segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Taxa de esclarecimento de homicídios: o que explica a variação estadual?


O Brasil tem o maior número absoluto de homicídios dolosos no mundo e uma taxa de homicídios mais de três vezes superior à média mundial (5:8), não obstante a queda iniciada a partir de 2017 (Estudo Global sobre Homicídios, 2023, UNODC). Um dos motivos que contribui para isso é a baixa taxa de esclarecimento de homicídios pelas polícias brasileiras – em torno de 40% - mesmo considerando-se que o esclarecimento dos homicídios é em geral superior ao esclarecimento dos crimes patrimoniais. (Onde mora a impunidade, Instituto Sou da Paz, 2024)

A quantidade expressiva de casos concentrados em certas localidades impõe uma tarefa hercúlea para a investigação e a natureza destas mortes, frequentemente ligada à dinâmica criminal, é outro diferencial que explica a baixa elucidação no Brasil. A falta de treino na preservação do local de crime, o medo das testemunhas, a precária coleta de provas e a ausências de bancos de dados balísticos, de DNA, fotográficos, etc. contribuem com sua parcela para que boa parte das mortes continue impune.

A taxa de esclarecimento de crimes é assim um indicador da qualidade da investigação policial, mas também reflete outras circunstancias que são alheias ao esforço policial. De todo modo, trata-se de um indicador clássico de eficiência de polícia judiciária e que não está disponível nas estatísticas policiais nacionais. Por este motivo, o Instituto Sou da Paz passou a coletar os dados para o monitoramento do indicador solicitando informações diretamente dos Estados, nos últimos  anos.

A tabela abaixo traz a taxa de esclarecimento de casos mais recente para cada Estado coletada nas pesquisas Onde Mora a Impunidade, realizada pelo Sou da Paz, e uma classificação em três níveis criada por mim com base nestas taxas. Os dados para AL, MA e TO foram estimados com base na média regional (31% para NE e 45% para N), uma vez que estas unidades não forneceram dados para a pesquisa. O esclarecimento médio baseando nos valores da tabela ficou em 47,6%, (diferente do obtido pelo Sou da Paz, que não estimou valores para os Estados ausentes) variando de 9% no RN a 90% no DF, sugerindo que há muita variação entre os Estados.


Analisando-se a série histórica enviada pelos Estados notamos que existe muita variação anual nas estimativas, de modo que preferimos trabalhar aqui com três grandes categorias – baixo, médio e alto esclarecimento – ao invés de se fiar nas quantidades estimadas. Como é possível notar pela tabela, a maioria dos estados com baixo esclarecimento parecem vir do Nordeste e na categoria de alto esclarecimento vemos Estados do Sul e Centro Oeste. Nenhum Estado do Sudeste está na categoria alto esclarecimento e o RJ aparece na categoria baixo esclarecimento. Vemos assim que Região do país – e suas desigualdades econômicas e sociais - explica em parte esta distribuição, mas parece também deixar muita coisa de fora.

O que pode explicar estas diferenças tão dispares? O IBGE divulgou recentemente a pesquisa Estadic 2024, com inúmeras características do sistema de justiça criminal dos Estados, algumas delas potencialmente relacionadas, direta ou indiretamente, a taxa de esclarecimento de homicídios, tais como Região do país, se a PM e a PC tem tiveram cursos de preservação do local do crime em 2022, se a Perícia é desvinculada da Polícia Civil, se existe algum programa de prevenção ou para a redução de homicídio, entre outras. Dos 27 Estados, apenas 1 (Rondônia) recusou-se a responder à pesquisa do IBGE deste ano. Adicionamos também a base alguns indicadores criminais do Atlas Brasileiro de Segurança Pública, como taxa de homicídios estadual, taxa de armas de fogo apreendidas, despesa per capita em segurança, tamanho da população no sistema penitenciário por 100 mil hab., etc.

Para investigar que variáveis podem estar associadas ao nível de esclarecimento, optamos por utilizar uma rede neural perceptron, dado que a amostra é pequena (26 UFs) e a rede neural faz menos exigências com relação à distribuição e linearidade dos dados. No total incluímos 8 variáveis no modelo, sendo 5 fatores e 3 co-variáveis. Todas as variáveis foram normalizadas e utilizamos a tangente hiperbólica como variável de ativação. Softmax foi utilizada como função de ativação final (sete camadas ocultas resultaram do modelo) e entropia cruzada foi selecionada como função de erro, uma vez que nossa variável dependente é categórica com 3 níveis (baixo, médio e alto).

O resultado da predição foi de 89% para a amostra de treinamento e de 85,7% na amostra de teste. O erro de entropia cruzada é de 3.893, se considerarmos a predição da amostra de testes e a porcentagem de predições incorretas, de 14,3%


O modelo parece portando prever adequadamente se um Estado pertence a um nível, baixo, médio ou alto de esclarecimento. Significa dizer que as variáveis incluídas no modelo estão associadas com o desempenho do Estado no esclarecimento dos homicídios. Todas as variáveis independentes dão alguma contribuição razoável para a predição, o que significa dizer que estão associadas ao fenômeno.

O perceptron multicamada fornece excelente capacidade de modelar relações complexas, mas sua falta de interpretabilidade em termos de coeficientes e sinal da associação é uma limitação inerente ao método.

No perceptron, os pesos associados às conexões entre os neurônios são ajustados para minimizar um erro (como a função de perda softmax), mas esses pesos não têm um significado interpretável em termos de impacto direto, pois os pesos são combinados de maneira não linear (após passar por funções de ativação, como tangente hiperbólica, usada no nosso modelo). Eles não estão vinculados a uma relação explícita entre entrada e saída. Redes neurais capturam interações complexas e não lineares entre variáveis. A relação entre uma entrada e a saída pode depender do contexto das outras entradas. Isso contrasta com modelos lineares, onde o efeito de cada variável é independente das outras. Em redes multicamadas, como a utilizada aqui, os pesos são ajustados em várias camadas (7, no modelo), e o efeito final de uma entrada na saída é distribuído por múltiplas operações e ativações intermediárias. Assim, o impacto de uma variável não pode ser rastreado diretamente até a saída, e o sinal de sua associação não é evidente.

 

Em resumo, o modelo é bom para classificar e prever, mas não é possível interpretar o sinal da relação entre as variáveis. Uma solução alternativa é rodar um modelo de regressão linear simples e observar o sinal das associações. Assim, quando falamos abaixo no sentido ou sinal da associação entre as variáveis estamos no baseando no sinal obtido através da regressão e não da rede neural. A título de curiosidade, a regressão seleciona como bons preditores praticamente as mesmas variáveis da rede neural: região, se o Estado tem um programa estadual de prevenção de homicídios, taxa de homicídios dolosos, taxa de população carcerária, curso de preservação de local do crime, taxa de armas de fogo apreendidas e despesa per capita em segurança.

Ao contrário de modelos estatísticos tradicionais, as redes neurais não possuem coeficientes diretamente interpretáveis. O SPSS desenvolve um processo pós-hoc para inferir a importância relativa das variáveis com base nos pesos e nas interações dentro do modelo. A contribuição total de cada variável é uma combinação ponderada de todos os caminhos possíveis entre a variável de entrada e a saída. Na tabela abaixo vemos esta “importância normalizada” onde a variável mais relevante equivale a 100% e as demais são comparadas a ela.

Passando para a análise dos resultados: Região é significativo, com as taxas de esclarecimento no Centro Oeste sendo claramente superiores às demais regiões. Estar no Centro Oeste aumenta, portanto, a probabilidade de pertencer ao grupo de alto esclarecimento.

A presença de algum programa de prevenção e ou redução de homicídios no Estado tem igualmente um efeito notável e aumenta a probabilidade do Estado ter uma taxa de esclarecimento mais elevada. O esclarecimento é maior onde o poder público parece se preocupar mais com a questão, o que pode implicar em maiores recursos para a investigação de homicídios.

A existência de Curso de Preservação do local do crime para a Polícia Civil e para Polícia Militar é relevante – especialmente na PC e o sentido é positivo: ou seja, Estados com cursos deste tipo em 2022 apresentam maiores taxas de esclarecimento.

O impacto da Perícia Oficial independente, no entanto, vai ao sentido contrário ao esperado: Estados onde a Perícia tornou-se independente da Polícia Civil tem taxas de esclarecimento inferiores aos demais. A ideia é que a autonomia financeira e administrativa das perícias contribuísse para seu desempenho, mas no caso do esclarecimento dos homicídios esse efeito foi contrário. É preciso tomar cuidados com variáveis omitidas, pois as perícias tendem a se tornar autônomas nas grandes corporações dos maiores Estados.


A taxa de apreensão de armas de fogo no Estado parece relevante e o sentido é positivo: quanto maior a taxa de apreensão de arma (geralmente tarefa da PM), maior também a taxa de esclarecimento de homicídio. Se pensarmos na apreensão de armas como um indicador de atividade policial, faz sentido pensar que ambas as grandezas caminhem juntas. Ambas podem ser o reflexo de alguma política de combate aos homicídios implementada no Estado, como vimos, focando tanto na retirada de armas em circulação quanto na investigação de casos.

Por algum motivo pouco claro, quanto maior a taxa de presos no sistema penitenciário do Estado, maior a probabilidade dele pertencer aos grupos de médio ou alto esclarecimento de homicídios. Ambas as dimensões estão relacionadas com a diminuição da impunidade.

Por outro lado, uma taxa de homicídios elevada, diminui a probabilidade de esclarecimento: este sinal negativo faz sentido se pensarmos que o baixo esclarecimento estimula a ocorrência de mais homicídios. Como já observamos, as menores taxas de esclarecimento encontram-se hoje no Norte e Nordeste, precisamente as regiões que apresentam as maiores taxas de homicídio. No sentido inverso, um alto esclarecimento passa a mensagem de rigor na apuração e desestimula o cometimento de novos homicídios, além de incapacitar ofensores contumazes.

A intenção não é esgotar todas as possibilidades de interpretação, mas sugerir que maiores ou menores índices de esclarecimento de homicídios não são aleatórios. Algumas variáveis independem do poder público (como a natureza dos homicídios), mas outras estão sob sua alçada. Os dados sugerem que o foco na questão da redução dos homicídios – como um programa estadual com este objetivo, maior apreensão de armas, cursos de preservação de local, diminuição da impunidade, etc., - podem trazer efeitos benéficos sobre as taxas de esclarecimento. É preciso recursos e liderança para enfrentar o problema. E é possível aprender com a experiência dos Estados com elevados índices de esclarecimento.

 

 

terça-feira, 12 de novembro de 2024

A pesquisa Estadic do IBGE e a heterogeneidade organizacional das policias estaduais

 


Estados e municípios em diferentes regiões e contextos enfrentam problemas criminais diferentes e não existe uma forma única de organização das forças de segurança para lidar com todos eles. É natural encontrarmos arranjos institucionais diferentes Brasil adentro, não obstante algumas tendências uniformizadoras, como a Constituição, Leis orgânicas das polícias, Conselhos Nacionais de polícia e orientações do Ministério da Justiça. Em realidade, temos defendido que a desconstitucionalização do tema no art. 144 permitiria a emergência de mais e melhores arranjos institucionais, como por exemplo policiais estaduais únicas e de ciclo completo.

Mas quanta heterogeneidade temos nestes arranjos estaduais e em quais aspectos? A pesquisa Estadic do IBGE é realizada esporadicamente e procura levantar alguns destes aspectos junto aos Estados, assim como a Munic faz com relação aos municípios. A Estadic pergunta sobre a estrutura da segurança pública, como secretarias, conselhos, fundos, planos estaduais, ouvidorias, treinamento, efetivos e dezenas de outras características. No artigo levanto algumas das heterogeneidades que acho interessantes destacar e outras que me parecem preocupantes, se pensarmos num padrão mínimo ao qual todas as organizações deveriam atender.

Destaque-se em primeiro lugar que nem todas as Secretarias estaduais têm os mesmos órgãos subordinados. Em 13 delas há um departamento de trânsito (DETRAN), mas em quase a outra metade (12) o departamento de trânsito não faz parte da SSP, o que sugere que provavelmente a gestão do trânsito passou a ser independente da polícia. Problemas de corrupção sistêmica nos DETRANS – como a venda de habilitação e anulação de multas - tem levado nos últimos anos à sua separação das Policiais Civis, igualmente afetadas pela corrupção.

A gestão da Administração Penitenciária é responsabilidade da Secretaria de Segurança em 9 Estados e área independente de gestão em 16 deles. Os mesmos números aparecem no caso da Defesa Civil, com 9 Estados colocando a tarefa sobre a égide da SSP e 16 sob outros guarda-chuvas – como a Casa Civil ou Palácio - ou estruturas próprias. Como sugeri alhures, o aumento da frequência e seriedade das crises climáticas deve tornar as Defesas Civis cada vez mais técnicas e aparelhadas para lidar com o problema, tirando-as da organização policial e da gestão pelos bombeiros. O crescimento intenso da população prisional em todos os Estados, por sua vez, tem levado à criação de outras formas de gestão – inclusive gestão privada ou pela sociedade civil – geridas por secretarias próprias para o setor.

Assim, parece existir um “núcleo duro” nas Secretarias estaduais de segurança, formado por Polícia Civil, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Perícia e outros órgãos ou funções subsidiárias que a SSP assume ou não, conforme o caso. Quando o volume e o problema são grandes demais – caso do trânsito, corrupção no Detran,  administração de presos ou defesa civil – muitos Estados tem procurado dar recursos e estruturas próprias para a execução destas tarefas. O volume e seriedade destes problemas pode variar muito regionalmente e faz sentido que o poder público se adapte a estas circunstanciais.

Pode-se dizer o mesmo com relação às modalidades de policiamento ostensivo, onde existe bastante heterogeneidade entre as polícias militares. Algumas modalidades são praticamente universais – como o policiamento rodoviário, ambiental, escolar, de trânsito, comunitário, operações especiais, choque, policiamento com cães, enquanto outras são menos comuns – como policiamento aéreo, turístico, fluvial, montado e policiamento de fronteira. Novamente aqui, cabe aos Estados adaptarem-se segundo as características e preferências regionais – embora o governo federal possa estimular a existência de alguma modalidade em particular, de modo universal, como policiamento comunitário.

Por outro lado, existem arranjos que deveriam ser universais, quesitos mínimos, independente de contextos regionais. Sete Estados afirmam na pesquisa do IBGE que a produção de estatísticas não é regulamentada ou normatizada por documento legal, como resoluções ou decretos, o que denota uma fragilidade institucional da prática, que poderia ser abolida por futuras gestões. Em troca de recursos federais, poder-se-ia cobrar dos Estados um mínimo de produção e transparência com relação às estatísticas criminais, definidos em lei ou decretos estaduais.

Os conselhos estaduais de segurança têm na maioria representação preponderantemente governamental (23 UFs) e 24 deles tem natureza apenas consultiva. Metade dos Conselhos se reuniu 4 ou menos vezes no último ano. Apenas 4 estados responderam que os Conselhos tem dotação orçamentária própria. Seria recomendável aqui também alguma sugestão federal para homogeneizar a estrutura, funções e funcionamento dos Conselhos, de modo a garantir que sejam representativos e atuantes ao invés de subservientes ao governo de plantão, como geralmente são.

Com relação ao treinamento da Polícia Militar, em 23 casos ele é administrado pela própria instituição e em apenas 5 casos por outras instituições. Dos 27 Estados, 22 não realizam o curso de formação de oficiais de forma integrada com a Polícia Civil. É preciso caminhar aqui tanto no sentido da abertura para a formação policial, ao menos parcialmente, por instituições acadêmicas externas, quanto no sentido da integração da formação dos quadros superiores, pelo menos na cúpula das duas polícias.

Todas as PMs mantem um serviço de atendimento e despacho de ocorrências, mas em 12 UFs não é feito o georeferenciamento das chamadas recebidas e 7 delas não georeferenciam a localização das viaturas. Georeferenciamento é hoje um ferramental básico de gestão e trata-se de um desperdício desprezar este tipo de informação para fins operacionais, táticos e estratégicos. Com a geolocalização de chamados e viaturas, é possível, por exemplo, identificar qual a viatura disponível mais próxima da ocorrência, informação elementar para a otimização do atendimento. Ou identificar hot spots, usados numa modalidade de policiamento mais efetiva (policiamento por hot spots) e cuja existência não foi pesquisada na Estadic.

Em alguns Estados (7) o registro de ocorrências da PM ainda é feito total ou parcialmente de forma manual e em 8 Estados o sistema de registro não é integrado ao sistema estadual de registros. Novamente aqui, é impensável convivermos com etapas manuais de registro quando as polícias lá fora já utilizam IA para auxílio ao preenchimento dos registros. Caberia incentivar também, a integração entre os sistemas policiais estaduais, uma vez que no falido sistema de policiamento bipartido as polícias estaduais sonegam informação uma das outras e ambas do governo federal e das guardas municipais.

No que respeita a qualidade de vida dos policiais, algumas das PMs estaduais (8) ainda não disponibilizam assistência à saúde mental dos profissionais e apenas 6 providenciam seguro de vida ou seguro de acidentes (5). Alguns problemas de saúde, como depressão, suicídio, alcoolismo, afetam desproporcionalmente os agentes de segurança e seu bem estar físico e mental é importante tanto para eles como para garantir o atendimento à população.

Com relação à Polícia Civil, em 14 Estados a perícia é vinculada a esta e em 12 Estados existem perícias independentes da Policia Civil, separação proposta para garantir a independência de recursos e de gestão da polícia técnico científica.  Como no caso da PM, os cursos de formação são na maioria dos Estados (19) administrados pela própria instituição, em academia próprias, com pouco contato com instituições acadêmicas ou professores externos. Em 4 UFs o registro das ocorrências policiais ainda é realizado de forma ao menos parcialmente manual. Em apenas 10 Estados o sistema informatizado de ocorrências é unificado ao da PM. Com relação à assistência aos profissionais, apenas 11 dão alguma forma de assistência à saúde e 19 delas afirmam dar algum tipo de assistência à saúde mental. Somente 6 UFs dão seguro de vida aos policiais civis e só 3 UFs tem seguro de acidentes.

Do lado positivo, a maioria dos Estados mencionou que recebe recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública. Isto significa é que possível utilizar os recursos do Fundo como moeda de troca para estimular a adoção de algumas medidas uniformemente pelos Estados. O governo federal quer estipular diretrizes nacionais para polícias e guardas municipais. A pesquisa Estadic e seu diagnóstico sugere uma agenda importante de diretrizes que poderiam ser estipuladas, como condição para o recebimento de fundos federais. Como por exemplo:

- Obrigatoriedade do modelo de policiamento comunitário em todas as polícias estaduais e guardas municipais;

- Independência funcional das Polícias Técnico Científicas das Polícias Civis, garantindo a estas recursos físicos e humanos próprios e a gestão autônoma destes recursos;

- Formalização em documento legal estadual da produção de estatística, estipulando indicadores mínimos, periodicidade, nível de desagregação, transparência e outros critérios mínimos;

- Criação e padronização mínima dos Conselhos Estaduais de Segurança, estimulando representação paritária ou majoritariamente civil, papel deliberativo, recursos próprios e outras condições de funcionamento;

- Maior permeabilidade dos cursos de formação policial ao mundo acadêmico externo e cursos integrados para as duas polícias, em todos os níveis;

- Georreferenciamento de todos os registros policiais que contenham informações espaciais relevantes para a gestão das ocorrências. Sistemas devem ser 100% informatizados e integrados – ou pelo menos com acesso ilimitado garantido – entre as duas polícias.

- Com exceção de informações sensíveis, governo federal e guardas municipais devem ter acesso amplo aos registros dos sistema estaduais de ocorrências das duas polícias,  para fins de planejamento e avaliação de polícias de segurança;

- Disponibilização de assistência à saúde física e mental e seguro de vida e acidentes aos policiais;

A Estadic nos mostra a heterogeneidade existente na estrutura e funcionamento da segurança pública estadual, algumas recomendáveis e outras nem tanto. A PEC da Segurança está propondo a constitucionalização e a unificação dos fundos nacionais de segurança e preocupada com a uniformização de alguns aspectos da organização da segurança em nível nacional. Um fundo robusto e diretrizes claras e bem definidas, estabelecidas em comum acordo com as forças de segurança, podem ajudar neste objetivo.

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Defeitos e virtudes da PEC da Segurança pública

 


Sociólogo Tulio Kahn, especialista em segurança pública, comenta pontos da proposta do governo federal

Tulio Kahnsociólogo e colaborador do Espaço Democrático

Edição Scriptum

O governo federal reuniu um grupo de autoridades para apresentar sua proposta de PEC para a segurança pública. Por si mesma, a iniciativa de assumir mais responsabilidades sobre a segurança pública e convidar os governadores para discutir a questão deve ser elogiada.

Como toda proposta de mudança nesta esfera, a PEC da segurança tem aspectos positivos e negativos. Em alguns pontos ela propõe medidas radicais – que correm o risco de não serem aprovadas – e em outros, lida com aspectos pouco relevantes do ponto de vista da redução da criminalidade. É preciso esperar para ver o que restará da proposta original quando for debatida e modificada pela sociedade e pelo Congresso, para avaliar seu impacto.

Entre outros pontos, a PEC propõe constitucionalizar o SUSP e os fundos unificados de Segurança e Penitenciário, medida que pode garantir maior segurança institucional a estas regras, evitando que sejam extintos em futuras gestões. Mas a unificação dos fundos nacionais (o FUNAD ficou de fora da PEC) poderia ter sido acompanhada de um incremento considerável no montante, apontando, claro, de onde viriam os recursos, sempre escassos. O problema principal dos fundos nacionais não é contingenciamento de recursos, mas o seu volume insignificante, além da falta de bons projetos.

Assim, estes fundos nacionais robustos seriam a cenoura para que os Estados seguissem as diretrizes nacionais, em vez de propor a obrigatoriedade para os Estados, como sugerido na PEC, item que dificilmente passará no Congresso como está formulado e que tem provocado resistência natural por parte dos governadores e das polícias. Trata-se de um cheque em branco, uma vez que não há como saber o que seriam estas diretrizes nacionais. E um risco, pensando em diretrizes federais como as que já vimos. Esta é a parte “radical” da proposta e que tem a função de transmitir a mensagem de que o governo federal quer fazer alguma coisa, mas a legislação atual não deixa. Ninguém, nem mesmo o governo, acredita na sua viabilidade – mesmo se o governo federal viesse a assumir todos os enormes custos da segurança, o que está longe de fazer (governo federal participa com apenas 1,6% dos gastos em segurança pública, segundo o Anuário FBSP, de 2023).

Do lado menos radical da PEC estão os projetos como unificação de documentos de identidade, padronização de registros policiais, unificação de procedimentos policiais etc. iniciativas que se arrastam pelos corredores do Ministério da Justiça desde a minha época (2002) e nem precisariam de uma PEC para serem levados a cabo. Mas são ideias que continuam pertinentes, de baixo impacto (assim como o policiamento das hidrovias…) e que não devem enfrentar maiores oposições dos Estados ou do Congresso.

Deixando de lado as propostas mais radicais e pouco realizáveis e as propostas de menor impacto, temos um grupo de propostas que são ao mesmo tempo relevantes e politicamente viáveis. Refiro-me aqui, por exemplo, à ideia de ampliar e explicitar as competências da PF/PRF para atuar em defesa do patrimônio federal, nos crimes ambientais, de milícia ou interestaduais, que me parecem o elemento mais relevante do pacote, uma vez que atribuem novas e relevantes tarefas aos órgãos federais. A PRF conta com mais de 12 mil policiais, um orçamento superior à soma dos fundos nacionais (R$ 4,8 bilhões), mas tem funções constitucionais bastante limitadas, que poderiam ser ampliadas. Eu incluiria neste rol de funções algumas atribuições atuais das Forças Armadas sobre a fiscalização de armas e proprietários, que as FAs não têm realizado a contento. Estas novas atribuições exigem mudanças constitucionais e precisarão de apoio no Congresso. Devem enfrentar resistências da bancada da bala e das polícias estaduais, que temem perder poder, mas acredito que possam ser aprovadas, se houver consenso na sociedade sobre sua importância e muita negociação.

Gostaria de me deter sobre o que penso ser um equívoco conceitual da proposta, que assume que o modelo atual de segurança estadual é “efetivo” e tenta emulá-lo em nível federal. Assim, segundo a justificativa da PEC, “cumpre ressaltar que os Estados da Federação e o Distrito Federal atuam na área de segurança pública por meio de duas forças policiais distintas: polícia judiciária e polícia ostensiva… Esse modelo, considerado efetivo nos Estados, merece ser replicado no âmbito federal.” Ouso dizer que não merece.

O que o governo percebe como mérito talvez seja justamente o cerne do problema de segurança brasileiro. O modelo de duas polícias (com duas “meias polícias” ou quatro quartos de polícias, se considerarmos as divisões de castas dentro de cada uma delas) é apontado por quase todos os especialistas em segurança como um fracasso em comparação com o modelo de polícia única e de ciclo completo – O que pensam os especialistas, 2017 e 2019. As polícias estaduais competem entre si, não compartilham informações, têm estruturas redobradas e conflito de competências, não investigam nem previnem crimes, são impregnadas pela corrupção e violência sistêmicas etc. Pelo menos alguma parte destas mazelas é responsabilidade da inexistência de uma polícia única de ciclo completo.

A maioria dos policiais também percebe o problema e é favorável à polícia e carreira únicas e aprovam a ideia de poder alternar entre atividades judiciárias e ostensivas. Na pesquisa com especialistas – incluindo policiais civis e militares – realizada em 2017, 31,5% dos entrevistados se disse fortemente a favor da unificação e 28,7% a favor, somando os favoráveis à medida 60,2% (Kahn, Apontamentos para a reforma da segurança pública no Brasil, 2018). Corroborando as pesquisas feitas com especialistas e com a população sobre o tema, a maioria absoluta (70%) dos 5.600 policiais entrevistados em pesquisa sobre modelo de polícia de 2019, apoiou a unificação das policiais estaduais. Apenas 8% disseram que as polícias deveriam ser totalmente separadas ou ficar como está atualmente. Finalmente, 21% afirmaram que deveria existir maior integração entre as polícias. Parece haver um consenso de que existe pouca integração e em torno do desejo da unificação, quando analisamos o total da amostra (Kahn, Tulio, Seis teses equivocadas sobre a criminalidade brasileira e outros escritos, 2019).

Opinião sobre a unificação e alternativas

                                                    Fonte: Pesquisa Unificação das Polícias / Fundação Espaço Democrático

O governo federal pode aproveitar a oportunidade para criar uma polícia federal única de ciclo completo – juntando numa mesma força a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Penal Federal. A Força Nacional de Segurança Pública teve sua existência ignorada na PEC, o que é uma evidência de que poderia ser tranquilamente extinta, assim como a Polícia Ferroviária Federal, caso esse novo modelo de polícia federal venha a ser criado.

Nesta força federal unificada de ciclo completo, gerenciada por um Ministério da Segurança exclusivo, adotar-se-ia o ingresso único por baixo, com ascensão aos postos superiores apenas mediante cursos e concursos para progressão, extinguindo-se a carreira dos delegados bacharéis, tal como se dá atualmente na PRF. O projeto ainda está em discussão no governo e será debatido no Congresso e pela sociedade. Creio que uma mudança nesta direção seria um legado estruturante da atual gestão (cujo ministro, gosto de lembrar, foi meu professor).

Essa polícia federal unificada poderia ser o modelo para eventualmente ser reproduzido nas polícias estaduais algum dia – desconstitucionalizando-se o modelo bipartido atual, engessado no art. 144, ao invés de trocar o nome da PRF para POF. Se a intenção é criar um sistema único e integrar as organizações policiais, o governo federal poderia começar integrando as suas próprias polícias.

O País precisa de mudanças impactantes na área da segurança. Temos visto algumas poucas, desde que o governo federal passou a se dedicar com maior intensidade ao tema. Exemplos de mudanças estruturantes na segurança em âmbito nacional foram, na minha seleção pessoal:

1) A criação da Senasp, em 1997.

2) A criação do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Plano Nacional de Segurança Pública, em 2000.

3) A criação do Estatuto do Desarmamento em 2003.

4) A criação do SUSP, sua forma de financiamento via loteria e a criação do Ministério da Segurança, em 2018 – infelizmente de pouca duração.

5) A abolição da legislação bolsonarista sobre armas, em 2022.

A PEC da Segurança de 2024 é ousada em vários aspectos e pode servir de base para discutir temas importantes. Contribui em maior ou menor medida para a criação e aperfeiçoamento das medidas 2, 3 e 4, o que me garante algum crédito, acredito, como razoável formulador de políticas públicas de segurança estruturantes. Ficam aí algumas sugestões para o aperfeiçoamento da proposta federal.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Todo ano reuno os artigos divulgados nas redes sociais em formato de livro digital, o que explica meus 27 livros na Amazon ! Em 2024 já são 190 páginas de análises criminais, falando sobre crime organizado, homicídios, sistema prisional, segurança pública municipal e outros. Os artigos são recheados de novos dados e lançam mão de diversas metodolgias de pesquisa. Segue o link para quem perdeu algum deste ano! Segue o link ou busque na Amazon! https://www.amazon.com.br/Notas-criminalidade-seguran%C3%A7a-p%C3%BAblica-Brasil-ebook/dp/B0DL6L87S8?ref_=ast_author_dp&dib=eyJ2IjoiMSJ9.cqPaQPdJ-T1e92KXwRvC7Ak7hNlTGSQDNa6Gq6vZ1A6p1OLPv5-iOXWkSWJaHgGOZXJOsOfzLZvSFRVFJ13SSQY7IgxK7ecAaAtWvdh6BHQV1mgO_lzmpa0DvSovX0Wf1jJQKSEw3WuYWtEwxbPQKCGA1x2dY7gp4mjyGo8JMCw9IghppLgi-R7PqnfU5Fdwy4so-M3U5-pI0mUS_hgl6GRWEBjCVJpUE3YbYRfkcJ4.9KybHizAr7wKGmy5xsECGsX--6Rla2BghbE5K5UqA3I&dib_tag=AUTHOR

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Análise de dados para Segurança Pública

O objetivo deste curso é mostrar algumas ferramentas de análise que tenho utilizado para fazer minhas próprias análises criminais e outras análises quantitativas e qualitativas nos últimos 25 anos.


Não se trata aqui de um curso de análise criminal tradicional mas sim de um curso que apresenta ferramentas úteis para o analista criminal. O foco é nas ferramentas e em como montar uma base e os recursos das ferramentas para a posterior análise criminal.

Estaremos ensinando a coletar dados de páginas web, montar formulários on-line para coleta de dados, construir nuvens de palavras, fazer mapas tipo LISA, coletar dados do facebook, analisar redes sociais através de redes de relacionamento, fazer regressões simples em machine learnings, visualizar dados num B.I e outras técnicas interessantes.

Não é preciso de grandes conhecimentos em estatística ou programação para manusear os programas mostrados, mas é preciso sim conhecimento prévio nestas áreas para saber o que se pode extrair dele

Os módulos do curso de métodos e técnicas de análise de dados com ênfase em análise criminal, conforme a estrutura apresentada, são os seguintes:


O curso de análise de dados com ênfase em criminalidade capacita na coleta, análise e visualização de dados criminais, com módulos essenciais: Coleta de Dados (técnicas como raspagem web, construção de formulários e uso de robôs de chat para automatizar a coleta); Análise Qualitativa (ferramentas para interpretação de discursos, nuvens de palavras, e classificação de sentimentos com QDA Miner); Análise Quantitativa (estatísticas, regressões e análise fatorial); Séries Temporais (previsão com ARIMA e suavização); Análise Espacial (mapeamento e Moran I); Análise de Redes (Gephi e Node Excel) e IA Generativa (uso do ChatGPT para análise).


https://hotmart.com/pt-br/marketplace/produtos/metodos-e-tecnicas-de-analises-de-dados/R40903062C?sck=HOTMART_SITE&search=7847fd49-70ef-4097-ad63-855838538001&hotfeature=33

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Criminalidade e ilegalidade na Amazônia


Estudo do sociólogo Tulio Kahn analisa a possível relação entre o crescimento rápido e desordenado da região e o aumento da ação de criminosos


 https://espacodemocratico.org.br/publicacoes/documento-ilegalidade-e-criminalidade-na-amazonia/https://espacodemocratico.org.br/publicacoes/documento-ilegalidade-e-criminalidade-na-amazonia/

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Estamos preparados para enfrentar os eventos climáticos extremos?

 

Os eventos climáticos extremos no Brasil estão se agravando, em linha com as tendências globais de mudanças climáticas. Vários fatores contribuem para essa intensificação, incluindo o aumento da temperatura média global, a variabilidade climática e a degradação ambiental, como o desmatamento da Amazônia.

Dados do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) indicam que as temperaturas médias no Brasil têm aumentado gradualmente ao longo das últimas décadas. O aumento da temperatura contribui para a intensificação de fenômenos como ondas de calor e secas severas. Fenômenos cíclicos como El Niño e La Niña têm sido exacerbados pelas mudanças climáticas. O El Niño, por exemplo, tende a agravar as secas no Nordeste e aumentar o risco de incêndios na Amazônia, enquanto o La Niña pode intensificar as chuvas no Sul e Sudeste.

Segundo levantamento do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), dos 12 meses do ano de 2023, nove tiveram médias mensais de temperatura acima da média histórica (1991/2020), com destaque para setembro, que apresentou maior desvio (diferença entre o valor registrado e a média histórica) desde 1961, com 1,6ºC acima da climatologia de 1991/2020https://portal.inmet.gov.br/noticias/ano-de-2023-%C3%A9-o-mais-quente-da-hist%C3%B3ria-do-brasil#:~:text=Fonte%3A%20Inmet.&text=De%20acordo%20com%20a%20vers%C3%A3o,at%C3%A9%20outubro%20do%20ano%20passado.

É possível conjecturar que o aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos explique em parte o aumento dos atendimentos dos bombeiros nos últimos anos, indicador que passou a ser monitorado pelo SINESP /MJ. Nos gráficos abaixo vemos as séries temporais de registros de combate a incêndio e de busca e salvamentos realizados pelos bombeiros entre 2015 e 2024, tomando o período de janeiro a julho de cada ano. A melhora dos registros e da notificação pode afetar estes indicadores e seria preciso detalhar as informações para verificar se de fato estes registros estão ligados aos fenômenos das secas e inundações mais frequentes.

 De toda forma, de acordo com os dados do Sinesp, os registros de incêndio teriam aumentado 157% no período. As maiores concentrações estão nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas, o que sugere que os dados refletem em parte o nível de organização das corporações estaduais voltadas para o fenômeno.

As buscas e salvamentos, por sua vez, cresceram 68,7% no período, novamente com concentrações no Rio, São Paulo e Minas. Mais uma vez, a incidência sugere que os registros estão antes ligados às atribuições que os bombeiros exercem em cada Estado e sua capacidade de atuação, talvez mais do que à incidência dos fenômenos relacionados às secas e inundações.

Como quer que seja, o crescimento dos registros de incêndios e salvamentos – estando ou não relacionado à intensificação dos eventos climáticos – aponta para a necessidade de repensar a estrutura dos corpos de bombeiros estaduais e dos órgãos de defesa civil, que deverão ser cada vez mais exigidos. Pelo que vimos pela distribuição dos registros do Sinesp, muitos bombeiros enfrentam escassez de recursos humanos, financeiros e tecnológicos, o que limita sua capacidade de atuação, especialmente em estados com menor arrecadação fiscal. Os órgãos de Defesa Civil padecem frequentemente dos mesmos problemas.

As secas prejudicam a produção agrícola e a segurança hídrica, enquanto inundações causam prejuízos a infraestrutura urbana e deslocam milhares de pessoas. Além disso, esses eventos têm custos significativos para a economia, com perdas agrícolas, destruição de infraestrutura e aumento dos gastos públicos para mitigação e recuperação. Os bombeiros e Defesas Civis estaduais estão preparados e dimensionados para enfrentar estes novos desafios?

Estes órgãos estão voltados primordialmente para a pós-crise, a coordenação de ações de respostas, enquanto a sociedade precisará cada vez mais de políticas públicas de mitigação, adaptação e conservação  para enfrentar esses desafios.

As Defesas Civis estaduais no Brasil são responsáveis pela coordenação, planejamento e execução de ações voltadas à proteção da população e à minimização dos danos causados por desastres naturais ou tecnológicos. Elas operam dentro do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC), que organiza e articula os órgãos de defesa civil em todos os níveis de governo – municipal, estadual e federal – e também entre a sociedade civil e o setor privado.

O problema que as Defesas Civis estaduais são frequentemente parte das Secretarias de Segurança Pública ou de outras pastas relacionadas à gestão de emergências, variando de estado para estado. Elas estão por vezes, subordinadas ao Gabinete do Governador, a Casa Militar ou a secretarias específicas, mas raramente são secretarias independentes, com recursos e pessoal próprios. Frequentemente são geridas por Policiais Militares ou Bombeiros, especializados, por formação, nas tarefas de resposta aos desastres.

Todavia, uma das funções primordiais das Defesas Civis estaduais é a prevenção de desastres. Isso envolve, entre outras atividades, a criação de mapeamentos de áreas de risco, monitoramento de fenômenos meteorológicos (em parceria com o INMET e outras instituições) e a promoção de políticas públicas voltadas à redução de riscos, como obras de infraestrutura (barragens, diques, drenagem) e o reassentamento de populações em áreas vulneráveis. Elas têm tarefas importantes no âmbito da coordenação dos órgãos municipais e da coleta e análise de dados.

Ao que me parece, frente aos desafios atuais e futuros, tanto bombeiros quanto os órgão de Defesa Civil estão subdimensionados e mal concebidos para lidar com o agravamento da situação climática e dos desastres naturais e humanos. Talvez seja o momento de repensar o SIMPDEC, elevar o status hierárquico das Defesas Civis dentro das estruturas dos governos, providenciar orçamentos próprios e robustos para o desenvolvimento de suas atividades, escolher gestores e equipe voltados não apenas à resposta às crises, mas principalmente à prevenção.

Alguém já observou que a guerra é importante demais para ser deixada apenas nas mãos dos militares. Os eventos climáticos e suas consequências devem afetar a sociedade e a economia, num futuro não tão remoto, em proporções maiores que muitas guerras. Estamos falando num fenômeno muito mais abrangente do que uma crise de segurança pública. Assim, sua atuação deve ser pensada antes da perspectiva estratégica do que operacional. É preciso readequar a estrutura e as políticas para enfrentar a questão, em todos os níveis de governo.

Obs: este artigo foi parcialmente escrito com o auxílio de I.A.

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Transparência das informações versus privacidade

 


Nossos dados pessoais são compartilhados em dezenas de bases de dados e muitas destas bases contem informações sensíveis que nem todo mundo gostaria de compartilhar, como sites visualizados ou palavras chaves que buscadas no google... O mesmo se aplica aos dados públicos com informações particulares sobre sua saúde – que podem ser usados para negar empregos, seguros ou empréstimos - ou sobre crimes eventualmente ocorridos na sua residência, ou ainda sobre sua renda, para mencionar alguns tipos de dados sensíveis que os órgãos governamentais detém.

Por outro lado, sabemos que na era da I.A. estas informações são as vezes relevantes para o desenvolvimento de modelos estatísticos, pesquisas e tratamentos médicos, avaliações de impacto de políticas, distribuição de recursos policiais e dezenas de outras atividades acadêmicas e operacionais. A questão é como conciliar o direito individual à privacidade ao mesmo tempo em que se permite o acesso de nossas informações para bases públicas e privadas para fins de pesquisa ou outros usos socialmente relevantes. Interessa à coletividade conhecer as ruas mais perigosas, a melhor rota de trânsito, o desenvolvimento do tratamento de doenças, o impacto dos programas sociais na renda, etc. e isso só é possível com a utilização de bases gigantescas, razoavelmente detalhadas e não enviesadas.

Uma prática comum dos detentores de dados é fornecer bases que sejam anonimizadas, isto é, sem nomes, números de documentos ou outros dados que permitam a individualização das informações. Essa precaução, todavia, não garante que se faça a “reidentificação”, que é a utilização de filtros de pesquisa e cruzamento de informações para que se consiga novamente chegar a indivíduos específicos. A probabilidade de reidentificação pode ser entendida como a inversa do número de indivíduos que compartilham as mesmas características.

Vou dar um exemplo concreto a partir de uma base de dados de 137 mil presos que obtive para pesquisa nos anos 90, que foi anonimizada, mas que contém informações demográficas como data de nascimento, gênero e cor dos indivíduos, entre outras informações. Não seria muito difícil reidentificar indivíduos com o conhecimento de algumas poucas informações demográficas sobre eles.

Se soubermos a data de aniversário, já podemos utilizar um primeiro filtro, que resultaria teoricamente em 375 indivíduos, aproximadamente, uma vez que cada aniversário se repete cerca de 365 vezes. (137000: 365 = 375,3). Sabendo que se trata de uma mulher reduziríamos nossa busca a 187,5 pessoas. Supondo ademais que conhecemos que se trata de uma mulher negra, e que os “pretos”, conforme a classificação do SEADE, representam cerca de 5,5% da população de São Paulo, nossa lista final de candidatas teria menos de 10 pessoas. Assim, quanto mais informações tivermos e mais detalhadas as informações, mais fácil se torna filtrar os dados para chegarmos ao indivíduo de interesse.

 

O procedimento é um pouco mais complicado, se não estivermos falando de uma amostra representativa da população, mas de um subconjunto específico, como a população prisional. A probabilidade de reidentificação também depende da distribuição da população na base de dados. Por exemplo, a data de nascimento nunca é precisamente a mesma para cada dia do ano, uma vez que nascem mais pessoas em alguns dias e meses. Cerca de 95,9% da população prisional é masculina, em contraste com metade da população paulista. Na nossa amostra, descobrimos também que “pretos” representam 12,1% dos presos, em contraste com 5,5% da população paulista. Trata-se, portanto de uma amostra bem distinta da população em geral, mas conhecendo este perfil, é fácil proceder aos cálculos.

Selecionamos um aniversário ao acaso (15 de junho) e encontramos na amostra 466 presos que fazem aniversário nesta data. Quando filtramos as mulheres, encontramos 22 casos e quando adicionamos a informação sobre a cor, chegamos a apenas dois indivíduos. Partimos de uma base anonimizada com 137 mil indivíduos e apenas utilizando três filtros, reduzimos as possibilidades para 2 pessoas!

A data de nascimento é uma variável considerada altamente identificável, especialmente quando combinada com outras variáveis demográficas e é definida como um “quase-identificador”. Mesmo em uma grande base de dados, com milhares de registros, a data de nascimento pode ser única ou quase única, o que aumenta o risco de reidentificação. Estudos indicam que datas de nascimento são um dos principais fatores de risco para reidentificação, especialmente quando combinadas com outras variáveis. Em um estudo clássico conduzido por Latanya Sweeney, ela demonstrou que 87% da população dos Estados Unidos poderia ser identificada unicamente usando apenas três atributos: data de nascimento, gênero e CEP. (Sweeney, L. (1997), Weaving Technology and Policy Together to Maintain Confidentiality. The Journal of Law, Medicine & Ethics, 25: 98-110. https://doi.org/10.1111/j.1748-720X.1997.tb01885.x). De fato, quando o governador do seu Estado resolveu divulgar os dados de saúde anonimizados, não demorou muito para que Sweeney enviasse ao governador pelo correio sua ficha médica anônima...

Uma técnica comum para proteger os dados contra a possibilidade de reidentificação é garantir que cada combinação de quasi-identificadores esteja presente em pelo menos k registros na base de dados. Se uma combinação específica de data de nascimento, gênero e CEP for única ou quase única, a base de dados não satisfaria um nível de k-anonimato adequado, sugerindo um risco elevado de reidentificação. Analistas de dados atualmente fazem testes deste tipo para verificar os riscos de reidentificação das bases e introduzir medidas para mitiga-los.

Algumas estratégias foram pensadas para reduzir esse risco, como generalização ou agregação, que consiste em agrupar datas de nascimento em faixas etárias ou limitar a granularidade do CEP. Supressão, por sua vez, seria remover completamente datas de nascimento ou outros quasi-identificadores quando o risco de reidentificação for alto e a informação muito sensível. Perturbação, finalmente, significa introduzir ruído ou pequenas alterações nos dados para dificultar a reidentificação.

Qualquer que seja a estratégia adotada é importante que a base de dados mantenha as mesmas características da original. Infelizmente, os gestores de bases nem sempre atentam para este ponto e introduzem vieses nos dados. Muitos pesquisadores utilizam como eu as bases criminais georeferenciadas disponibilizadas pela SSP-SP para estudar a criminalidade no Estado. Pensando na privacidade das vítimas, a SSP disponibilizou as bases de dados sem os endereços ou geolocalização, sempre que o tipo de local era classificado como “residência”, “casa”, “apartamento” etc. Esse procedimento foi adotado não apenas em casos de “violência doméstica” ou crime sexuais – dados mais sensíveis – mas até mesmo para casos corriqueiros de furto ou roubo.

O resultado foi o enviesamento da base quando se trata de refinar a análise geograficamente, uma vez que todos os eventos dentro de residências desaparecerão, restando apenas os ocorridos em locais públicos e outros. A análise pode ainda ser feita num nível mais agregado, como bairros ou distritos (generalização), mas é preciso levar em conta esse viés sistemático ao produzir mapas ou modelos estatísticos. Nesse caso específico, uma estratégia possível seria a “perturbação”, introduzindo, por exemplo, um ruido aleatório nas coordenadas geográficas, deslocando o centroide para um raio de N metros ao redor do local real do crime.

Mas é preciso ter em mente que o ruído introduzido pela perturbação proposital pode reduzir a precisão de modelos preditivos baseados em localização, usados hoje em sistemas do tipo “policiamento preditivo”. Modelos que tentam prever a ocorrência de eventos futuros com base em dados históricos podem ser menos eficazes se a localização precisa dos eventos passados estiver comprometida. Esse alerta deveria ser incorporado nos meta dados de qualquer base disponibilizada para o público. O jornal Estado de São Paulo, por exemplo, construiu excelentes ferramentas de visualização de crimes na cidade, o Radar da Criminalidade, mas iniciativas como estas ficam parcialmente comprometidas pela ausência de crimes residenciais, suprimidos em nome da privacidade. https://www.estadao.com.br/sao-paulo/radar-da-criminalidade-sao-paulo-roubos-por-ruas-bairros/

O uso de dados sintéticos é uma abordagem que vem sendo utilizada para lidar com questões de privacidade e segurança em conjuntos de dados que contêm informações sensíveis. Esta técnica permite a criação de dados que mantêm as propriedades estatísticas dos dados reais, sem expor informações identificáveis dos indivíduos. Dados sintéticos são conjuntos de dados gerados artificialmente, que reproduzem as características estatísticas dos dados originais. Eles são criados de maneira que se assemelhem aos dados reais em termos de distribuição, correlações e estrutura, mas não correspondem a registros de indivíduos reais. Dessa forma, permitem análises e treinamentos de modelos sem risco de reidentificação direta.

O problema aqui é que a qualidade dos dados sintéticos depende muito da precisão dos modelos geradores. Se os modelos não capturarem adequadamente a complexidade dos dados reais, os dados sintéticos podem não ser representativos e levar a conclusões incorretas.

Existe um trade-off entre privacidade e a necessidade de gerar informações públicas que sejam úteis e confiáveis. É preciso pensar na sensibilidade de cada tipo de informação para decidir, em cada situação específica, quando é necessário omitir ou camuflar dados e quando é possível ampliar a sua divulgação. A simples anonimização, como vimos, não é garantia de privacidade, quando existirem outras informações que permitam a reidentificação. Excluir dados relevantes da base, por outro lado, pode implicar em sérios vieses na identificação de padrões e modelos.

Somos cada vez mais uma sociedade dependente de algoritmos baseados em dados, o que tem contribuído para o avanço desde atividades do dia a dia – como escolher um filme ou música – até o desenvolvimento de diagnósticos médicos, novas medicações e sistemas de predição de crimes. O princípio básico deve ser o da transparência das informações e quando necessário, o uso de algumas das técnicas sugeridas acima, pode evitar a violação da privacidade de dados sensíveis. O problema, como sempre, é que estamos diante de dois princípios igualmente válidos, o que torna mais relevante a discussão pública sobre regras e critérios sobre o que e como deve ser divulgado.

 

Obs: este texto foi escrito com auxílio parcial de I.A.

 

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Jogos de azar: problema fiscal ou de saúde pública?

 

O problema parece ser tratado exclusivamente pela ótica fiscal, sem levar em conta os custos individuais e coletivos da expansão da jogatina, escreve Tulio Kahn

Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático

Quase toda atividade humana traz o risco de ser realizada de forma excessiva. Existem pessoas que fumam demais, bebem além da conta, jogam em demasia, consomem drogas exageradamente, dedicam muito tempo ao celular e às redes sociais. Há também as que amam demais (sim, isso é um problema), trabalham demais, dedicam-se exageradamente aos esportes, gostam de sexo mais do que seria aceitável ou compram demais – o que pode ser um problema sério quando não se tem dinheiro. Tudo feito em demasia – mesmo atividades socialmente aceitáveis – pode implicar em riscos e consequências danosas.

Em todas as atividades há um limite entre o normal e o patológico e uma porcentagem “diminuta” de pessoas que tendem a abusar do comportamento. Chamamos de “vício” um comportamento compulsivo em que uma pessoa desenvolve uma dependência física, psicológica ou emocional por uma substância ou atividade, apesar das consequências negativas associadas a esse comportamento. O vício apresenta características como dependência, compulsão, tolerância (precisa de doses cada vez maiores), síndrome de abstinência e um impacto negativo sobre a vida diária da pessoa, entre outras características.

Não se trata apenas de uma questão privada, uma vez que os vícios produzem também externalidades coletivas; gastos em saúde e segurança, perda de produtividade no trabalho, criminalidade, ruptura familiar, marginalização social, acidentes de trânsito e perda de rendimento escolar, para mencionar apenas algumas principais.

Essas externalidades sociais sublinham a importância de abordar os vícios não apenas como questões de saúde individual, mas também como problema social que requer intervenções políticas, educativas, econômicas e de saúde pública integradas para mitigar seus efeitos negativos na sociedade. Como em vários outros casos, estamos aqui diante do dilema entre “liberdade individual” x “custos sociais”, que cada sociedade e época decidem à sua maneira.

Algumas destas atividades estão organizadas através de “mercados” legais e ilegais que lucram com o consumo, apesar das tentativas tímidas de evitar o uso abusivo dos consumidores por parte das indústrias. Mesmo o mercado de drogas ilícitas prefere um consumidor moderado e constante ao “nóia”, assim denominado pejorativamente o usuário com extrema dependência em certas drogas, como o crack. Em última instância, “cliente morto não paga” e o abuso pode ser prejudicial para o setor.

Não obstante algumas tentativas de autorregulamentação dos mercados, coube ao poder público os maiores esforços para tentar conter os prejuízos individuais e coletivos dos vícios. Entre as políticas públicas estão as campanhas de prevenção e conscientização, o tratamento e a reabilitação dos dependentes, a regulação e controle de substâncias nocivas, políticas de preços e impostos, parcerias com o terceiro setor e o setor privado, pesquisas de monitoramento e avaliação de programas, entre outras.

Algumas destas políticas são custosas e estes custos, obviamente, deveriam ser arcados pelas indústrias que se beneficiam da exploração das atividades que causam dependência, incluindo aí indústria de álcool e tabaco, setor de jogos, medicamentos, empresas de internet e redes sociais. Destaque-se que um dos argumentos para a legalização das drogas leves nos estados americanos é precisamente a possibilidade de poder taxar o setor e dedicar parte dos impostos ao tratamento da dependência.

Temos visto no Brasil um aparente crescimento do vício em apostas on-line, regularizadas a partir de nova legislação adotada em 2018 e 2023, que permitiram o funcionamento das bets e jogos como o popular “jogo do tigrinho”. Como sempre, os dados de pesquisas sobre o problema do vício em jogo (ludomania) são escassos e o problema parece ser tratado exclusivamente pela ótica fiscal, pelo Ministério da Fazenda, onde um estado gastador procura ampliar fontes de arrecadação, sem levar em conta os custos individuais e coletivos da expansão da jogatina.

As pesquisas sobre o problema são escassas e defasadas. Dissertação de mestrado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), de 2009, mostrou que 1,6% dos adolescentes entrevistados tinham problemas com jogos de azar (Spritzer, 2009). Um estudo antigo conduzido pela Unifesp, em 2013, estimou que cerca de 1,3% da população brasileira tinha problemas com o jogo, sendo que aproximadamente 0,4% da população poderia ser classificada como viciada, apresentando sintomas de jogo patológico. Esses números equivalem a cerca de 850 mil a 2,8 milhões de pessoas em uma população de aproximadamente 213 milhões de brasileiros (Laranjeira, 2013). É provável que a incidência tenha aumentado com a regularização dos cassinos on-line, mas não temos estudos robustos sobre o tema com dados atualizados. Os dados mais atuais são do Ministério da Saúde e mostram que, entre 2018 e 2023, o número de pessoas atendidas por jogo patológico no SUS aumentou, saindo de 108 para 1,2 mil.

O Raio-X do Investidor Brasileiro é uma pesquisa quantitativa anual, realizada em parceria com o Datafolha. O levantamento ajuda a traçar o perfil e o comportamento da população com relação às suas finanças. Na 7ª edição, em 2023, foram entrevistados 5.814 pessoas e incluído um levantamento sobre o uso de aplicativos de apostas esportivas on-line, popularmente conhecidos como bets. Entre outros resultados, a pesquisa constatou que 22,4 milhões de brasileiros usam apps de apostas on-line (14% da população brasileira), 40% consideram como uma chance de ganhar dinheiro rápido em momentos de necessidade e 22% consideram as apostas online como um tipo de investimento…

Cruzando os dados da pesquisa Datafolha, observamos que entre os jovens de 16 a 24 anos, a porcentagem dos que afirmam nunca ter usado aplicativos de apostas cai para 52%, em contraste com 78,6% das pessoas com mais de 60 anos. Nesta faixa mais jovem, 6,5% dizem ter usado estes aplicativos frequentemente em 2023. O uso frequente é maior também entre os homens, pessoas com ensino médio e maior no Nordeste – em contraste com o Sul. O uso “frequente” vai diminuindo progressivamente conforme a classe social do entrevistado.

O uso frequente cai de 7,2% na classe A para 2,2% na classe D/E, assim como o uso “de vez em quando”. Em contraste, as porcentagens de não usou em 2023, raramente usou ou nunca usou, crescem percentualmente com a diminuição do status social. O qui-quadrado de 67,7 é significativo com prob >.000

Na amostra total, 19,8% afirmaram concordar totalmente com a afirmação “eu já briguei com amigos e familiares por causa de dinheiro. Esta porcentagem sobe para 33% no caso dos que apostam frequentemente em apostas esportivas do tipo bet.

A regularização dos jogos de azar deveria ter sido precedida por revisões da literatura e amplos estudos nacionais sobre o tema, que pode assumir proporções catastróficas – principalmente entre jovens de renda alta e gênero masculino – se não forem criadas políticas públicas para lidar com o problema. Essa revisão deve incluir também estudos robustos sobre as melhores políticas públicas para lidar com os efeitos indesejáveis do jogo. Isso inclui mecanismos para identificar jogadores com transtornos, tratamento dos dependentes, restrição para jogadores patológicos, sistemas de autoexclusão, softwares de bloqueio, bloqueio de operações bancárias, limitação ou proibição de propaganda, campanhas de conscientização, treinamento do pessoal de saúde, entre outras.

É preciso tratar do problema como uma questão de saúde pública, assim como a dependência de álcool e drogas. Trata-se de uma indústria bilionária, com grande poder de lobby, que deve ser pesadamente taxada e regulada – e, no limite, proibida, como aconteceu com os cassinos e jogos de bingo no passado. É preciso ponderar aqui, como sempre, as questões de liberdade individual, fiscais, o risco de alimentar um mercado ilegal de jogos e os danos individuais e custos sociais da liberação indiscriminada dos jogos de azar. Também são necessários critérios objetivos para definir que tipo de jogo é permitido ou proibido, lembrando aqui que corridas de cavalo, loterias e jogos on-line são permitidos no Brasil, enquanto bingos, cassinos e jogo do bicho, não. Isso sugere que critérios arbitrários são utilizados, dependendo de fatores culturais, fiscais, deontológicos, capacidade de persuasão dos setores, entre outros motivos menos nobres.

O caso da indústria de tabaco pode ser um exemplo positivo para levar em consideração, onde políticas públicas conseguiram reduzir de forma efetiva o consumo de cigarros no Brasil nas últimas décadas, regulando uma das indústrias mais poderosas do mundo.

Mas foi preciso milhares de pesquisas sobre os efeitos maléficos do fumo e milhares de mortes antes o tabaco passasse a ser controlado em quase todo o mundo. Ao que tudo indica e conhecendo a forma como as questões são tratadas no Brasil, o problema deve piorar muito antes que qualquer ação efetiva seja tomada, pelo que se vê pela falta de critérios e pela ótica preponderantemente fiscal com que a liberalização dos jogos foi aprovada no País. Querem apostar?

 

Referências

Spritzer, Daniel Tornaim . Problemas relacionados a jogos de azar em adolescentes brasileiros : participação, prevalência e fatores associados. Dissertação de mestrado, UFRS, 2009

Laranjeira, R., Madruga, C. S., Pinsky, I., Caetano, R., Mitsuhiro, S. S., & Ribeiro, W. (2013). Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (LENAD): Padrões de consumo de álcool na população brasileira. São Paulo: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (INPAD), Universidade Federal de São Paulo.

Souza, 2009. Jogo patológico e motivação para mudança de comportamento

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Evolução do sistema nacional de indicadores de segurança

 A partir de 2024, o Ministério da Justiça passou a divulgar mensalmente 28 indicadores criminais coletados dos 27 estados. A série histórica mais recente e consistente de dados criminais nacionais vai dos anos 2015 a maio de 2024, com a qualidade dos dados melhorando a partir de 2017.

Este processo de coleta e disseminação de indicadores criminais teve início no final dos anos 90 com o SINEP e o aperfeiçoamento e ampliação do sistema – o último deles com o SINESP VDE em 2023 - é sinal da relevância atribuída aos dados para avaliação das políticas de segurança pública e gestão da segurança.
Na proposta de PEC do Ministro Lewandovsky vazada esta semana, está incluído  o desenvolvimento de um novo sistema padronizado e integrado de registros policiais, boletins de ocorrência e mandados de busca, sugerindo que a atual gestão busca melhorias nos sistemas existentes.
Os indicadores atuais não se limitam aos 28 divulgados, uma vez que novos indicadores podem ser construídos com base neles: taxas por habitante ou veículos, razões entre indicadores, porcentagens, agregação de grupos indicadores e assim por diante.
Assim, por exemplo, para tentar medir eventuais excessos na ação policial, o professor da Universidade de Nova York Paul Chevigny criou nos anos 90 três interessantes indicadores, hoje clássicos: a razão entre criminosos mortos e feridos, a razão entre criminosos mortos e policiais mortos e a porcentagem de mortes em confronto dentro do total de mortes. Matematicamente eles são bastante simples de ser calculados e o SINESP disponibiliza atualmente tanto o número de agentes policiais quanto o de suspeitos mortos em confronto, assim como o total de homicídios por Estado, sendo possível, portanto calcular dois destes indicadores propostos por Chevigny.
A questão é saber se eles medem realmente o fenômeno subjacente (excessos na ação policial) ou se estão medindo alguma outra coisa e se medem de modo preciso. Em outras palavras, da validade e confiabilidade do constructo. O argumento do autor é que num conflito típico, os confrontos deixam mais feridos do que mortos. Confrontos com um padrão inverso – mais mortos que feridos – sugerem um excesso policial. Do mesmo modo, num confronto típico, o esperado é que o número de mortos seja assemelhado entre as forças, ou ligeiramente maior para aquela que é mais bem treinada e equipada. Mas quando o número de mortos de um lado é muitas vezes superior ao de outro, isto sugere um desvio da normalidade. Finalmente, numa sociedade democrática, espera-se que as mortes em confronto com a polícia representem apenas uma pequena parcela dos homicídios. Quando esse percentual é muito elevado (a média no Brasil é de 14,5%, segundo o Sinesp, em 2023), temos novamente a sugestão de estamos diante de um descontrole do uso da força.
É claro que existem problemas nestes raciocínios: por exemplo, uma queda forte nos índices de homicídio de um determinado Estado, provoca por definição um aumento na porcentagem de mortes em confronto dentro do total de mortes, mesmo que em números absolutos as mortes em confronto estejam estáveis. Todavia, quando analisados em conjunto e contextualizados, estes três indicadores simples ajudam a dar uma dimensão do problema da violência policial num determinado local e período.
O ponto aqui não é avaliar especificamente os indicadores de Chevigny, mas antes ilustrar o que se pode fazer a partir dos dados crus e o processo de geração de novos constructos conceituais: juntando homicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte, cria-se o novo conceito de CVLI - crimes violentos letais intencionais e assim por diante. Juntando apreensão de armas e de drogas e dividindo pelo número de policiais, temos talvez alguma medida de “esforço policial”. Juntando roubo a bancos, carga e tráfico de droga, temos talvez uma medida rudimentar de crime organizado? 
Estes novos constructos, quando válidos e confiáveis (isto é, relacionados ao conceito que procuram mensurar e medindo-o de forma adequada), são ferramentas heurísticas que jogam novas luzes sobre os temas, mostrando às vezes coisas que os indicadores isolados não revelam. 
Vale lembrar que além dos 28 novos indicadores divulgados pelo Sinesp, o governo federal realiza desde os anos 90 a pesquisa Perfil das Polícias e o Censo Penitenciário Nacional, ambas contendo centenas de variáveis para o estudo do fenômeno criminal e para a gestão da segurança. Publica ainda esporadicamente dezenas de pesquisas isoladas, como a pesquisa nacional de vitimização e o Mapa das organizações criminosas ORCRIM atuando nos presídios (SISDEPPEN, 2023).  
Sinarm, Infoseg e Renavam são exemplos de outras bases de dados relevantes mantidas pelo MJ, entendidas como bases operacionais (são índices de consultas para agentes em campo) mas também podem ser utilizadas para análises estratégicas. O sistema de indicadores está longe de ser ideal - carece de qualidade, atualidade, granularidade - mas caminha gradualmente em direção a um sistema mais abrangente e qualificado.
A Lei do SUSP de 2018 traz diversos artigos relativos a indicadores e bases de dados. Neste sentido, a ideia da PEC de constitucionalizar o SUSP pode ser um passo importante para institucionalizar e solidificar o "sistema único de segurança pública".

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Criminalidade e desastres naturais: dados criminais de maio no RS


A Secretaria de Segurança do Rio Grande do Sul divulgou nestes dias os dados criminais relativos a maio de 2024, que captam as tendências criminais no Estado durante o período das inundações, que afetaram 68% dos 497 municípios, desde o final de abril.

Havia grande expectativa sobre estes números, uma vez que as notícias indicavam um crescimento dos furtos a residências e estabelecimentos comerciais e dos abusos sexuais nos abrigos emergênciais, entre outros delitos. A literatura a respeito dos efeitos dos desastres naturais sobre a criminalidade, embora não conclusiva, também sugeria majoritariamente um crescimento de algumas modalidades de crime, em curto e longo prazo, tanto nas cidades diretamente afetadas quanto nas áreas vizinhas, via migração.  (Varano et al., 2010). 

Pelo menos no que se refere aos delitos monitorados e no curto prazo, o que vimos foi uma queda generalizada da criminalidade em maio, quando comparamos com a média dos quatro primeiros meses do ano.

A tabela abaixo compara maio com a média anterior para os 11 indicadores monitorados pela SSP RS, tanto para as cidades afetadas diretamente pelas inundações (337) quanto para as não afetadas (160). A relação das cidades afetadas foi divulgada pela Defesa Civil do Estado (posteriormente mais 4 cidades foram acrescentadas na lista das afetadas, mas os resultados gerais não devem ser diferentes).

Crimes do RS – janeiro a maio de 2024 – municípios afetados e não afetados pela calamidade.



Fonte: SSP-RS

Os desastres naturais são também “experimentos naturais”, situações excepcionais onde podemos testar uma série de hipóteses, uma vez que conseguimos encontrar um contrafactual  adequado (cidades não afetadas) para comparar com um grupo de controle (cidades afetadas), considerando que a seleção entre os grupos foi aleatória. Comparando as tendências criminais das cidades afetadas e não afetadas, podemos lançar alguma luz sobre as explicações que fazem mais sentido para explicar a queda.

Com exceção dos latrocínios – cuja quantidade absoluta é pequena e sujeita a flutuações – e do tráfico de entorpecentes nas cidades não afetadas, o que vemos é uma queda generalizada e intensa nos indicadores criminais em maio, comparado à média dos meses antecedentes. A literatura, especialistas, os jornais e autoridades governamentais  estavam equivocados então?

Não necessariamente. A literatura traz casos em que a criminalidade caiu após desastres naturais, como foi o caso do Chile após os terremotos em 2010, de modo que o caso do RS não é excepcional . Alguns fatores podem explicar o fenômeno: aumento da solidariedade na população e impossibilidade de registrar as ocorrências na polícia. Mas acima de tudo uma forte mudança na rotina diária, como presenciamos durante a COVID, quando os crimes patrimoniais também despencaram no país. Para que um crime ocorra vítima e autores precisam se encontrar num mesmo espaço e tempo, na ausência de guardiões. As inundações praticamente impediram a circulação de pessoas e bens, limitando consequentemente as oportunidades criminais.

A hipótese da subnotificação perde força, quando observamos que as quedas ocorreram tanto nos municípios afetados quanto nos não afetados. Não apenas não houve “migração” de crimes como em alguns casos estes caíram mais intensamente nos municípios não afetados, como nos furtos e roubos.  O mesmo pode se dizer da hipótese da mudança de rotina e das oportunidades. Exceto se a calamidade foi tamanha que afetou a capacidade da polícia de registrar crimes em todo lugar e afetou a rotina cotidiana, mesmo nas cidades que não estavam alagadas, contaminado de alguma forma a rotina destas cidades.

Essas hipótese não podem ser descartadas, mas na falta de evidências de que isso tenha ocorrido, ganha força à hipótese da “solidariedade”, segundo a qual criminosos , sensibilizados pela tragédia, teriam menores incentivos à execução de crimes... Confesso que pessoalmente não acredito muito nesta conjectura, mas a comparação entre os grupos de municípios reforça esta linha de raciocínio, uma vez que a queda foi generalizada.

De fato, sociedade e governos se uniram no apoio ao Rio Grande do Sul, contribuindo com recursos financeiros, alimentos, roupas, remédios, envio de tropas e equipamentos de salvamento, numa manifestação de solidariedade poucas vezes vista. Este apoio deve ter contribuído para aliviar necessidades imediatas e eventualmente a pressão para o cometimento de crimes oportunistas ou de necessidade. Mas é plausível supor que estes recursos foram concentrados nas áreas afetadas, de modo que não explica a queda criminal nos demais municípios.

É preciso observar que os dados não permitem desagregar o que aconteceu especificamente com os arrombamentos e saques, que estão somados na grande categoria “furtos”. É possível então que alguns tipos de furtos tenham crescido, não obstante a queda geral na categoria. Não existem tampouco dados para monitorar os crimes sexuais, de que tivemos notícias episódicas pelos meios de comunicação. Em suma, estamos observando apenas alguns indicadores criminais e de forma agregada. Seria necessário um detalhamento das modalidades para verificar o impacto sobre situações específicas, como os furtos em residências e as importunações sexuais.

Finalmente, estamos observando tendências de curtíssimo prazo enquanto a literatura sugere que muitos dos efeitos serão observados apenas em longo prazo, quando se acirrarão os fatores sociais e econômicos tipicamente associados ao crime: menos empregos, queda no rendimento escolar, queda na arrecadação de impostos e, portanto menos investimentos nas polícias, aumento dos problemas mentais, aumento da pobreza e desorganização social.  (Waddell et al., 2021).

Vimos com alívio a queda generalizada da criminalidade no RS em maio, mas é provável que esta queda seja temporária e que os índices voltem aos patamares anteriores em pouco tempo, como ocorreu no pós COVID. Lidar com estes efeitos requer uma abordagem abrangente que inclua respostas imediatas da aplicação da lei e suporte social e econômico de longo prazo para mitigar os efeitos adversos dos desastres naturais sobre o crime e a violência.

 

Referências

Aguirre, B. E., & Lane, D. (2019). [Fraud in disaster: Rethinking the phases](https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2212420919305746). 

Cutter, S., Barnes, L., Berry, M., Burton, C., Evans, E., Tate, E., & Webb, J. J. (2008). [A place-based model for understanding community resilience to natural disasters](https://www.semanticscholar.org/paper/011e91fb1fb77f6cd265dd8746e83ba6f1ef02b9).

Nivette, A. E., Zahnow, R., Pérez Aguilar, R. A., Ahven, A., Amram, S., Ariel, B., & Aguilar, M. J. (2021). [A global analysis of the impact of COVID-19 stay-at-home restrictions on crime](https://www.nature.com/articles/s41562-021-01139-z.pdf).

Varano, S. P., Schafer, J. A., Cancino, J. M., Decker, S. H., & Greene, J. R. (2010). [A tale of three cities: Crime and displacement after Hurricane Katrina](https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S004723520900141X).

Waddell, S. L., Jayaweera, D., Mirsaeidi, M., Beier, J., & Kumar, N. (2021). [Perspectives on the Health Effects of Hurricanes: A Review and Challenges](https://www.semanticscholar.org/paper/ebc00dbefbc5db4a64b360d3213890587424d296).

 

 

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