segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Discussão sobre Segurança Cidadã e Tecnologia

Neste encontro, organizado entre o CAF e a Secretaria de Segurança Pública da OEA, trocaremos experiências e aprendizados sobre o uso de sistemas de videovigilância e georreferenciamento do crime como elementos-chave para melhorar a segurança das cidades da nossa região. Hoje, os sistemas de videovigilância e o mapeamento de crimes e violência tornaram-se ferramentas fundamentais para a prevenção, dissuasão, controle e investigação, bem como para melhorar a sensação de segurança por parte da população. O uso de câmeras e o mapeamento do crime, bem como a análise que deriva delas, trazem consigo não apenas a questão do recrutamento e treinamento das equipes que são formadas para tais fins, mas também questões relacionadas ao armazenamento e proteção de imagens e dados, o direito à privacidade ou a possibilidade de medir sua eficácia ou impacto. Como parte dessa nova realidade, governos locais, observatórios, instituições policiais e centros/unidades de análise de crimes e violência emergem como atores-chave no diagnóstico de problemas, gerando evidências para orientar a elaboração e a tomada de decisões e monitorar tendências de segurança. Tecnologias são um meio, nunca um fim. Sua incorporação em políticas de segurança trouxe consigo uma série de desafios. Seu uso deve ser elaborado racionalmente, como resultado de diagnósticos baseados em informações e conhecimentos, e também com objetivos claros, respeitando os direitos dos indivíduos. A partir da apresentação de três experiências locais, essa conversa busca identificar e entender quais são algumas das vantagens e desafios dos sistemas de videovigilância e análise geoespacial, buscando banir alguns mitos, além de sistematizar algumas lições aprendidas com o uso de ambas as ferramentas. Data: terça-feira, 3 de agosto de 2021 Horário: 15h (Washington D.C.) - 16h (Buenos Aires) Agenda *La agenda esta en la zona horaria de America/Sao_Paulo día 1 03 de agosto de 2021 04:00 PM - 04:05 PM Boas-vindas Jorge Concha Diretor de Análise e Avaliação Técnica de Desenvolvimento Sustentável, CAF 04:05 PM - 04:10 PM Agenda CAF de Segurança Cidadã Guadalupe Aguirre Especialista CAF em Segurança Cidadã 04:10 PM - 04:25 PM Informação, dados e tecnologia. Entradas para políticas baseadas em evidências Tobías Schleider Consultor e especialista internacional em segurança democrática 04:25 PM - 04:40 PM Funções e limitações da vigilância por vídeo do espaço público. O caso do Tigre, Província de Bs. As., Argentina Vanesa Lio Pesquisador do CONICET, Argentina 04:40 PM - 04:55 PM Avaliação dos efeitos da instalação de câmeras de videovigilância em Medellín Santiago Tobón Economista. Diretor do Centro de Pesquisa em Economia e Finanças do CIEF da Universidade EAFIT 04:55 PM - 05:10 PM Usando a análise geoespacial para reduzir o crime e gerenciar a segurança. O caso da redução de homicídios em São Paulo, Brasil. Tulio Kahn Assessor Titular da Fundação Espacio Democrático 05:10 PM - 05:30 PM Espaço de troca 05:30 PM - 05:35 PM Cierre Karen Bozicovich Jefa de la Sección de Información y Conocimiento del Departamento de Seguridad Pública de la OEA

quinta-feira, 22 de julho de 2021

As polícias e as armas

Há várias pesquisas de opinião nas últimas décadas levantando o que as pessoas acham sobre o porte ou posse de armas de fogo. Em geral, as pessoas pensam de forma abstrata no tema e invocam argumentos filosóficos como “direito de defesa” e garantia contra governos autoritários; ou mais instrumentais como segurança do patrimônio, pessoal e da família. Mas a maioria delas não têm uma arma ou é autorizada a andar com ela todos os dias. A probabilidade de que venham utilizá-la algum dia, de fato é bastante remota. O risco de andar armado também é diferente, uma vez que a arma não está à vista de todos. Para um policial, ou operador do campo da segurança pública ou privada, a situação é bastante diferente. Portar arma é não apenas um direito, como um dever. A arma de fogo é seu instrumento de trabalho e ele a carrega diariamente, publicamente, embora sejam relativamente raras as ocasiões em que fará uso dela. Mas a mera possibilidade de ter que usá-la já altera a forma como a questão do acesso às armas pela população é percebida. O policial corre mais risco de ser vitimado numa tentativa de roubo da sua arma, tem mais chances de sofrer um acidente, vítima de violência doméstica, de suicídio, de latrocínio. Ele foi treinado sobre como armazená-la corretamente, mantê-la em condições de uso, usá-la com segurança. As armas podem tê-lo salvo de situações complicadas, mas também podem ter matado muitos de seus colegas. Operadores de segurança tendem a gostar de armas, ou pelo menos não tem resistência a elas, como muitos na população. Em resumo, a questão do armamento civil para um policial é muito mais presente e complexa do que para alguém que pensa a questão em abstrato, como uma questão de princípio ou política. As armas compradas legalmente acabam no mundo do crime e aí podem ser usadas diretamente contra eles. Por tudo isso, é importante saber o que os policiais pensam sobre a questão: os policiais apoiam mais ou menos do que a população em geral as restrições às armas de fogo? Que tipo de policial? E por quais razões? A pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) procurou explorar como os policiais veem a questão da liberação ou proibição de armas e quais os fatores associados com a maior ou menor adesão a cada posição. “Policial” é um termo muito heterogêneo e as opiniões são matizadas de acordo com a corporação, gênero, nível hierárquico e outros fatores. Outras variáveis, como experiência de ser pessoalmente vitimado ou perdido colegas de trabalho podem afetar as opiniões sobre o tema. Assim como a avaliação que o policial faz do governo Jair Bolsonaro, sabidamente defensor da flexibilização da posse e porte de armas de fogo. Muitos trabalham com segurança durante a folga e precisam de armas particulares para o exercício do bico. Assim, são muitos e diversos os potenciais fatores e os motivos subjacentes para apoiar ou rejeitar o armamento civil. Nas análises subsequentes explorarei apenas relações bivariadas e, como é sabido, tais associações podem ser espúrias, pois não estão controladas por outras variáveis relevantes. Trata-se, portanto, apenas de análise exploratória. Nas tabelas, assinalarei apenas as diferenças em relação ao esperado que se demostraram significativas¹. A intenção é destacar características que aumentam ou diminuem o apoio às armas. Posteriormente, estas variáveis podem ser testadas num modelo multivariado que estime os efeitos simultâneos do conjunto. Por hora, vamos apenas avançar conjecturas. Na amostra completa, observamos que uma minoria de policiais é favorável à posse e porte de armas para todos na população, sem limites de qualquer natureza (10,4%). Por outro lado, é também uma minoria (16%) que defende a proibição e porte de todas as armas de fogo. A grande maioria dos entrevistados (73,6%) defende uma postura condizente com a legislação atual, ou seja, que permita o porte e posse, mas com limites de quantidade de armas e munições, mecanismos de controle e rastreamento de armas, restrição a certos tipos de armamento etc. Nem liberação completa, nem restrição total. Devido a diferenças na redação das perguntas não é possível comparar a opinião dos policiais com as da população em geral. Para dar uma noção das tendências recentes entre a população, a Pesquisa CNT/MDA de fevereiro de 2021 apontou que 68,2% dos brasileiros são contrários ao decreto que flexibilizava o acesso da população à compra de armas de fogo. Em março de 2019 o IBOPE divulgou que 61% da população é contra a flexibilização da posse de armas e o DataFolha de julho de 2019 levantou que 61% da população rejeita a legalização da posse e 73% do porte de arma. (IBOPE, março de 2019; DataFolha, julho de 2019; CNT/MDA, fevereiro de 2021). Existem muitas modulações nas opiniões dos policiais e as tabelas subsequentes exploram os desvios destas porcentagens médias. Há bastante divergência entre as corporações. Polícia Rodoviária Federal, Polícia Científica, Polícia Federal e Polícia Civil apoiam significativamente mais a proibição, enquanto o Corpo de Bombeiros e a Polícia Penal apoiam a liberação incondicional. Os agentes penitenciários sempre reivindicaram o direito de portar armas, o que explica talvez a maior adesão da categoria à tese da liberalização. A Polícia Militar, por fim, adere significativamente mais à proposta da liberalização limitada. Com relação ao gênero, assim como parece ocorrer entre a população em geral², as mulheres são muito mais favoráveis à proibição (28,9%), praticamente o dobro do percentual de homens (13,7%). A diferença é provavelmente decorrência da socialização, uma vez que meninos crescem brincando com armas. Neste aspecto, vemos que a identidade de policial é permeada por outras identidades (de gênero, cor, classe, religião) e que a resultante é uma síntese de todas estas forças sociais. É digno de nota que entre os policiais que se identificaram como pretos o apoio às restrições suba para 20,3%. Enquanto negros, eles parecem ter a consciência de que o impacto da maior circulação de armas na sociedade é bem maior para os jovens negros do sexo masculino, afetando suas opiniões sobre armas. Com relação à religião, duas variações chamam a atenção. Os que se declaram sem religião demonstram um apoio muito maior que a média à proibição de armas (26,2%), sugerindo uma preocupação humanitária superior aos que dizem ter alguma religião. O segundo aspecto é que entre os evangélicos é nítido o menor apoio à proibição total e o maior apoio à liberação das armas, especialmente entre os pentecostais. Isto pode ter relação com alguma afinidade conceitual entre a ética evangélica (como diria Weber) e as teses armamentistas, ou pode ser um efeito indireto, como veremos, do apoio do presidente, que é evangélico, à flexibilização das armas. A escolaridade gerou efeitos contraditórios, com o apoio a proibição sendo maior tanto entre os que têm apenas o fundamental quanto entre os que têm pós-graduação, mas menor entre os que têm ensino médio. A análise por área aponta que os policiais nas capitais favorecem a tese da proibição enquanto os policiais do interior a liberalização. As taxas de criminalidade nas capitais são invariavelmente superiores às do interior e talvez se esperasse – uma vez que armas são consideradas como instrumentos de proteção e que taxas maiores de criminalidade implicam em maior sensação de insegurança – que o apoio às armas fosse maior nas capitais. Esse tópico precisaria ser aprofundado, pois é possível que haja uma terceira variável omitida ou que policiais da capital e do interior tenham visões diferentes sobre armas: nas capitais sendo talvez mais perceptível o impacto das armas sobre a criminalidade e os policiais do interior, menos violento, vendo armas como um direito. Os mais velhos apoiam mais a proibição (27,7%), tendência também captada na Polícia Federal (Borba, 2020). Com relação às diferenças regionais, finalmente, o Nordeste defende menos a liberação (7%) e mais a proibição (21%) enquanto Norte e Sul³ demostram menos adesão à tese proibicionista. Talvez seja digno de menção que as grandes indústrias de armas, como Taurus, estão localizadas no Sul, região de fronteira e de tradição militar, e que a região costuma se destacar como mais favorável ao armamentismo nas pesquisas de opinião com a população. No primeiro grupo de cruzamentos exploramos as variáveis sócio-demográficas clássicas. O questionário, contudo, é bem mais amplo e avança em questões como satisfação com a profissão, racismo, atividades profissionais extras, vitimização, covid e diversos outros. Assim, achamos interessante averiguar como as opiniões com relação às armas são afetadas por estas variáveis. Elas nos dão pistas interessantes sobre eventuais motivos subjacentes. Embora irregular, muitos policiais desempenham outras atividades renumeradas, em especial na esfera da segurança privada. Na segurança privada devem utilizar armas pessoais e a legislação atual impõe uma série de limites a este uso. Assim, não é de estranhar que o apoio à liberalização irrestrita cresça para 18,2% entre os que dizem ter outra atividade em segurança privada. Este apoio é ainda ligeiramente superior à média entre os que têm outra atividade renumerada qualquer e só cai entre os que não desempenham outra atividade. Há, assim, uma razão instrumental para o apoio à liberalização entre os policiais que fazem bico ou estão ligados de algum modo ao setor privado de segurança. Além das razões instrumentais, há um componente afetivo impactando as opiniões. Note-se que entre os policiais que apontaram terem sido baleados em serviço, o apoio à liberalização irrestrita sobe para 17,5%, assim como entre aqueles que disseram terem sido vitimados fisicamente por algum suspeito (12,1%) ou ameaçado de morte ou violência física (11,5%). Ao contrário, o apoio à proibição é nitidamente maior entre os que não foram baleados ou vitimados, bem como entre os que nunca presenciaram a morte de colegas (16,7%). Assim, ter sofrido ou presenciado violência por parte de criminosos parece afetar a predisposição com relação à flexibilização das armas. Parece existir uma conexão entre vitimização, discurso pró-armas e o discurso contra “bandidos” ou direitos humanos, mas infelizmente a pesquisa não permite aprofundar estas conexões4. Finalmente, o questionário traz uma bateria de questões sobre o enfrentamento à covid-19, e particularmente duas que medem indiretamente o apoio ao governo federal. A primeira perguntava ao entrevistado “O quanto você concorda que as medidas como utilização de medicamentos como cloroquina, azitromicina, ivermectina são adequadas para prevenir a covid-19?” e a segunda se o entrevistado “acredita que o Governo Federal está realizando ações para auxiliar seu trabalho na pandemia?”. Embora não sejam perguntas diretas sobre o apoio ao governo Bolsonaro, acreditamos que sejam boas medidas substitutas (proxys) deste conceito. Bolsonaro fez sua carreira política defendendo demandas das polícias e da indústria de armas e sabe-se que existem afinidades eletivas entre o ideário bolsonarista e o ideário policial. Em outras palavras, a hipótese aqui é que o apoio ao governo Bolsonaro aumenta a chance de apoio à liberação irrestrita as armas (ou vice-versa, pois o sentido da associação pode ser inverso). Com efeitos, de todas as variáveis utilizadas estas duas foram as que tiveram maior impacto sobre as opiniões sobre armas. O apoio à liberalização irrestrita sobe para 16,7% entre os policiais que acreditam no tratamento precoce para a covid-19 e para 14,6% entre os que avaliam que o governo federal está atuando para auxiliar na pandemia. Em nítido contraste, o apoio à proibição irrestrita sobe, respectivamente, para 46% e 30,2% entre os que discordam destas afirmações. Resumidamente, existem chances muito grandes de que eu seja a favor da liberalização irrestrita das armas se eu for do Corpo de Bombeiros, homem, evangélico, trabalhar no bico de segurança, ter sido alguma vez vítima de violência e ser simpático ao governo federal. Em contraste, existem chances muito maiores de apoiar a proibição irrestrita se pertencer à Polícia Rodoviária Federal ou Científica, for mulher, negro, sem religião, ter ensino fundamental ou pós, mais de 60 anos e morar no Nordeste. Além de não desempenhar atividade remunerada extra, não ter sido vitimado e discordar das medidas do governo federal. A pesquisa sugere que as opiniões dos policiais sobre armas – como de resto da população em geral – são influenciadas por diversos fatores. Questões de identidade de gênero, cor, região, religião, carreira profissional afetam estas opiniões. Assim como razões de ordem instrumental, afetivas e políticas. Todas as nossas opiniões, sobre qualquer ponto, são um balanço destes múltiplos conflitos e contextos. Como dito inicialmente, trouxemos apenas associações bivariadas e é preciso construir um modelo estatístico mais sofisticado para verificar quais destas associações se mantêm quando controladas por outros fatores. Encontramos apenas uma tese brasileira que utilizou técnicas multivariadas para analisar os fatores que influenciam a opinião dos policiais federais sobre armas de fogo (Borba, 2020). Embora calcado numa amostra de 801 casos de uma única corporação, o modelo de regressão corroborou diversas associações encontradas aqui. De acordo com Borba, percepções favoráveis às armas de fogo estão correlacionadas com o nível de experiência no manuseio, ter presenciado lesão com arma, faixa etária mais velha e grau de religiosidade. Mas diferentemente do encontrado aqui, gênero não se revelou estatisticamente significativo e evangélicos aprovavam a posse de armas numa porcentagem menor do que média (Borba, 2020). Conhecer a opinião dos policiais – que lidam diariamente com armas de fogo e seus efeitos, positivos ou negativos – é importante para refletir sobre a questão. Coisa diferente é considerar, do ponto de vista da construção de uma política pública sobre armas de fogo, que a opinião dos policiais deva pesar mais (ou menos) do que as demais. Como vimos, existem razões econômicas, afetivas e ideológicas que afetam significativamente estas percepções. E estas são péssimas conselheiras quando se trata de defender o bem coletivo. 1 Como critério, usamos o desvio padronizado entre o valor esperado e o valor observado. Mostramos apenas os desvios superiores a 2,64, o que equivale ao nível de significância de .001 2 Na pesquisa IBOPE de 16 de março de 2019, 50% dos homens se disseram a favor do afrouxamento das regras para a posse de armas, em contraste com 27% das mulheres. O mesmo ocorre com relação ao porte. Já em 2005, antes do plebiscito sobre a comercialização de armas de fogo, o Instituto Datafolha observava que as mulheres e os moradores do Nordeste eram mais favoráveis à proibição da venda enquanto homens e moradores do Sul eram proporcionalmente mais contra. https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2005/07/1226824-80-acham-que-o-comercio-de-armas-de-fogo-e-municao-deve-ser-proibido.shtml 3 Na pesquisa IBOPE de 16 de março de 2019, Norte e Sul foram também as Regiões mais favoráveis à flexibilização da posse de armas. 4 Esta associação entre vitimização e aumento da vontade de ter armas também foi observada recentemente no levantamento do Latino Barômetro de 2021 (LAPOP). Na média, 43% responderam que teriam uma arma de pudessem, porcentagem que sobe para 54% entre os que foram vítimas de algum crime nos últimos 12 meses. Referências bibliográficas: Borba, Alessandra. A Percepção de Policiais Federais sobre Armas de Fogo. Mestrado em Administração Pública, UNB, 2020. https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/06/03/ibope-maioria-dos-entrevistados-em-pesquisa-e-contra-a-flexibilizacao-das-regras-de-armas.ghtml https://www.jb.com.br/pais/2019/06/1003171-percentual-de-brasileiros-favoraveis-a-armas-dobra-em-sete-anos–mas-maioria-ainda-e-contra.html https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2005/07/1226824-80-acham-que-o-comercio-de-armas-de-fogo-e-municao-deve-ser-proibido.shtml

terça-feira, 4 de maio de 2021

Tráfico de drogas na percepção policial e os custos para a sociedade

 


 Tulio Kahn. Doutor em Ciência Política

Rodrigo Vilardi. Doutor em Direito Penal e Policial Militar do Estado de São Paulo.

 

Nos diversos programas policiais que ocupam as tardes televisivas de brasileiros, as notícias e imagens mais comuns mostram viaturas em perseguições emocionantes, transmitindo ao público a ideia de que ser policial é viver o tempo inteiro em um filme de James Bond. Embora isso faça parte do cotidiano de um pequeno grupo de policiais, a verdade é que o dia a dia da maioria dos policiais é bem menos emocionante do que a dramatização mostrada pela TV.

Diversas pesquisas criminológicas procuraram retratar o cotidiano típico das polícias, através de formulários onde os próprios policiais respondem quanto tempo do seu dia gastam em cada tipo de atividade. O retrato que emerge destas pesquisas, felizmente, é que na maior parte do tempo os policiais estão engajados em outras atividades, não tão espetaculares tal como a TV mostra. Em suma, para a grande maioria, na maior parte do tempo, as atividades são muito mais burocráticas e menos emocionantes do que parecem.

Essa frequente discrepância entre percepção e realidade recomenda cautela redobrada antes de qualquer conclusão ou abordagem sobre a atividade policial. Recentemente participamos de um projeto que teve por objetivo estimar quais são os custos da repressão ao tráfico de drogas em duas das principais capitais brasileiras: Rio de Janeiro e São Paulo (Um Tiro no PÉ, Cesec, 2021). Chama a atenção a constatação de grande discrepância na avaliação do peso da repressão as drogas, quanto contrastamos as avaliações dos policiais sobre seu cotidiano com os dados administrativos.

Resultados

Com metodologia própria, o levantamento contou com respostas de 151 policiais em ambos os estados. No Rio de Janeiro, o resultado da pesquisa de opinião indicou que, na percepção dos policiais, 58% do tempo seria dedicado ao policiamento ostensivo e 42% a operações. Durante o trabalho de policiamento ostensivo, por sua vez, 46% do tempo dos policiais seria dedicado ao combate ao uso e tráfico de drogas. Finalmente, 54% do tempo destinado a operações seria gasto em ações relacionadas à lei de drogas.

No Estado de São Paulo, por sua vez, cerca de 70% do tempo de policiamento seria dispendido no policiamento ostensivo, em suas diversas modalidades e o restante do tempo (30%) em operações especiais. O combate ao uso e tráfico de drogas, por seu turno, ocuparia, na percepção dos policiais, 35% do tempo em que estão desenvolvendo o policiamento ostensivo rotineiro e 28% do tempo dedicado a operações específicas.

Note-se que no Rio de Janeiro, na percepção dos policiais, foi maior tanto o tempo dispendido em operações, quanto o tempo gasto na repressão às drogas em geral, tanto durante o policiamento ostensivo ordinário quanto em operações, o que parece coincidir com a impressão generalizada de que as operações contra o tráfico no Rio de Janeiro – onde diversas facções disputam territórios de venda - são proporcionalmente mais intensas do que em São Paulo. A se fiar na percepção dos policiais pesquisados, a repressão às drogas comprometeria quase metade do tempo dos policiais no Rio e um terço do tempo de policiamento dos policiais em São Paulo.

Todavia, os dados administrativos levantados na mesma pesquisa trazem um cenário diferente do estimado subjetivamente pelos policiais. Tomando por base o ano de 2017, no Rio, apenas 7,1% dos Boletins de Ocorrência da PM (BOPM) indicam estar relacionados à Lei de Drogas. Em São Paulo, por sua vez, apenas 4% das ocorrências atendidas pela PM (registradas no SIOPM) tem relação com a Lei de Drogas. Nas Polícias Civis o quadro não é diferente: apenas 2,8% dos Registros de Ocorrência no Rio estão relacionados a drogas, porcentagem que cai para 2,2% em São Paulo. Levando em consideração diversos outros indicadores de atividades policiais analisados na pesquisa, em média as polícias no Rio gastariam 3,7% do seu tempo combatendo o tráfico enquanto em São Paulo a porcentagem atingiria 7,7%. Bastante longe das estimativas subjetivas feitas pelos policiais.

A divergência entre os resultados parece indicar que a percepção dos policiais superestima a participação da repressão ao uso e ao tráfico nas atividades de policiamento ou que os dados oficiais subestimam esta atividade. A tabela abaixo compara os resultados do survey de São Paulo com os dados administrativos oficiais das polícias

Repressão ao tráfico: estimativas subjetivas e dados administrativos das PMs do RJ e SP

Questão

Pesquisa PMSP

Dados administrativos SSP-SP

Tempo médio estimado em atividades de repressão ao tráfico

31,5%

7,7%

Em relação aos BOPMs preenchidos por policiais de sua unidade, que percentual desses BOPMs você estima que são referidos a ocorrências relativas a drogas?

21%

4%

Em relação aos REGISTROS DE OCORRÊNCIA (BO/PCs) apresentados nas DELEGACIAS por POLICIAIS MILITARES de sua unidade, que percentual desses BO/PCs você estima que são referidos a ocorrências relativas a drogas?

27%

2,2%

 

Em relação às PRISÕES EFETUADAS por policiais de sua unidade (sejam elas em flagrante ou em cumprimento de mandado judicial), que percentual dessas prisões você estima que são referidas a ocorrências relativas a drogas?

30,4%

16,8%*

Fonte: pesquisa Um Tiro no Pé, Cesec, 2021 * considerando estimativa feita pelo Sou da Paz de que 60% das prisões por drogas são feitas pela PM em conjunto com os números de prisões (flagrante + mandado) e ocorrências de tráfico em 2017.

Supondo que a amostra de 130 policiais seja representativa da situação estadual, a discrepância entre os dados sugere que quando se trata do universo das drogas e do tráfico, as estimativas tornam-se infladas e o componente emocional parece interferir no aspecto cognitivo. As estimativas policiais parecem coincidir mais com o cenário mostrado nos programas policiais da TV e menos com as estatísticas oficiais das instituições.

Estimativas subjetivas exageradas ou dados oficiais subestimados?

Por outro lado, não se pode descartar a possibilidade de que os dados administrativos e as estatísticas oficiais coletadas não coincidam com ou traduzam a realidade do cotidiano policial.

Constatar a inexistência ou precariedade de dados, informações, indicadores a respeito de questões simples do sistema policial ou de justiça criminal revela um cenário desolador. Se tais dados são inexistentes ou se existentes e não são trabalhados e processados, como saber se o tempo ou os recursos policiais estão sendo desperdiçados em tarefas desnecessárias, em duplicidade, em qualquer outro “gargalo” ou “ineficiência” do sistema? Nesta pesquisa, para além dos custos da repressão ao tráfico, também confirmaram-se as dificuldades e fragilidades dos dados administrativos e das estatísticas oficiais, o que pode explicar parte da discrepância constatada entre dados e percepções. 

É preciso aprofundar o fenômeno, mas nossa impressão é que policiais tendem a ser menos objetivos e mais projetivos quando se trata de avaliar a questão das drogas e do tráfico e seu impacto sobre o crime, sobre os homicídios e sobre o trabalho policial. São os criminosos mais temidos e poderosos. O crime mais lucrativo e danoso para as famílias. Quanto instados sobre o tema, os policiais podem estar projetando aquilo que julgam que a sociedade espera deles.

Para além da intrigante questão da discrepância, a estimativa dos recursos policiais efetivamente dispendidos, todos os anos, no combate e repressão às drogas, seja pela percepção dos policiais seja pelos dados administrativos e estatísticas oficiais apresentadas pela pesquisa, revela que eles são significativos. A sociedade, que paga essa conta, precisa de informações para decidir não apenas quanto, mas como os recursos devem ser aplicados.  

 

Bibliografia

Instituto Sou da Paz. APREENSÕES DE DROGAS NO ESTADO DE SÃO PAULO. Um raio-x das apreensões de drogas segundo ocorrências e massa, 2018

LEMGRUBER, Julita (coord.) et al. Um tiro no pé: Impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. Relatório da primeira etapa do projeto "Drogas: Quanto custa proibir". Rio de Janeiro: CESeC, março de 2021.

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