sexta-feira, 12 de julho de 2024

Evolução do sistema nacional de indicadores de segurança

 A partir de 2024, o Ministério da Justiça passou a divulgar mensalmente 28 indicadores criminais coletados dos 27 estados. A série histórica mais recente e consistente de dados criminais nacionais vai dos anos 2015 a maio de 2024, com a qualidade dos dados melhorando a partir de 2017.

Este processo de coleta e disseminação de indicadores criminais teve início no final dos anos 90 com o SINEP e o aperfeiçoamento e ampliação do sistema – o último deles com o SINESP VDE em 2023 - é sinal da relevância atribuída aos dados para avaliação das políticas de segurança pública e gestão da segurança.
Na proposta de PEC do Ministro Lewandovsky vazada esta semana, está incluído  o desenvolvimento de um novo sistema padronizado e integrado de registros policiais, boletins de ocorrência e mandados de busca, sugerindo que a atual gestão busca melhorias nos sistemas existentes.
Os indicadores atuais não se limitam aos 28 divulgados, uma vez que novos indicadores podem ser construídos com base neles: taxas por habitante ou veículos, razões entre indicadores, porcentagens, agregação de grupos indicadores e assim por diante.
Assim, por exemplo, para tentar medir eventuais excessos na ação policial, o professor da Universidade de Nova York Paul Chevigny criou nos anos 90 três interessantes indicadores, hoje clássicos: a razão entre criminosos mortos e feridos, a razão entre criminosos mortos e policiais mortos e a porcentagem de mortes em confronto dentro do total de mortes. Matematicamente eles são bastante simples de ser calculados e o SINESP disponibiliza atualmente tanto o número de agentes policiais quanto o de suspeitos mortos em confronto, assim como o total de homicídios por Estado, sendo possível, portanto calcular dois destes indicadores propostos por Chevigny.
A questão é saber se eles medem realmente o fenômeno subjacente (excessos na ação policial) ou se estão medindo alguma outra coisa e se medem de modo preciso. Em outras palavras, da validade e confiabilidade do constructo. O argumento do autor é que num conflito típico, os confrontos deixam mais feridos do que mortos. Confrontos com um padrão inverso – mais mortos que feridos – sugerem um excesso policial. Do mesmo modo, num confronto típico, o esperado é que o número de mortos seja assemelhado entre as forças, ou ligeiramente maior para aquela que é mais bem treinada e equipada. Mas quando o número de mortos de um lado é muitas vezes superior ao de outro, isto sugere um desvio da normalidade. Finalmente, numa sociedade democrática, espera-se que as mortes em confronto com a polícia representem apenas uma pequena parcela dos homicídios. Quando esse percentual é muito elevado (a média no Brasil é de 14,5%, segundo o Sinesp, em 2023), temos novamente a sugestão de estamos diante de um descontrole do uso da força.
É claro que existem problemas nestes raciocínios: por exemplo, uma queda forte nos índices de homicídio de um determinado Estado, provoca por definição um aumento na porcentagem de mortes em confronto dentro do total de mortes, mesmo que em números absolutos as mortes em confronto estejam estáveis. Todavia, quando analisados em conjunto e contextualizados, estes três indicadores simples ajudam a dar uma dimensão do problema da violência policial num determinado local e período.
O ponto aqui não é avaliar especificamente os indicadores de Chevigny, mas antes ilustrar o que se pode fazer a partir dos dados crus e o processo de geração de novos constructos conceituais: juntando homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte, cria-se o novo conceito de CVLI - crimes violentos letais intencionais e assim por diante. Juntando apreensão de armas e de drogas e dividindo pelo número de policiais, temos talvez alguma medida de “esforço policial”. Juntando roubo a bancos, carga e tráfico de droga, temos talvez uma medida rudimentar de crime organizado? 
Estes novos constructos, quando válidos e confiáveis (isto é, relacionados ao conceito que procuram mensurar e medindo-o de forma adequada), são ferramentas heurísticas que jogam novas luzes sobre os temas, mostrando às vezes coisas que os indicadores isolados não revelam. 
Vale lembrar que além dos 28 novos indicadores divulgados pelo Sinesp, o governo federal realiza desde os anos 90 a pesquisa Perfil das Polícias e o Censo Penitenciário Nacional, ambas contendo centenas de variáveis para o estudo do fenômeno criminal e para a gestão da segurança. Publica ainda esporadicamente dezenas de pesquisas isoladas, como a pesquisa nacional de vitimização e o Mapa das organizações criminosas ORCRIM atuando nos presídios (SISDEPPEN, 2023).  
Sinarm, Infoseg e Renavam são exemplos de outras bases de dados relevantes mantidas pelo MJ, entendidas como bases operacionais (são índices de consultas para agentes em campo) mas também podem ser utilizadas para análises estratégicas. O sistema de indicadores está longe de ser ideal - carece de qualidade, atualidade, granularidade - mas caminha gradualmente em direção a um sistema mais abrangente e qualificado.
A Lei do SUSP de 2018 traz diversos artigos relativos a indicadores e bases de dados. Neste sentido, a ideia da PEC de constitucionalizar o SUSP pode ser um passo importante para institucionalizar e solidificar o "sistema único de segurança pública".

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Criminalidade e desastres naturais: dados criminais de maio no RS


A Secretaria de Segurança do Rio Grande do Sul divulgou nestes dias os dados criminais relativos a maio de 2024, que captam as tendências criminais no Estado durante o período das inundações, que afetaram 68% dos 497 municípios, desde o final de abril.

Havia grande expectativa sobre estes números, uma vez que as notícias indicavam um crescimento dos furtos a residências e estabelecimentos comerciais e dos abusos sexuais nos abrigos emergênciais, entre outros delitos. A literatura a respeito dos efeitos dos desastres naturais sobre a criminalidade, embora não conclusiva, também sugeria majoritariamente um crescimento de algumas modalidades de crime, em curto e longo prazo, tanto nas cidades diretamente afetadas quanto nas áreas vizinhas, via migração.  (Varano et al., 2010). 

Pelo menos no que se refere aos delitos monitorados e no curto prazo, o que vimos foi uma queda generalizada da criminalidade em maio, quando comparamos com a média dos quatro primeiros meses do ano.

A tabela abaixo compara maio com a média anterior para os 11 indicadores monitorados pela SSP RS, tanto para as cidades afetadas diretamente pelas inundações (337) quanto para as não afetadas (160). A relação das cidades afetadas foi divulgada pela Defesa Civil do Estado (posteriormente mais 4 cidades foram acrescentadas na lista das afetadas, mas os resultados gerais não devem ser diferentes).

Crimes do RS – janeiro a maio de 2024 – municípios afetados e não afetados pela calamidade.



Fonte: SSP-RS

Os desastres naturais são também “experimentos naturais”, situações excepcionais onde podemos testar uma série de hipóteses, uma vez que conseguimos encontrar um contrafactual  adequado (cidades não afetadas) para comparar com um grupo de controle (cidades afetadas), considerando que a seleção entre os grupos foi aleatória. Comparando as tendências criminais das cidades afetadas e não afetadas, podemos lançar alguma luz sobre as explicações que fazem mais sentido para explicar a queda.

Com exceção dos latrocínios – cuja quantidade absoluta é pequena e sujeita a flutuações – e do tráfico de entorpecentes nas cidades não afetadas, o que vemos é uma queda generalizada e intensa nos indicadores criminais em maio, comparado à média dos meses antecedentes. A literatura, especialistas, os jornais e autoridades governamentais  estavam equivocados então?

Não necessariamente. A literatura traz casos em que a criminalidade caiu após desastres naturais, como foi o caso do Chile após os terremotos em 2010, de modo que o caso do RS não é excepcional . Alguns fatores podem explicar o fenômeno: aumento da solidariedade na população e impossibilidade de registrar as ocorrências na polícia. Mas acima de tudo uma forte mudança na rotina diária, como presenciamos durante a COVID, quando os crimes patrimoniais também despencaram no país. Para que um crime ocorra vítima e autores precisam se encontrar num mesmo espaço e tempo, na ausência de guardiões. As inundações praticamente impediram a circulação de pessoas e bens, limitando consequentemente as oportunidades criminais.

A hipótese da subnotificação perde força, quando observamos que as quedas ocorreram tanto nos municípios afetados quanto nos não afetados. Não apenas não houve “migração” de crimes como em alguns casos estes caíram mais intensamente nos municípios não afetados, como nos furtos e roubos.  O mesmo pode se dizer da hipótese da mudança de rotina e das oportunidades. Exceto se a calamidade foi tamanha que afetou a capacidade da polícia de registrar crimes em todo lugar e afetou a rotina cotidiana, mesmo nas cidades que não estavam alagadas, contaminado de alguma forma a rotina destas cidades.

Essas hipótese não podem ser descartadas, mas na falta de evidências de que isso tenha ocorrido, ganha força à hipótese da “solidariedade”, segundo a qual criminosos , sensibilizados pela tragédia, teriam menores incentivos à execução de crimes... Confesso que pessoalmente não acredito muito nesta conjectura, mas a comparação entre os grupos de municípios reforça esta linha de raciocínio, uma vez que a queda foi generalizada.

De fato, sociedade e governos se uniram no apoio ao Rio Grande do Sul, contribuindo com recursos financeiros, alimentos, roupas, remédios, envio de tropas e equipamentos de salvamento, numa manifestação de solidariedade poucas vezes vista. Este apoio deve ter contribuído para aliviar necessidades imediatas e eventualmente a pressão para o cometimento de crimes oportunistas ou de necessidade. Mas é plausível supor que estes recursos foram concentrados nas áreas afetadas, de modo que não explica a queda criminal nos demais municípios.

É preciso observar que os dados não permitem desagregar o que aconteceu especificamente com os arrombamentos e saques, que estão somados na grande categoria “furtos”. É possível então que alguns tipos de furtos tenham crescido, não obstante a queda geral na categoria. Não existem tampouco dados para monitorar os crimes sexuais, de que tivemos notícias episódicas pelos meios de comunicação. Em suma, estamos observando apenas alguns indicadores criminais e de forma agregada. Seria necessário um detalhamento das modalidades para verificar o impacto sobre situações específicas, como os furtos em residências e as importunações sexuais.

Finalmente, estamos observando tendências de curtíssimo prazo enquanto a literatura sugere que muitos dos efeitos serão observados apenas em longo prazo, quando se acirrarão os fatores sociais e econômicos tipicamente associados ao crime: menos empregos, queda no rendimento escolar, queda na arrecadação de impostos e, portanto menos investimentos nas polícias, aumento dos problemas mentais, aumento da pobreza e desorganização social.  (Waddell et al., 2021).

Vimos com alívio a queda generalizada da criminalidade no RS em maio, mas é provável que esta queda seja temporária e que os índices voltem aos patamares anteriores em pouco tempo, como ocorreu no pós COVID. Lidar com estes efeitos requer uma abordagem abrangente que inclua respostas imediatas da aplicação da lei e suporte social e econômico de longo prazo para mitigar os efeitos adversos dos desastres naturais sobre o crime e a violência.

 

Referências

Aguirre, B. E., & Lane, D. (2019). [Fraud in disaster: Rethinking the phases](https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2212420919305746). 

Cutter, S., Barnes, L., Berry, M., Burton, C., Evans, E., Tate, E., & Webb, J. J. (2008). [A place-based model for understanding community resilience to natural disasters](https://www.semanticscholar.org/paper/011e91fb1fb77f6cd265dd8746e83ba6f1ef02b9).

Nivette, A. E., Zahnow, R., Pérez Aguilar, R. A., Ahven, A., Amram, S., Ariel, B., & Aguilar, M. J. (2021). [A global analysis of the impact of COVID-19 stay-at-home restrictions on crime](https://www.nature.com/articles/s41562-021-01139-z.pdf).

Varano, S. P., Schafer, J. A., Cancino, J. M., Decker, S. H., & Greene, J. R. (2010). [A tale of three cities: Crime and displacement after Hurricane Katrina](https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S004723520900141X).

Waddell, S. L., Jayaweera, D., Mirsaeidi, M., Beier, J., & Kumar, N. (2021). [Perspectives on the Health Effects of Hurricanes: A Review and Challenges](https://www.semanticscholar.org/paper/ebc00dbefbc5db4a64b360d3213890587424d296).

 

 

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