veículos  a partir de 2017. Com relação a 2015, vemos que apenas estupros apresentam crescimento de 17,3% no período e mesmo este delito apresentou queda nos últimos dois anos. Em média os crimes caíram 31,3% no período e no caso de roubo de veículos, que já foi objeto de análise em outro artigo, as quedas superam 40%.

Tratam-se, portanto, de quedas abruptas e intensas, e que precedem quase sempre as atuais gestões federal e estaduais. Diversas hipóteses têm sido aventadas para explicar o fenômeno – mudanças demográficas, profissionalização do tráfico, melhorias na gestão das polícias estaduais, melhorias nos sistemas de prevenção dos carros e casas, migração das modalidades presenciais para virtuais de crimes (que não aparecem nestas estatísticas), maiores investimentos, etc. Não é caso de aprofundá-las aqui, mas em particular interpreto o fenômeno como uma regressão à média depois do pico de 2017, quando o ciclo econômico recessivo de 2014-2016 provocou o aumento intenso da criminalidade.

O objetivo aqui, contudo, é apenas mostrar que parece existir uma congruência neste momento entre queda nos indicadores criminais e queda na percepção de insegurança da população, pois a percepção de segurança melhora, não obstante a relativamente baixa aprovação do governo federal. O presidente é bastante identificado com o tema da segurança e certamente procurará explorar esta conjuntura favorável em sua campanha eleitoral.



[1] Na última edição a pesquisa alterou ligeiramente as opções, incluindo “direito das minorias”, que recebeu 6,8% dos votos. Parece improvável que pessoas que apontavam antes segurança como preocupação tenham migrado para esta nova categoria. Por que esta nova categoria roubaria especificamente votos das pessoas antes preocupadas com segurança? O mais provável é que tenha ocorrido uma diminuição real na preocupação com a segurança. Mas parte desta queda abrupta pode ter ocorrido em função da inclusão desta nova categoria.

quinta-feira, 24 de março de 2022

Novas regras para a elaboração dos Planos Municipais de Segurança

 Nas últimas décadas, parece ter havido um alargamento da questão de segurança pública tanto do ponto de vista conceitual quanto do administrativo: de problema estritamente policial passou a questão multidisciplinar, envolvendo diversos níveis e instâncias administrativas. E este processo de alargamento ocorreu depois da Constituição de 1988, que em nada alterou o papel da Federação nem dos municípios na esfera da segurança, apesar da tendência municipalista em diversas outras esferas.

Em nível federal, são marcos desse processo de alargamento: a criação da  Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) em 1995, do INFOSEG (Sistema de informações criminais da Secretaria Nacional de Segurança Pública) do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp) e a elaboração do Plano Nacional de Segurança Pública em 2000 – que trouxe consigo o estabelecimento do Fundo Nacional de Segurança Publica – com recursos anuais em torno de 300 milhões de reais para investimento em recursos humanos e materiais das Polícias. Com relação ao Fundo Nacional de Segurança Pública, assinale-se que ele abriu a possibilidade para que não apenas as Polícias estaduais, mas também os municípios requisitassem recursos do Governo federal para projetos de segurança. Isto significa que o Governo federal viu como legítima e procurou incentivar desde então a atuação dos governos locais em segurança.

O acesso aos recursos pelos municípios é vinculado à apresentação de projetos congruentes com a política de segurança pública do Governo federal e, para tanto, deve atender algumas solicitações específicas, entre elas a elaboração de um Plano Municipal de Segurança. Neste sentido, a Senasp tem orientado os municípios para que os Planos sejam compostos de diagnósticos (área geográfica, problemas da região, dos principais crimes e ocorrências policiais, características sociais, econômicas etc.) dos problemas existentes e de ações relevantes para seu enfrentamento.

Outra característica sugerida pela Senasp é a ênfase na prevenção. O governo federal passou a adotar a ótica preventiva desde 2001 com o pioneiro programa Piaps (Plano de Integração e Acompanhamento dos Programas Sociais de Prevenção à Violência) gerenciado pelo Gabinete de Segurança Institucional da Presidência durante a gestão do general Cardoso. Os governos seguintes mantiveram esta postura preventiva e visão do município como ente complementar no esforço de redução da criminalidade. Assim, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), teve como meta a articulação de políticas específicas de segurança com ações sociais. De acordo com o Ministério da Justiça, os eixos centrais do programa voltam-se para a valorização dos profissionais de segurança pública, a reestruturação do sistema penitenciário, o combate à corrupção policial e o envolvimento da comunidade na prevenção da violência.

Finalmente, nesta linha preventiva e colocado em prática pelo atual governo temos o projeto Em Frente Brasil, de iniciativa do Ministério da Justiça. Trata-se de um projeto piloto iniciado em cinco municípios com o objetivo de reduzir a criminalidade violenta, através de uma nova metodologia que aposta na prevenção social e repressão qualificada, integração entre os diversos atores em diferentes níveis de governo, diagnóstico local da criminalidade, contratos locais com os municípios, etc. Detalhes sobre o projeto podem ser facilmente obtidos no site do Ministério da Justiça. (https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1567102301.36).

A criação destes novos órgãos, práticas, projetos e fundos na última década evidenciam, portanto, claramente a intenção do Governo federal de trazer para si parte da responsabilidade pela questão da segurança pública. Os municípios são vistos como parceiros neste esforço, principalmente através de ações preventivas. Além disso, traço comum nos programas, as ações devem ser precedidas de diagnósticos, ter foco territorial e demográfico e devem ser avaliadas com evidências. De modo geral, do PIAPS ao programa Em Frente Brasil, estas tem sido as diretrizes dos governos federais com relação ao papel dos municípios na segurança.

O governo federal publicou em 2022 um novo documento atualizando como funcionará o novo Plano Nacional de Segurança Pública, com diversas menções e regras para os municípios que quiserem receber recursos federais. O termo “município” é mencionado 34 vezes no texto e entre outros conceitos o PNSP menciona que os Estados e Municípios são parte do SUSP e protagonistas no processo de construção de uma sociedade mais segura e que os entes federativos são autônomos. Reconhece que boa parte das ações preventivas de segurança pública está sob responsabilidade dos estados e municípios e explicita que os entes federativos participam da governança e da avaliação do PNSP.

Entre as responsabilidades assumidas pelo governo federal com relação aos demais entes federativos estão, entre outras tarefas: “desenvolver, apoiar e implementar programas e projetos destinados às ações preventivas e de salvaguarda, e conjugar esforços de setores públicos e privados, inclusive de polícia comunitária e de atuação municipal; “padronizar tecnologicamente e integrar as bases de dados sobre segurança pública entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios por meio da implementação do SINESP” e “estimular a padronização da formação, da capacitação e da qualificação dos profissionais de segurança pública, respeitadas as especificidades e as diversidades regionais, em consonância com esta Política, nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal”.

Finalmente, há menções diretas no PNSP ao papel do governo federal na ajuda aos Municípios para que elaborem seus Planos e diagnósticos locais. Especificamente, o PNSP estipula que cabe ao governo federal “orientar os entes federativos quanto ao diagnóstico, elaboração, conteúdo e forma dos planos de segurança pública e defesa social, visando o alinhamento com a PNSPDS e o PNSP” e “apoiar, tanto financeira quanto metodologicamente, a elaboração de planos estratégicos de segurança pública e defesa social dos entes federativos integrantes do Sistema Único de Segurança Pública - Susp, alinhados ao Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030”. A ideia é, portanto que os Planos Municipais estejam alinhados aos objetivos gerais do Plano Nacional, ainda que possam incluir outros objetivos.

Mas se o PNSP se propõe a auxiliar os municípios, por outro lado também estipula, como de costume, algumas exigências. Os detalhes do processo de envio e avaliação dos Planos não estão plenamente estabelecidos, mas sabe-se que os Planos Municipais serão analisados pelo Ministério da Justiça e serão aprovados ou não, para efeito de recebimento de recursos, somente se cumprirem alguns requisitos.

Entre outros, os Planos Municipais deverão conter:

1. Diagnóstico da segurança pública no contexto do ente federativo;

2. Descrição do método utilizado para elaboração do plano de segurança pública e defesa social do ente federativo;

3. Alinhamento do plano de segurança pública e defesa social do ente federativo com o planejamento estratégico e com o orçamento do ente federativo;

4. Fontes de financiamento do plano de segurança pública e defesa social;

5. Período de vigência do plano de segurança pública e defesa social;

6. Ações estratégicas com o detalhamento dos responsáveis, dos prazos e do alinhamento com as ações estratégicas do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030;

7. Metas e indicadores relacionados às ações estratégicas do plano de segurança pública e defesa social do ente federativo;

8. Monitoramento e avaliação do plano de segurança pública e defesa social do ente federativo, com o detalhamento dos padrões de controle e dos ciclos de monitoramento alinhados cronologicamente com o ciclo de monitoramento do Plano Nacional de Segurança Pública e Defesa Social 2021-2030;

9. Estrutura de governança do plano de segurança pública e defesa social do ente federativo;

 

O Plano Nacional estipula ainda uma série de metas e indicadores a serem atingidas pelo governo federal até 2030 e que os Planos Municipais também devem trazer suas metas e indicadores. Algumas delas não tem relação com a atuação municipal, como por exemplo, as metas relativas ao sistema prisional. Mas outras metas e indicadores criminais, quando cabíveis, poderiam ser adotados também pelos municípios. O quadro abaixo traz algumas destas metas quantitativas que os Planos Municipais podem adotá-las, se ainda não atingidas.

·        Meta 1: Reduzir a taxa nacional de homicídios para abaixo de 16 mortes por 100 mil habitantes até 2030

·        Meta 2: Reduzir a taxa nacional de lesão corporal seguida de morte para abaixo de 0,30 morte por 100 mil habitantes até 2030

·        Meta 3: Reduzir a taxa nacional de latrocínio para abaixo de 0,70 morte por 100 mil habitantes até 2030.

·        Meta 4: Reduzir a taxa nacional de mortes violentas de mulheres para abaixo de 2 mortes por 100 mil mulheres até 2030

·        Meta 5: Reduzir a taxa nacional de mortes no trânsito28 para abaixo de 9 mortes por 100 mil habitantes até 2030.

·        Meta 6: Reduzir o número absoluto de vitimização de profissionais de segurança pública em 30% até 2030

·        Meta 7: Reduzir o número absoluto de suicídio de profissionais de segurança pública em 30% até 2030

·        Meta 8: Reduzir a taxa  de furto de veículos para abaixo de 140 ocorrências por 100 mil veículos até 2030.

·        Meta 9: Reduzir a taxa de roubo de veículos para abaixo de 150 ocorrências por 100 mil veículos até 2030

 

Uma vantagem da adoção destas metas, além da padronização e comparabilidade com outros municípios e Estado, é que os indicadores serão disponibilizados em nível municipal pelo governo federal. Caso o município já esteja dentro da meta, ele poderia adotar, alternativamente, a mesma taxa anual de redução do indicador adotada pelo governo federal, ou ainda estipular sua própria taxa, já que a redução é relativamente mais fácil para os municípios mais violentos e mais difícil para aqueles que já reduziram a criminalidade e violência a níveis menores.

 

O PSD administra mais de 500 cidades em todo o país e muitas delas atuam na esfera de segurança através das Guardas, secretarias de segurança e projetos preventivos das mais diferentes áreas municipais. É importante ficar de olho, portanto, nas novas regras e conceitos estabelecidos pelo governo federal. Estas regras e conceitos devem orientar os futuros Planos Municipais de Segurança e quem quiser contar com dinheiro da União, precisará levar em conta as regras do jogo.

 

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