quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

“A montanha pariu um rato”

“A montanha pariu um rato”
Horácio, poeta romano

O Congresso abriga 594 parlamentares e cerca de 21 mil servidores. Mesmo assim, a capacidade de pensar o problema da segurança pública e elaborar saídas para a crise tem se relevado limitada. A pauta está concentrada em alguns poucos temas de baixa relevância e boa parte da atuação congressual está voltada à defesa dos interesses das categorias policiais. Vejamos os dados.

Segundo estudo de Carneiro cobrindo o período 1999 a 2006, tiveram origem no Executivo 82,4% das iniciativas de legislação na área criminal. A agenda do Executivo era não só maior quantitativamente como também mais variada do que a do Legislativo, centrada preponderantemente na mudança da Lei Penal. (Carneiro, 2010). Em 2015, 44% das normas relativas à segurança aprovadas pelo Congresso tiveram origem no Poder Executivo (Angeli, 2016). Uma hipótese é que este baixo desempenho quantitativo e qualitativo do Legislativo na segurança tenha alguma relação com o perfil dos parlamentares eleitos e que se interessam pelo tema.

Entre 1999 e 2006, Carneiro identificou porcentagens entre 8 e 11% de deputados oriundos da área de segurança. As classificações diferem entre uma pesquisa e outra, de modo que não é possível afirmar se a bancada da segurança cresceu ou diminuiu nas últimas legislaturas. De todo modo, o conceito de “bancada da segurança” está mais ligado ao tipo de pauta e atuação parlamentar do que à formação profissional prévia do eleito. Ao todo, a atual legislatura conta com 19 deputados oriundos das forças de segurança e vários deles estão na lista dos mais votados em seus estados de origem. Radialistas e apresentadores de TV engrossam esta bancada dedicada ao tema. (Angeli, 2015 e 2016). Este grupo forma a conhecida “bancada da bala”, como ficou popularmente conhecida na imprensa, por conta do recebimento de recursos da indústria de armas nas campanhas e defesa dos interesses do setor no Congresso.

O debate sobre segurança é bastante concentrado neste reduzido, porém ativo grupo. Cerca de 20 deputados foram responsáveis pela apresentação de 42% das propostas em 2015 e 2016. No Senado, 11 senadores foram responsáveis por 69% das propostas em 2015 e 6 senadores responsáveis por 57% das propostas em 2016. (Angeli, 2016 e 2017)

Análises dos projetos apresentados sugerem uma produção legislativa marcada pelo corporativismo, defesa de interesses privados e respostas espasmódicas à crise específicas, quase sempre na linha da criminalização de condutas e aumento de penas. As análises não são comparáveis, pois cada autor utilizou metodologias diferentes para listar os projetos e classifica-los por temas. Apesar das diferenças, algumas similitudes emergem.

Na pesquisa realizada em 2010, cobrindo o período entre a 50º e 52º legislaturas, Carneiro identificou 153 projetos apresentados na área de segurança e política criminal (Carneiro, 2010). Analisando os temas principais, 24% tratava de orçamento para segurança, 15% de alterações nos códigos de processo penal, 15% propunham novas modalidades de crimes, 13,7% da criação de cargos e salários, 11,1% do aumento de penas privativas de liberdade.

Em 2013, analisei 775 projetos que continham a expressão “segurança pública”, levantamento que mostrou a preocupação desproporcional com a investigação de casos destacados pela mídia (17,9%), recursos para o setor (5,3%), segurança das instituições bancárias (4,9%) e medidas de endurecimento penal (Kahn, 2013).

Ricardo (Ricardo, Baird e Pollachi, 2014) analisou 35 proposições aprovadas na 54º legislatura (2011 a 2014), e classificou 43% delas como “instituições policiais”, item que compreende a “criação de cargos, concessão de benefícios, e disciplinamento de carreiras e competências”. Dentro desta categoria abrangente, por sua vez, 75% seriam de natureza claramente corporativa. A categoria “política criminal” representa 20% das proposições e engloba a “tipificação de crimes, aumento de penas e alterações no processo penal”. (Ricardo e outros, 2014) Quanto à origem, 66% das proposições aprovadas foram de iniciativa do Executivo.

De acordo com as pesquisas do Sou da Paz, na Câmara dos Deputados em 2015 foram apresentados 695 Pls sobre segurança. Cerca de 20% das proposições versavam sobre aumento de pena e 20% sobre criminalização de novas condutas. Em 2016 estes temas voltam a encabeçar a lista. Temas ligados à defesa das polícias apareceram em quarto lugar em 2015, com 9% das propostas. Em 2016, a porcentagem de propostas tratando de temas de interesse policial cresce para 15%, subindo para a terceira posição.

São geralmente propostas de benefícios, programas assistenciais aos policiais e suas famílias, regulamentação de adicionais ou gratificações, anistia a policiais grevistas, seguros, promoções, etc. Por outro lado, apenas 3% dos projetos poderiam ser classificados como “programas de segurança” propriamente ditos em 2015 e 4,5% em 2016.

Nas PECs da Câmara dos Deputados, a defesa dos interesses policiais corporativos representou 36% das matérias tratadas em 2015 e 33,3% em 2016. No Senado, metade das PECs de 2015 versava sobre temas de interesse policial. Os temas corporativos ocuparam também 1/3 das discussões na Comissão de Segurança Pública e Justiça Criminal em 2016. (Angeli, 2015 e 2016)

Os estudos citados parecem coincidir na identificação da tendência do Congresso a se concentrar, pelos menos desde os anos 90, nas mudanças legislativas pontuais, relacionadas principalmente ao aumento de penas, tipificação de novos crimes, aumento de recursos e matérias de interesse profissional das categorias policiais. O Executivo, em razão da necessidade concreta de gerir a máquina federal, pauta a maioria das iniciativas aprovadas. Mudanças mais profundas no sistema de justiça criminal são evitadas tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo e o medo das corporações de perderem influência e recursos explica em parte este imobilismo.

Seria injusto afirmar que nada de relevante foi produzido no Legislativo nestes anos. Mas em linhas gerais, a produção deixa a desejar, comparada ao tamanho do problema criminal brasileiro e aos custos do Congresso para os cofres públicos Poderíamos repetir o poeta romano Horácio quando diz “Parturient montes, nascetur mus”, ou “a montanha pariu um rato”, numa alusão a grandes expectativas e resultados frustrantes.

Nosso dilema é o seguinte: quanto mais piora a segurança pública e a sensação de insegurança no país, maiores as chances de eleição dos candidatos vinculados as instituições de segurança ou comunicadores de massa que pregam a “linha dura” com os criminosos. E quando maior a bancada com este perfil, menos avançam as propostas estruturantes para a segurança, piorando a situação. No caso brasileiro, a montanha pariu Bolsonaro.

É legítimo defender as polícias e alguém deve fazê-lo. Mas defender a polícia significa às vezes ousar criticá-la e propor mudanças profundas no sistema de justiça criminal. E segurança pública envolve muito mais do que polícias.





Bibliografia
·         Angeli, Fellipe. O papel do legislativo na segurança pública. Análise da atuação do Congresso Nacional em 2015. Instituto Sou da Paz, São Paulo, 2016.
·         Angeli, Fellipe. O papel do legislativo na segurança pública. Análise da atuação do Congresso Nacional em 2016. Instituto Sou da Paz, São Paulo, 2017.
·         Kahn, Tulio. Uma radiografia das atividades do Congresso com relação à segurança pública. Espaço Democrático, 2013.
·         Piquet Carneiro, Leandro e outros. O Poder Ausente. O Congresso Nacional e a Segurança Pública no Brasil. Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas, USP, 2010.

·         Ricardo, Carolina; Baird, Marcello Fragano e Pollachi, Natália. Congresso Nacional e segurança pública: a produção legislativa na 54ª legislatura (2011-2014). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, São Paulo, 2015.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

A vergonha era pouca. E se acabou.




As pessoas obedecem às leis pelos mais variados motivos: 1) por medo da punição terrena 2) medo de castigo divino, 3) por dever moral, posto que justas e legítimas 4) por vergonha da opinião alheia, 5) por concluir racionalmente que é melhor respeitá-las, 6) por costume e força da tradição - para lembrar apenas algumas motivações principais. Quando confrontado com a opção de respeitar ou infringir a lei, é provável que uma mistura de motivos entre em ação, cada qual apelando à um nível cognitivo e/ou intuitivo do indivíduo.

A obediência assim é tanto maior quanto maiores forem, para o indivíduo: o temor de ser identificado e capturado; a crença na religião e em que nossas ações são vigiadas e recompensadas no mundo vindouro; a crença humanista interior de que as leis devem ser respeitadas em nome do bem comum ou que não se deve fazer aos outros aquilo que não se quer para si mesmo; a importância dada à opinião dos demais, em especial dos mais próximos; a estimativa racional de que em longo prazo compensa aderir voluntariamente às normas quando os demais também o fazem; a introjeção dos valores tradicionais e culturais da comunidade.

Extrapolando do individual para o nível coletivo, é possível especular que o grau de obediência às leis – ou da violência e criminalidade - em uma determinada comunidade dependam em parte dos mesmos fatores que atuam sobre os indivíduos. Em outras palavras, a desobediência e a criminalidade devem ser maiores onde: a probabilidade de detecção e punição é baixa; a religiosidade é baixa; o individualismo e insolidarismo são elevados; não é socialmente vergonhoso infringir as normas; o cálculo mental sugere que não compensa aderir às normas porque inexistem incentivos e os demais não o fazem, de modo que a decisão racional é violar a norma; os valores culturais não reforçam a noção de que as leis e normas sociais devem ser respeitadas.

Estes fatores “inibitórios”, explicam tanto o funcionamento mental de um criminoso profissional tentado a cometer um crime grave quanto o do “cidadão de bem”, quando deparado com as pequenas contravenções do cotidiano, como dirigir alcoolizado, comprar DVDs e softwares piratas, sonegar o imposto de renda, furar a fila, subornar o guarda para não ser multado e outros delitos nossos de cada dia.

Com efeito, diversas pesquisas criminológicas sugerem que estes mecanismos afetam os níveis de criminalidade local. Uma área vigiada inibe a criminalidade enquanto uma abandonada a estimula. Países fortemente religiosos, especialmente islâmicos, tem taxas criminais mais baixas do que os demais. Comunidades com mais “capital social” são menos afetadas pelo crime e desordem. Uma polícia que respeita as leis reforça o sentimento de que as leis são justas e legítimas e uma que viola as leis reforça a desobediência.  Envergonhar publicamente o infrator – por exemplo, publicando o nome do mau pagador numa lista de devedores – estimula o cumprimento das normas.  As mesmas pessoas que não jogam lixo no Metrô, onde todos parecem adotar o mesmo padrão, jogam na estação de Trem, onde todo mundo parece fazer o mesmo. Bairros de ocupação mais antiga tem menos crimes do que bairros de ocupação mais recente. É fácil encontrar na literatura sobre fatores de risco e fatores de proteção centenas de exemplos que corroboram estas conexões entre nível de criminalidade e os fatores inibidores listados.


O problema criminal brasileiro pode ser explicado em grande parte não só pela insuficiência de recursos, expansão do tráfico de drogas, abundância de armas, ineficácia do sistema de justiça criminal ou pelas carências socioeconômicas estruturais do pais – que certamente são relevantes – mas também pela falência dos fatores inibitórios aqui arrolados.

No Brasil a probabilidade de ser pego e punido pelo sistema de justiça criminal é bastante baixa para a maioria dos crimes. Mesmo quando pego e punido, são grandes as chances de que a pena não venha a ser cumprida integralmente. Na esfera religiosa, observamos uma diminuição na porcentagem daqueles que se declaram fortemente religiosos e um aumento dos sem religião. Ninguém tem medo da punição divina e mesmo os que cometem as maiores atrocidades estão certos de que serão perdoados, caso se arrependam depois com sinceridade e não atrasem o dízimo. De toda forma, vivemos numa sociedade onde a influência da religião – para o bem ou para o mal – é cada vez menor. Na dúvida sobre a existência do além e suas recompensas e castigos, a religião é cada vez menos um freio para a reforçar a obediência dos indivíduos às normas.

O conceito de bem comum e de que é moralmente errado, numa perspectiva moral humanista e não religiosa, ofender a integridade física e a propriedade dos demais, tampouco parece disseminado. Vivemos antes a guerra de todos contra todos do que o contrato social. É o cada um por si e D´us contra todos. Não há sentimento de “comunidade” nem “interesse geral”. Nem noção de Pátria (exceto de chuteiras). Nem de Nação ou de “gerações futuras”. Somos um “multitutus” e não um “populus”. Os padrões morais são flexíveis e muitos acham moralmente correto superfaturar, subornar, torturar, sonegar, fraudar, e mesmo matar, se a pessoa “mereceu” o castigo. Como disse certa vez Marx (Groucho, não Karl) numa comédia, “esta é a minha lista de princípios, mas se não estiver de acordo podemos modifica-la”.

Desrespeitar a lei e as normas vigentes não é motivo de vergonha, mas ao contrário. O seguidor das regras é o “caxias”, o “careta”, o bundão. O admirado é o malandro e a “malandra”. O esperto, que sempre se dá bem e leva vantagem em tudo. É o bicheiro e o traficante e não o policial. Temos o “rouba, mas faz” e o “rouba, mas é de esquerda”. Nas comunidades, ter passado pela prisão e ser membro de facção é prestígio.  As pessoas aqui se suicidam por amor, por problemas financeiros, por problemas mentais. Mas no Brasil ninguém se mata por vergonha de ter roubado. Vergonha é ser pobre e para superar a pobreza qualquer expediente vale. Vale ser funcionário fantasma. Vale receber irregularmente bolsas, auxílios e pensões. Vale reivindicar auxílios moradia, livros, ternos, etc. por quem ganha salários acima de dois dígitos. Vale enganar o consumidor. Neste contexto, porque o criminoso comum deveria se envergonhar dos seus crimes?

Independente do grau de moralidade coletiva, a estrutura de incentivos, como denominam os economistas, tampouco contribui para um resultado coletivo satisfatório. Num cruzamento de ruas sem regras, os carros colidem tanto se os motoristas são egoístas quanto se são altruístas.  Mesmo que ache moralmente errado, a “escolha racional” é sonegar o imposto, se todos que podem o fazem e o Estado oferece muito pouco em troca. Por que votar, se o peso do meu voto é um 1/N e a classe política não me representa? Por que procurar um emprego onde tenho que trabalhar pesado diariamente para receber salário mínimo se o crime remunera melhor e a probabilidade de punição é baixa?

Sim, não há dúvida: para resolver o problema imenso da segurança no Brasil é preciso reformar a polícia, repensar o pacto federativo, aumentar os recursos para a área, inovar na gestão e na tecnologia, etc. etc. Mas nem tudo depende do poder público e do sistema de justiça criminal.

Devemos atentar também para estes fatores inibitórios individuais. A probabilidade de punição terrena pode ser aumentada pela melhoria da investigação policial, mas também se a comunidade denunciar os criminosos e colaborar com as investigações. Ou vigiar e fiscalizar o que acontece na vizinhança. As igrejas e templos talvez possam ser menos condescendentes e alertar que o pagamento do dízimo e orações não são garantia suficiente da absolvição eterna. Tanto quanto me lembro das aulas de barmitzvá, “Não Matarás” era um mandamento e não uma cláusula de adesão condicional para a qual existiria um jeitinho no final.

Mesmo para os que não acreditam numa religião, é possível reforçar uma ética humanista de que existem limites morais que devem ser respeitados e que os direitos de cada um esbarram nos direitos dos demais. São crenças que deveriam ser reforçadas pelas famílias, escolas, meios de comunicação, partidos e todas as instituições com alguma responsabilidade na formação cidadã. Não dá para exigir uma polícia cidadã ou comunitária se não tivermos antes cidadãos ou comunidade.

As instituições como família, Igreja ou escolas, foram criadas, entre outros motivos, para impor limites às nossas vontades individuais: para nos lembrar que existem as gerações futuras, os interesses e direitos coletivos, os “outros”, os direitos-deveres cívicos como votar, atendar ao serviço militar e pagar impostos. Aparentemente todas vem falhando na sua missão de reforçar nos indivíduos valores como honestidade, trabalho, responsabilidade, postergação de desejos imediatos, solidariedade e outros valores necessários para o convívio em sociedade. Não se trata de um lamurio conservador sobre a decadência dos valores, mas de lembrar que em algum momento, em algum nível, estas instituições devem repassar adiante estes conceitos. Quanto mais estas instituições cumprirem este papel, menor a necessidade do sistema de justiça criminal para relembrá-las.

Uma mudança na estrutura de incentivos estimula os comportamentos desejados. Se o Estado quer que o indivíduo pague impostos, é preciso cobrar de todos com justiça e equidade e oferecer serviços de qualidade em contrapartida. Se o objetivo é reforçar a participação política, é preciso garantir que as regras eleitorais ofereçam candidaturas que representem os anseios do eleitorado e que os eleitos consigam colocar em prática a agenda prometida. Impostos indiretos são uma estratégia de Estados incompetentes que oferecem pouco retorno ao cidadão e voto obrigatório é desnecessário em países onde a população sente que seu voto faz alguma diferença. Do mesmo modo, se o objetivo é diminuir o crime, incentivos também são necessários para contrabalançar a tentadora alternativa do mundo do crime: o crime não compensa - mas somente quando existem empregos suficientes e que pagam o necessário para que o indivíduo leve uma vida minimamente digna e honesta, numa sociedade sem abismos sociais como os brasileiros. Com tantos incentivos perversos, as opções pela sonegação, absenteísmo ou pela ilegalidade podem ser escolhas erradas, mas não de todo irracionais.

Finalmente, para reduzir a criminalidade, é preciso que voltemos a ter vergonha na cara neste país! Ministros, parlamentares, presidentes e ex-presidentes sequer ficam ruborizados ao contarem mentiras deslavadas publicamente, indício fisiológico de alguma noção de ética no indivíduo. Mesmo entre os ladrões existe uma “ética”, ainda que peculiar: o reconhecimento de que “a casa caiu” quando pego, de que “sangue se lava com sangue”, que estupradores e delatores são desprezíveis, que a palavra dada tem valor de contrato, etc. Há algo de muito errado num país quando ladrões e assassinos demostram ter mais ética e vergonha na cara do que algumas lideranças políticas. Pode-se tentar qualquer reforma do art. 144 da Constituição, que trata da segurança pública, mas todas estarão fadadas ao insucesso se o parágrafo primeiro não instituir, antes de qualquer coisa, que “É preciso tomar vergonha na cara. Revogam-se todas as disposições em contrário”.

- Tyler, Tom. R. Why People Obaey the Law. Princeton University Press, 2006









segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

“Dados! Dados! Dados! -ele gritou impaciente. Eu não posso fazer tijolos sem argila”. Sherlock Holmes. The Adventure of the Copper Beeches



John Snow atuava como médico em Londres quando uma epidemia do cólera irrompeu na cidade, em 1854. Analisando a ficha dos pacientes que chegavam ao hospital, ele notou que vários deles moravam numa região específica da cidade e começou a assinalar num mapa os endereços dos doentes. O que é que existia ali de especial que poderia explicar as concentrações espaciais mostradas no mapa? Depois de analisar o local, Snow percebeu a existência de poços de água e teorizou que era a agua infectada que ajudava a transmitir a doença. Sugeriu fechar alguns poços e algum tempo depois a epidemia começou a refluir. Nascia aí a epidemiologia e a ideia de que a localização espacial de um fenômeno pode dar pistas importantes para compreender suas causas e características.

As polícias logo perceberam a utilidade do método: desde o século XIX mapas e alfinetes coloridos tornaram-se utensílios usuais nos departamentos de polícia. Os assassinatos de Jack, o estripador, foram mapeados pela polícia londrina já em 1888, que especulava que o autor seria um morador local. Em 2014, usando o local das mortes, dois criminólogos estimaram que Jack morava com grande probabilidade entre as ruas Flower e Dean. A concentração de prostíbulos na área de Whitechapel é um dos fatores para entender a distribuição espacial das vítimas. A epidemia no Soho e os assassinatos em Whitechapel são dois exemplos célebres do uso de mapas para traçar políticas públicas e aprimorar a investigação e hoje é usual nos órgãos de segurança. Ou deveria ser.




Local de ocorrência dos crimes, local de residência de criminosos contumazes, equipamentos policiais e áreas de interesse são assinalados em mapas criminais para responder à mesma pergunta feita por Snow no século retrasado: o que é que existe aqui nesta área que ajuda a explicar uma elevada incidência criminal?

A evolução das técnicas de mapeamento criminal e seu uso continuado por policiais e acadêmicos acabou por formar um rico arsenal de conhecimentos sobre a relação entre crime e espaço: os crimes não se distribuem aleatoriamente pelo território mas se concentram em áreas específicas, que acumulam elevada porcentagem dos casos; áreas deterioradas atraem criminosos e contraventores e pioram a sensação de segurança; vítimas e autores de crimes contra a pessoa geralmente moram a uma pequena distância um dos outros; a jornada dos criminosos até o local onde consuma o crime segue um padrão onde muitas jornadas são de curta distância e poucas de longa; certos equipamentos públicos (universidades) atraem determinados tipos de crimes (roubo de veículos); um espaço iluminado e monitorado diminui a criminalidade, etc. etc. Não é o caso aqui de listar todos as centenas de achados neste campo mas apenas de ilustrar o ponto: a dimensão espacial do fenômeno é essencial para entender e prevenir o crime.

Mapas não são apenas um modo de apresentar dados de forma mais atraente e concisa. Existem algumas perguntas que só podem ser respondidas através de um banco de dados espacial, onde é possível manipular objetos geográficos (linhas, pontos e polígonos). Um banco de dados sem coordenadas espaciais não consegue responder, por exemplo: quais e quantos crimes ocorrem num raio ao redor de 300 mts das escolas públicas? Qual o caminho e a distância entre o local onde um veículo foi roubado e o local onde foi localizado? Se um roubo a banco foi cometido as 15:00 e os criminosos escaparam de carro, até onde estes podem ter chegado, depois de 30 minutos? Qual o raio de ação inibidora das câmeras de monitoramento sobre os furtos? Onde mora um criminoso serial, baseado na distribuição dos crimes atribuídos a ele? Este tipo de consulta a uma base de dados só pode ser realizada se a base contiver objetos geográficos que podem ser selecionados e manipulados.

O uso pelas polícias destas bases de dados criminais espaciais gerou um salto de qualidade em termos de gestão nos anos 90, quando computadores e sistemas de informações geográficas baratearam e se popularizaram. Por traz de alguns casos de sucesso no combate à criminalidade está frequentemente a existência de um sistema epidemiológico que identifica locais, horários e características dos crimes: foi o que se viu em Bogotá, em Nova Iorque com o “Compstat” e em São Paulo com o “Infocrim” e o “Copom-on-line”. A literatura acadêmica sugere que a existência destes sistemas e o policiamento baseado em hot spots ajudaram a aprofundar as quedas dos homicídios e outros crimes, permitindo uma alocação mais focada e eficiente dos escassos recursos policiais e sociais. A rota de patrulhamento das viaturas, decisões sobre onde colocar câmeras e bases, onde investir em projetos preventivos, onde e quando realizar operações policiais e diversas outras decisões operacionais e estratégicas são tomadas com base nestes sistemas.

Nos Estados Unidos, Inglaterra e outros países desenvolvidos, onde os governos estão acostumados às demandas por transparência e responsividade, as informações estatísticas básicas sobre a criminalidade local podem ser obtidas pela população de maneira abrangente e atualizada pela internet (exceto, obviamente, detalhes do caso), através de mapas, gráficos e tabelas mostrando os locais, tipos e horários dos crimes. Não é apenas uma questão deontológica. O poder público parece ter se dado conta de que a comunidade e outros órgãos públicos e privados de diversas instâncias podem colaborar para a análise e para prevenir a criminalidade quando se compartilha onde e quando os crimes acontecem: se nesta rua tem muitos roubos de veículos, vou evitar parar ali; se nesta praça ocorrem muitos estupros, a comunidade do entorno pode atuar para reforçar a segurança; se o crime está caindo no meu bairro, posso argumentar contra os valores cobrados pelas seguradoras; se esta universidade é mais segura, fico mais tranquilo em enviar meu filho estudar ali; se esta rota é mais segura, prefiro utilizá-la, mesmo que seja um pouco mais longa. As possibilidades de uso destas informações criminais geolocalizadas por indivíduos, comunidades e empresas são inúmeras e no agregado das micro decisões, ajudam a diminuir o crime.

No Brasil, infelizmente, nem todas as polícias e guardas conseguiram ainda construir bases de dados georeferenciadas e sistemas de mapeamento criminal. E poucas das que tem algum sistema disponibilizam estas informações para os outros. Felizmente as novas ondas em favor de mais transparência - consolidadas nas ideias do governo 2.0, dados abertos governamentais, cyber ativismo, serviços de informação ao cidadão, Lei de Acesso à informação, jornalismo de dados, etc. - estão transformando aos poucos este cenário surreal, onde nem mesmo uma Guarda Municipal podia ter acesso aos dados criminais ocorridos na própria cidade, em poder das polícias estaduais.

Refletindo este avanço, segundo o índice de Dados Abertos elaborado pela Open Knowledge International, o Brasil estava em 2017 entre os 8 países mais transparentes, num ranking de 122 países, no que se refere a divulgação de informações sobre eleições, compras públicas, gastos governamentais, emissões de poluentes e outras categorias. Dados sobre segurança pública não fazem parte do índice e certamente fariam o Brasil cair no ranking, uma vez que as informações disponibilizadas pelos governos são em geral parcas e desatualizadas, como já assinalamos em outras ocasiões

Mas existem exceções. Passou de maneira quase desapercebida o fato da Secretaria de Segurança de São Paulo ter começado a divulgar detalhes dos Boletins de Ocorrência em maio de 2016 (transparênciassp). Desde então, é possível baixar mensalmente os dados de oito tipos de crimes – homicídio, furtos, roubos, lesões, mortes decorrentes de intervenções, etc. – com informações individualizadas da ocorrência como endereço, horário, veículos envolvidos, idade, escolaridade, sexo e dezenas de informações sobre o crime e os envolvidos. Os dados retroagem até 2003 e os arquivos podem ser baixados livremente em planilhas, permitindo o uso imediato em outros sistemas. (um exemplo de ferramenta que usa estes dados pode ser vista aqui: https://tuliokahn.wixsite.com/webcrim/webcrim)
 

A iniciativa da SSP/SP é inovadora e louvável e acredito que em algum tempo deve contribuir para diminuir a criminalidade no Estado. Com um pouco de conhecimento e esforço, qualquer Guarda Municipal do Estado, ONG, órgão público ou empresa pode consultar como está a criminalidade na sua área e saber precisamente, como preconizava John Snow, onde, quais e quando os incidentes estão ocorrendo. Feito o perfil epidemiológico, o passo seguinte é tentar esclarecer porque eles estão justamente ali e quais são os fatores de risco ou protetivos que podem ser manipulados para prevenir a criminalidade. Decisões básicas - pessoais, empresariais, comunitárias, governamentais – como onde vou morar, onde é melhor abrir um negócio, que caminho seguir, onde construir uma quadra esportiva, podem ser tomadas com base nestas informações pelos felizardos paulistas.

Durante muitos anos em São Paulo, nem mesmo os municípios com Guardas Municipais tinham acesso abrangente aos dados do Infocrim, considerados “sigilosos”! Sempre que ouvia o argumento do “sigilo das estatísticas” me lembrava de uma camiseta israelense, onde se lia: “meu trabalho é tão sigiloso, mas tão sigiloso, que as vezes nem eu mesmo sei o que estou fazendo”. É o que se fez durante muito tempo por aqui e seria engraçado, não fossem os resultados custosos para todos. Pois bem, os dados criminais estão lentamente deixando de ser sigilosos. Já temos argila para fazer tijolos.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Guerra às drogas: vale a pena insistir nesta política?

Túlio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático





Diversos países adotam políticas de enfrentamento direto ao tráfico como estratégia para tentar reduzir o consumo e oferta de drogas, bem como a criminalidade e a violência em geral. Esta política ficou conhecida como “guerra às drogas” e teve início por volta dos anos 1960, nos Estados Unidos, de onde se difundiu mundo afora. Não obstante a longevidade, o impacto e a dispersão geográfica da política de “guerra às drogas”, existem poucas avaliações sistemáticas e rigorosas dos seus custos e resultados para as sociedades que as adotaram.

Uma avaliação abrangente da política de guerra às drogas envolve encontrar indicadores que consigam capturar em que medida estes objetivos foram atingidos e analisar tanto os resultados desejados quanto os indesejados – pois toda política gera “externalidades”.

Os objetivos das políticas de guerra às drogas são diversos e os indicadores de sucesso variaram conforme a administração federal norte-americana, mas a literatura identifica entre os principais: diminuir a prevalência do uso de drogas entre os jovens, diminuir o número de usuários crônicos, aumentar o preço das drogas, diminuir o grau de pureza, aumentar a idade média do primeiro uso, aumentar o volume de drogas apreendidas pela polícia, diminuir a área cultivada, aumentar a área destruída nas operações policiais, destruir laboratórios e precursores químicos, reduzir o faturamento anual do tráfico, aumentar as condenações por tráfico, reduzir o número de crimes associados ao tráfico, reduzir custos sociais e médicos associados ao uso de drogas, reduzir o número de emergências hospitalares ligadas ao abuso, reduzir a incidência de doenças relacionadas ao uso (HIV, hepatite C, etc).

Como no Brasil políticas criminais não são baseadas em pesquisa, mas em ideologias, de todos estes indicadores de “sucesso” listados pela literatura temos condições de acompanhar sistematicamente apenas alguns. Mas mesmo quando se faz política baseada em evidências é preciso tomar muito cuidado para saber o que de fato elas significam.

Note-se que estes indicadores não medem necessariamente o sucesso da política de combate às drogas, pois muitas destas medidas podem ser ambíguas.

1- Aumento do preço das drogas – É considerado uma medida de sucesso, mas apenas se for uma consequência da diminuição da produção e da entrada de drogas, já que preços maiores desestimulam o consumo. Em compensação, o aumento de preço, pelas regras do mercado, estimula a produção, pois os lucros também se tornam maiores. E, na medida em que se trata de uma mercadoria bastante inelástica com relação ao preço (vícios, em geral, são menos afetados pelos preços), pode ocorrer uma substituição por drogas mais baratas e de efeitos ainda mais danosos. A substituição da cocaína pelo crack e o fortalecimento dos cartéis de drogas, por exemplo, pode ser uma consequência indesejada do aumento do preço da droga, como sugeriu o Nobel de economia Milton Friedman. (Dana, Samy e Almeida, Sérgio. Pode não ser o que parece. Ed. Objetiva, RJ, 2017)

2- Diminuição da pureza da droga – Significa, em tese, que houve sucesso na redução da oferta. Em tese, pois o tráfico pode simplesmente batizar a droga para gerar maiores lucros, independentemente da oferta. E a droga batizada pode acarretar mais danos à saúde dos usuários e aumento os custos hospitalares.

3 – Volume de droga apreendida – É sucesso quando aumenta ou quando cai? Quando aumenta, pode refletir a entrada de mais drogas e não necessariamente maior atividade policial. É preciso “controlar” a variável atividade policial para interpretar corretamente o indicador como medida de sucesso ou fracasso no combate ao tráfico.

4- Condenações por tráfico – Não são necessariamente positivas, dependendo da periculosidade de quem se prende. Sabe-se que prisões tem “rendimentos marginais decrescentes”: se estamos prendendo cada vez mais traficantes de baixa periculosidade (mulas) e baixa hierarquia no mundo do tráfico, então o aumento das condenações pode ser contraproducente. Os baixos escalões são rapidamente substituídos e tornam-se um ônus para o Estado nas prisões, com impactos mínimos sobre as organizações criminosas. Ironicamente, na medida em que o sistema de justiça criminal retira de circulação os competidores mais fracos, pode contribuir para o fortalecimento das organizações mais poderosas. E os condenados viram, nas prisões, massa de manobra para o crime organizado.

5 – Prevalência do uso – Vários dos indicadores de uso de drogas variam em função do ciclo econômico – crescimento e retração da economia – e não medem necessariamente o sucesso da atividade policial, mas simplesmente o poder de compra dos usuários. Sem controlar as variáveis do nível de atividade econômica e de atividades policiais, não significam muita coisa. Nos últimos dois anos vimos a queda na apreensão de drogas em muitos Estados, como provável reflexo dos 8 trimestres de recessão, mais do que do incremento do combate ao tráfico.

Vê-se, assim, que a avaliação do sucesso de uma política pública é complexa e envolve diversos cuidados metodológicos, como o uso de um design adequado, hipóteses claramente formuladas e o controle de diversos fatores de modo a garantir que os efeitos observados se devem realmente às ações colocadas em prática e não a fatores não controlados. Desnecessário dizer que uma avaliação rigorosa é difícil de ser obtida se esta preocupação não foi pensada desde o início. O resultado é quase sempre avaliações pouco rigorosas sobre políticas que custam milhões em volume financeiro e, frequentemente, em vidas, quando se tratam de políticas de segurança pública.

Quais os custos e consequências desta política de guerra às drogas, principalmente nas sociedades latino-americanas? Concebida originariamente para diminuir o problema das drogas nos Estados Unidos, os efeitos mais impactantes desta política talvez se manifestem nas sociedades menos desenvolvidas, como México, Brasil e Colômbia, detentores de taxas elevadíssimas de homicídios, em parte originados dos confrontos com o tráfico. Tanto nos EUA quanto em outros lugares, internamente, são as camadas mais desfavorecidas que absorvem os maiores impactos da política de guerra às drogas.

O Brasil é menos um produtor de drogas do que um centro de consumo e rota de passagem. Boa parte dos custos típicos da guerra às drogas reside em atividades de controle da produção e tais custos são praticamente inexistentes aqui. O Brasil, deste modo, sub-representa certos tipos de custo – especialmente os ligados ao combate à produção – enquanto sobrerrepresenta outros, como o número de mortos nos confrontos. Parte significativa dos recursos estadunidenses gastos na guerra às drogas têm relação com atividades desenvolvidas nos países produtores de drogas – Colômbia, Bolívia, Peru –, onde milhões de dólares são gastos na erradicação de áreas de cultivo de coca ou nos programas de substituição de renda para ex-cultivadores de coca. É preciso ter estas especificidades em mente antes de tentar generalizar os achados e avaliações das pesquisas norte americanas para o caso brasileiro.

Se as avaliações de políticas públicas já são raras, o levantamento dos custos e externalidades é ainda mais raro nas avaliações de políticas de segurança. Mesmo quando há a intenção de levantá-los, gestores e pesquisadores enfrentam grandes dificuldades para encontrar as medidas adequadas ou para transformá-las numa escala monetária comum. Este problema é tanto maior quando se trata de avaliar uma atividade ilícita como o tráfico de drogas. Qual o faturamento das organizações criminais? Quantas pessoas o tráfico envolve? Quantas pessoas deixam de visitar uma cidade por causa da violência associada ao tráfico? Qual o impacto da violência da guerra às drogas nas gerações futuras? Qual o impacto presente no rendimento do trabalho e escolar? A legalização da maconha para uso recreativo, em alguns estados norte-americanos, criou um mercado legal em torno do cultivo e venda da maconha, que é taxado pelo poder público. Pensando no chamado “custo de oportunidade”, devemos incluir nos custos da guerra às drogas também o quanto se deixa de arrecadar em impostos, na hipótese de legalização do uso recreativo da maconha?

Deixando de lado estes custos mais complexos, a estratégia da guerra às drogas é operacionalizada de diversas formas, incluindo, entre outras: ações de identificação e erradicação de áreas de plantio, substituição de sementes para os ex-cultivadores, fiscalização de fronteiras, fiscalização de portos, monitoramento de aeronaves suspeitas, investigação de quadrilhas, monitoramento de movimentações bancárias suspeitas, operações ostensivas nos territórios controlados pelo tráfico, custodia dos condenados por tráfico, custas processuais, para mencionar apenas algumas das principais. Estas diversas ações envolvem a mobilização de recursos humanos e materiais da Polícia Federal, Polícias Civis e Polícias Militares estaduais, Ministério Público, Judiciário, sistema prisional, Forças Armadas – para mencionar apenas alguns órgãos públicos envolvidos diretamente na questão. Ninguém contabilizou com rigor os custos destas atividades, mas parece claro que elas consomem energia substancial das forças de segurança no Brasil, que poderiam se dedicar a outras tarefas caso tivéssemos políticas alternativas para lidar com a questão, como prevenção e tratamento, redução de danos ou mesmo o fim da proibição do uso recreativo da maconha, como tentado em Portugal, no Uruguai e em diversos estados norte-americanos.

Além de custos diretos, a política de guerra às drogas têm consequências indiretas elevadas para a sociedade. A lista de resultados indesejados do proibicionismo (externalidades) é extensa: número de policiais e civis mortos nos confrontos, anos de vida produtivos perdidos, pagamentos de pensões por invalidez e por morte pelo INSS, indenizações por invalidez e morte, gastos do sistema de saúde no tratamento médico aos feridos nos confrontos, tratamento psiquiátricos aos afetados, corrupção dos agentes públicos pelo tráfico, danos à propriedade do Estado e de terceiros durante as operações nas comunidades, impactos no desenvolvimento escolar das crianças nas áreas afetadas pelos confrontos, paralisação dos serviços e do comércio, estagnação econômica das comunidades onde ocorrem os confrontos, queda de produtividade no trabalho, efeitos intergeracionais da violência, estigmatização e marginalização dos usuários, diminuição do turismo em razão da violência, riscos de envolvimento do tráfico na política etc.

A literatura criminológica já identificou inúmeros efeitos deletérios de longo prazo do convívio cotidiano com a violência: perda de rendimento escolar, perda de produtividade do trabalho, empobrecimento geral das comunidades, queda de confiança nas instituições, perda de qualidade de vida etc. Alguns destes efeitos podem passar para as gerações seguintes, mesmo que estas não tenham sido submetidas diretamente à violência. Mesmo que não consigamos associar valores monetários a estes custos intangíveis, é importante ao menos reconhecê-los, pois ajudam a compreender que a real dimensão do custo da política de “guerra às drogas” pode ser muito maior do que a calculada.

A estimativa de custos é apenas um dos muitos aspectos que envolvem a avaliação de qualquer política pública. Este cálculo de custo-benefício é necessário para podemos avaliar se os mesmos objetivos não poderiam ser atingidos com custos e consequências menores, tanto para o poder público quando para a sociedade. Mesmo que uma política seja “eficaz”, é possível que existam outras políticas mais “eficientes”, quando comparamos o desempenho relativo de políticas alternativas para lidar com o complexo problema das drogas. Embora não disponhamos de dados concretos para avaliar a política de guerra às drogas no Brasil, as evidências parciais sugerem que é um retumbante fracasso: as pessoas no Brasil não estão morrendo de overdose, mas nos confrontos com o tráfico. Não há evidência de redução significativa no consumo de drogas nem no poderio das organizações criminosas, apesar do crescimento dos custos para o sistema de justiça criminal. Urge avaliar a estratégia e, se for o caso, ter a coragem de modifica-la!



Bibliografia

Bergen-Cico, Dessa K. War and drugs: The role of military conflict in the development of substance abuse. Routledge, 2015.

Buchanan, J. & Young, L. (2000) ‘The War on Drugs – A War on Drug Users’. Drugs: Education, Prevention Policy, 7(4), 409-422

Count the Costs: The War on Drugs: Creating crime, enriching criminals

Dana, Samy e Almeida, Sérgio. Pode não ser o que parece. Ed. Objetiva, RJ, 2017

Duke, Steven B., and Albert C. Gross. America’s longest war: Rethinking our tragic crusade against drugs. Open Road Media, 2014.

Pat Paterson and Katy Robinson. Measuring Success in the War on Drugs. William J. Perry Center for Hemispheric Defense Studies. Perry Center Occasional Paper, July 2014

UNODC. World Drug Repoort 2014.

Walsh, John M. Drug War Monitor. Are We There Yet? Measuring Progress in the U.S. War on Drugs in Latin America. DECEMBER 2004, WOLA BRIEFING SERIES

Werb D, Kerr T, Nosyk B, et al The temporal relationship between drug supply indicators: an audit of international government surveillance systems BMJ Open 2013;3:e003077. doi: 10.1136/bmjopen-2013-003077

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Pagadores de impostos, uni-vos!



O Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels completará 170 anos em 2018. É um dos textos mais traduzidos e influentes da história e sempre é válido e prazeroso relê-lo de tempos em tempos. Menos pela agenda política preconizada ali, já defasada, do que pelo método de análise dos fenômenos históricos e socais, cuja utilidade heurística é reconhecida até hoje.

Seria pretensioso fazer aqui uma análise crítica do Manifesto, que já foi destrinchado por analistas muito mais competentes, como Harold Laski, Joseph Shumpeter e dezenas de outros nestes 170 anos. Com a vantagem de reler o Manifesto num momento mais avançado no tempo, permito-me alguns comentários sobre o texto, a luz do contexto atual.

Não fossem os comunistas, o capitalismo seria hoje muito menos humanizado. Salvar o capitalismo de seus excessos talvez tenha sido a maior contribuição do movimento. O decálogo de propostas elencados no Manifesto em 1848 se encontra parcialmente em vigor em praticamente todas as democracias ocidentais, ao menos os itens menos radicais como o imposto de renda progressivo, a taxação do direito de herança, a participação dos operários nos lucros, a redução da jornada de trabalho, a abolição do trabalho infantil, a reforma agrária, a criação de bancos nacionais que ofertam crédito estatal, a educação gratuita para todas as crianças em escolas públicas. Ao lado de propostas mais radicais - como a expropriação da propriedade privada, a centralização dos meios de comunicação e transporte, o trabalho obrigatório e o estabelecimento de exércitos industriais - são todas elas medidas presentes no Manifesto e adotadas quase universalmente nas democracias liberais. Boa parte da agenda do Manifesto, como lembra Shumpeter, contaria com a benção de J.S Mill – “afora a ideia hitlerista dos exércitos industriais”. As outras, felizmente, foram deixadas de lado.

As medidas adotadas foram, digamos assim, as medidas “paliativas”, que não tocavam na questão central da propriedade privada e das relações de produção. Para a burguesia, era a entrega dos anéis para a preservação dos dedos. A incorporação de parte palatável da agenda comunista acabou por esvaziar a parte mais radical. O chamamento do Manifesto à ação revolucionaria foi sendo tanto mais esvaziado quanto mais as reivindicações operárias nele contidas - com a colaboração dos comunistas e socialistas - foram colocadas progressivamente em pratica pelos governos social democratas e socialistas. A estratégia de alianças progressistas e de lutar pelas conquistas menores e imediatas que melhorassem a posição dos trabalhadores, ao final, corroeu o ímpeto revolucionário do proletariado, se é que ele algum dia existiu. O proletário tinha já algo a perder, além de seus grilhões.

Note-se de passagem como a estratégia das esquerdas no Brasil – que apostam frequentemente no quanto pior melhor e na sabotagem de projetos que podem beneficiar os trabalhadores apenas porque foram propostos pela oposição – está em franco desacordo com a estratégia preconizada no Manifesto, segundo o qual os comunistas deveriam se aliar às iniciativas que implicassem em melhorias aos trabalhadores. Se a situação dos trabalhadores não é melhor no Brasil e outros subdesenvolvidos, isto foi muitas vezes o resultado da ação míope dos partidos de esquerda, que deveriam ler mais Marx.

Se a agenda política do Manifesto ficou ultrapassada, como ferramenta para a compressão dos eventos históricos e como filosofia da história, tomando as devidas precauções, o materialismo histórico dialético ali esboçado é uma matriz de análise ainda útil para o cientista social. Ele desperta a nossa atenção para os vínculos existentes - entre poder político, relações jurídicas e cultura de uma sociedade e época - com a forma histórica de produção daquela sociedade e época. Para a tendência de que a educação, a justiça, os hábitos e demais elementos superestruturais desta sociedade sejam em grande parte influenciados pelos interesses dos detentores dos meios de produção e de que as ideias dominantes de uma época são geralmente as ideias da classe dominante. Finalmente, de que a oposição entre interesses de classes, frequentemente, é a chave mestra para entender a mudança histórica. Tirados os exageros retóricos – talvez incluídos no Manifesto em razão do propósito incendiário do documento – tratam-se de proposições que fazem sentido do ponto de vista lógico e empírico.

Marx não foi o primeiro a apontar estas relações, mas talvez tenha sido o que mais as enfatizou e desenvolveu em suas análises. É através do materialismo histórico que Marx mostra, por exemplo, o papel revolucionário que a burguesia desempenhou na história, dando um caráter cosmopolita à produção e ao consumo, eliminando os preconceitos medievais, através da revolução contínua da produção e do desenvolvimento da tecnologia: o Manifesto contém uma elegia à burguesia que nem autores liberais ousaram fazer.

Se como filosofia geral da história os conceitos presentes no Manifesto fazem sentido até hoje, o tempo nos mostrou que muitas das proposições ali formuladas estavam equivocadas e que o desejo de mudar o mundo frequentemente oblitera a capacidade de analisar o mundo.

A lista de equívocos, leituras reducionistas e predições caducas no Manifesto é grande e tiveram enormes consequências históricas. A revolução não ocorreu nos países capitalistas avançados, mas em países atrasados como a Rússia e a China. (o caráter não democrático destas experiências talvez dê razão a Marx e Engels, quando afirmavam não ser possível queimar etapas para a revolução...).

O capitalismo do século XIX parecia gerar crises cíclicas de superprodução, mas que com o tempo foram amenizadas com a regulação dos mercados, criação de instituições globais e acesso generalizado à informação. O socialismo real, ao contrário, levou a crises de abastecimento e à subprodução. Um século e meio depois das previsões cataclísmicas, o capitalismo não parece se dirigir a um estado terminal, ao contrário do que vimos ocorrer com a maioria dos regimes socialistas.

Os conflitos nacionalistas e religiosos do último século sugerem, por sua vez, que se a luta de classes é importante, ela está longe de ser o motivo único e exclusivo por traz dos conflitos (algo alias que Marx e Engels jamais afirmaram e é antes a leitura de marxistas de botequim). Em paralelo à identidade de classe, o operário também tem identidades de pátria e de religião, de gênero, de time, de bairro e centenas de outras simultaneamente. Lutam pelo interesse dos animais ou ambientais. Pela igualdade dos gêneros, contra a indústria farmacêutica, pelos direitos LGBT, contra o racismo e antissemitismo, pelos povos indígenas e contra a mutilação genital. Operários americanos são contra a vinda de operários mexicanos e operários protestantes contra a presença de operários islâmicos na Europa. A tal superestrutura e o jogo de interesses parece ser um tanto mais complexo e autônomo do que a pensada originalmente no Manifesto ou pelo materialismo histórico em geral. São “falsas identidades” criadas pela burguesia para enfraquecer a verdadeira identidade de classe? Quem define quais identidades são as mais relevantes?

A história parece ter assim muitos “motores”, para além da luta de classes. As ideologias têm alguma autonomia neste processo. Lideranças carismáticas e mesmo o acaso tem sido frequentemente outros motores independentes. De todo modo, coube a Marx e Engels o papel de mostrar a relevância da luta de classes como um eixo de interpretação frutífero para entender certos momentos da história.

Um dos principais equívocos da doutrina foi o entendimento de que não poderia existir harmonia de interesses entre capital e trabalho e que o jogo seria sempre um jogo de soma zero, onde um ganha aquilo que o outro perde. Este entendimento estava em parte baseado na falsa premissa de que o operário moderno, “em vez de elevar sua posição com o progresso da indústria, desce cada vez mais abaixo das condições de existência de sua própria classe”, o que tornaria a burguesia incapaz de ser classe dominante. Os indicadores econômicos e sociais sugerem que, ao contrário, houve neste século e meio um enorme avanço tecnológico e ganhos de produtividade que foram redistribuídos em benefício de todos (embora certamente mais para alguns e menos para outros...). Não se tratava necessariamente de um jogo de soma zero, mas de um jogo de ganha-ganha, que não dependia da superexploração da mais valia, do pauperismo da classe trabalhadora ou das colônias. É o que observou Shumpeter quando em 1949 escreveu “A Significação do Manifesto Comunista na Sociologia e na Economia”, para o Journal of Political Economy: o crescente peso social e político da classe trabalhadora – diz Shumpeter, “tem sido o resultado da crescente renda real per capita e portanto, a consequência de um desenvolvimento cuja possibilidade mesma o marxismo negava explicitamente”.

Por fim, o Manifesto expressa a ilusão ingênua de que a repressão necessária durante o período de transição do capitalismo para o socialismo desapareceria, depois de implantado o socialismo... O Estado é algo bem mais complexo do que simples comitê gestor dos interesses exploradores da burguesia no capitalismo ou mero gestor das coisas, no socialismo.

A história mostrou que o Estado pode ser utilizado para promover o desenvolvimento econômico e a justiça social, como ocorreu nas sociais democracias ocidentais. Mas também poderia converter-se – como em certos países - numa casta de funcionários autônoma que, mesmo sem a propriedade dos meios de produção - mas através dos impostos, sinecuras, pensões, aposentadorias, indenizações e regalias, persegue seus próprios interesses, em detrimento tanto da burguesia quanto do proletariado. Uma burocracia preocupada apenas consigo mesma, ineficiente, ociosa, elefantina, frequentemente corrupta, um obstáculo ao desenvolvimento econômico e a justiça social, sem os méritos da burguesia para revolucionar a produção nem os méritos do proletariado para inserir na agenda a humanização dos excessos do capitalismo.

Burgueses e proletários ao menos produzem alguma coisa. Através das instituições democráticas, é preciso recolocar o Estado brasileiro em seu devido lugar, de assegurador das condições para o desenvolvimento econômico e da justiça social. Caso contrário, ao invés de burguesia e proletariado, teremos apenas uma casta estamental, detentora de canetas e o do Diário Oficial, vivendo da extração de recursos de uma massa de miseráveis. Se Marx vivesse no Brasil de hoje seu brado talvez fosse, “pagadores de impostos, uni-vos!”.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

O que pensam os especialistas sobre políticas de segurança pública?


As políticas de segurança pública não acompanham a gravidade da situação de segurança no país. Apesar de avanços tímidos nas últimas décadas, parece consenso entre os especialistas e operadores da área de segurança que faltam recursos humanos e materiais, tecnologia, dados, instituições, leis, investimentos, integração, eficiência, transparência, pesquisa. Faltam também conceitos, análises de custo-benefício e políticas baseadas em evidências. Sobram, por outro lado, ideologias e políticas mal concebidas ou mal implementadas, improvisos, interrupções, interesses privados.

A lista de deficiências é enorme e cada especialista é capaz de montar a sua própria facilmente, em minutos. Se o diagnóstico das carências é razoavelmente comum, o que dizer das propostas para melhorar a área de segurança? Existiriam alguns consensos possíveis entre especialistas sobre o que fazer para melhorar? Esta foi a questão que nos propusemos no início deste projeto organizado no âmbito do Espaço Democrático.

Trata-se de uma fundação partidária e neste sentido o propósito do levantamento não é fazer um artigo para uma revista acadêmica – embora seja relevante – mas antes o de tentar sugerir uma agenda mínima comum, lastreada em conhecimento e experiências comuns, que pudesse ser adotada, ao menos em parte, pelos candidatos às eleições de 2018. Queremos propostas que possam influenciar a política de segurança pública e que possam ser defendidas por candidatos de todos os partidos e matizes ideológicos, refletindo a diversidade dos participantes consultados na pesquisa, também oriundos dos mais diversos espectros políticos e ideológicos. Não se trata de uma agenda “de direita” ou de “esquerda” ou pelo menos assim esperamos, quando afastamos da agenda, ao final, as propostas que dividem os especialistas e nos concentramos naquilo em que quase todos concordam.

Existe um descolamento entre a sociedade e os partidos e instituições representativas. Este afastamento também é perceptível na comunidade acadêmica, que prefere frequentemente manter distância – em parte salutar – do debate político conjuntural e da dinâmica governamental. Mas não é possível dar as costas para a política, sob o risco de vermos cada vez mais as políticas de segurança sendo concebidas e colocadas em prática por quem menos conhece o tema. Esperamos que esta iniciativa contribua para estreitar as distâncias entre os mundos acadêmico e político, nos quais coabito há mais de duas décadas.

De uma maneira geral, os 86 especialistas consultados apoiaram a maioria das 89 propostas listadas na pesquisa (73,6% de apoio, somando as categorias totalmente a favor + a favor). Alguns tópicos, contudo, receberam em média mais apoio do que outros e isto é ilustrado de diferentes modos na tabela. As medidas de prevenção foram as que receberam em média maior apoio (88,5%) seguida das propostas de criação de novas instituições e das políticas federais.  Inversamente, as propostas relativas a mudanças legislativas, políticas municipais e com relação às drogas foram as que receberam relativamente menor apoio, embora mesmo nestes casos a porcentagem de apoio tenha sido superior a 50%.





As 89 propostas foram divididas em quatro blocos, de acordo com o grau de apoio dos especialistas: fortemente a favor, a favor, fracamente a favor e contra. No tópico abaixo destacamos algumas propostas dentro de cada bloco.

Os maiores consensos, como esperado, giram em torno de matérias pouco polêmicas ou propostas de “soma positiva”, onde ninguém perde e existem aparentemente um ganho coletivo: políticas preventivas, construção de bases de dados, pesquisas, planos de segurança com requisito para receber recursos federais, etc. Estão aí também algumas das políticas clássicas como policiamento comunitário, penas alternativas, participação da comunidade, que contam com a simpatia generalizada dos analistas.

Duas das medidas mais consensuais lidam com a questão das drogas: diferenciação legal entre usuário e traficante e liberação da maconha para uso medicinal. Chama a atenção o apoio a algumas medidas bastante concretas, como o chip de identificação das armas, bloqueadores de sinais nos presídios, fiscalização das fronteiras, uso das imagens das câmeras do setor privado e a proposta de criação da função do oficial de condicional. Destacaria aqui nesta lista o grande apoio manifestado com relação ao chamado “ciclo completo de polícia”, que os especialistas identificam como um dos aspectos mais problemáticos da existência de duas polícias no país. Existem diversas propostas diferentes de adoção de ciclos completos: por modalidade criminal, por área, por nível de governo, etc. Este aparentemente é um dos grandes temas para a discussão de qualquer reforma séria do sistema de segurança pública no país.

Embora não de modo tão expressivo como no primeiro bloco, parece existir um elevado grau de concordância entre os especialistas com relação as medidas agrupadas no bloco “a favor”. Chama a atenção neste segundo bloco a questão da legalização da maconha, vista com restrições por parte da sociedade, mas bastante apoiada pelos estudiosos do crime. Patente também aqui alguma preocupação com o controle das policias e do sistema prisional. Destaco uma antiga bandeira da área – a criação de um Ministério da Segurança Pública, separado do Ministério da Justiça – que poderia ser o guarda-chuva institucional adequado para avançar diversas destas políticas, muitas delas de alçada do executivo federal.

A maioria destas propostas do terceiro bloco, “fracamente a favor”, recebeu apoio dos especialistas, mas desta vez menos consensual. Significa que são necessários mais debates, pesquisas, avaliações baseadas em evidências, antes de inseri-las numa agenda comum capaz de angariar o apoio generalizado. Estão neste rol o uso das parcerias público privadas, as UPPs, a liberação dos jogos de azar, a adoção da Lei Seca, extinção do Inquérito Policial e outras medidas polêmicas. As medidas de repressão aos pequenos delitos na linha da teoria das janelas quebradas também ficaram nesta categoria, embora existam evidências consistentes de que melhoram a sensação de segurança e podem prevenir crimes mais graves. Note-se que se há consenso sobre a questão da integração das polícias estaduais, ele é menor no que diz respeito à unificação, passo mais radical. O mesmo pode-se dizer sobre as drogas: consenso com relação a legalização da maconha, mas não com relação às outras drogas. E muito embora se reconheça a influência do álcool como fator criminógeno, as opiniões dividem-se sobre o aumento das restrições ao consumo. Destaco aqui as propostas de ampliação do prazo de internação do adolescente infrator autor de crimes graves e do aumento da pena máxima de prisão para além dos 30 anos. Estas questões eram antes quase um tabu entre os teóricos da área, mas atualmente, ao que parece, já divide um pouco mais as opiniões, embora a maioria ainda se posicione contrariamente a elas.

Existem como vimos alguns consensos sobre o que não se deve fazer, reunidos aqui no último bloco, que denominamos “contra”, pois a maioria dos especialistas se manifestou contrariamente a estas propostas. Das 9 propostas que foram classificadas nesta categoria, 5 delas versam sobre modificações legislativas. As maiores oposições aparecem em relação à flexibilização do Estatuto do Desarmamento e à participação das Forças Armadas em ações de garantia da Lei e da Ordem. Também na lista a discordância com relação ao aumento do tempo para progressão de regime, a internação compulsória de usuários crônicos de drogas e a redução da maioridade penal.

Cabe à sociedade, à comunidade acadêmica e ao Congresso discutir e detalhar cada uma das propostas aqui elencadas, entre centenas de outras não mencionadas. Cada uma delas é complexa e mereceria um estudo a parte. Posicionamentos apressados e simplistas como “contra” ou “a favor” manifestados na pesquisa não são inferência segura para a adoção ou rejeição a elas.

Tampouco a intenção da pesquisa era essa. O objetivo antes era dar uma visão panorâmica e genérica sobre alguns dos muitos temas de segurança pública em debate, para que pelo menos possamos intuir, em linhas muito gerais, o que aqueles que se debruçaram durante anos sobre estes temas pensam sobre eles. Muitos temas são polêmicos mesmo entre os especialistas e outros vão frontalmente contra o que manifesta a “opinião pública”, geralmente bem menos liberal do que os acadêmicos com relação a temas como drogas e punição aos delinquentes.

Não se trata muitas vezes de uma agenda popular, assim como não são reforma de previdência, aumentos de impostos, cortes de gastos sociais. Só que as vezes são necessários. Partidos e candidatos que assumam algumas das propostas defendidas pelos especialistas podem perder votos, entre aqueles que preferem a adoção de medidas simplistas para a segurança pública. Mas é aí que se diferenciam os que estão dispostos a discutir seriamente a questão daqueles que simplesmente jogam para a torcida.

E falando de coragem, outro aspecto evidenciado na análise: mais polícia, leis mais duras, mais prisões, parcerias com o setor privado, políticas de tolerância zero, etc. são frequentemente associados a políticas conservadoras no debate político. Mas existem evidências de que algumas delas podem ter -  em certos contextos, se usados com foco e parcimônia, etc., - efeitos positivos para a redução da criminalidade. As respostas, anônimas, sugerem que ao menos uma parcela dos especialistas reconhece este potencial, contrariando a opinião corrente dos seus pares. Aqui também é preciso reconhecer alguma coragem e honestidade intelectual, dos que fogem do politicamente correto com base em evidências de pesquisa.

Aqui apresentamos soluções alternativas, muitas polêmicas e alguma ideia de como são vistas pelos especialistas. Esperamos que os candidatos as levem em consideração nas próximas eleições e que tenham a coragem necessária para defende-las publicamente, mesmo nadando contra a corrente. Por outro lado, como sublinhamos, muitas delas são totalmente palatáveis para a opinião pública e ao mesmo tempo recomendadas por quem se dedica ao tema. Talvez a sociedade, partidos e acadêmicos possam se unir em torno de uma dezena delas, numa agenda comum para avançarmos no enfrentamento da violência e da criminalidade.

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