Estados e municípios em
diferentes regiões e contextos enfrentam problemas criminais diferentes e não
existe uma forma única de organização das forças de segurança para lidar com
todos eles. É natural encontrarmos arranjos institucionais diferentes Brasil
adentro, não obstante algumas tendências uniformizadoras, como a Constituição,
Leis orgânicas das polícias, Conselhos Nacionais de polícia e orientações do
Ministério da Justiça. Em realidade, temos defendido que a
desconstitucionalização do tema no art. 144 permitiria a emergência de mais e melhores
arranjos institucionais, como por exemplo policiais estaduais únicas e de ciclo
completo.
Mas quanta heterogeneidade temos
nestes arranjos estaduais e em quais aspectos? A pesquisa Estadic do IBGE é
realizada esporadicamente e procura levantar alguns destes aspectos junto aos
Estados, assim como a Munic faz com relação aos municípios. A Estadic pergunta
sobre a estrutura da segurança pública, como secretarias, conselhos, fundos,
planos estaduais, ouvidorias, treinamento, efetivos e dezenas de outras
características. No artigo levanto algumas das heterogeneidades que acho
interessantes destacar e outras que me parecem preocupantes, se pensarmos num
padrão mínimo ao qual todas as organizações deveriam atender.
Destaque-se em primeiro lugar que
nem todas as Secretarias estaduais têm os mesmos órgãos subordinados. Em 13
delas há um departamento de trânsito (DETRAN), mas em quase a outra metade (12)
o departamento de trânsito não faz parte da SSP, o que sugere que provavelmente
a gestão do trânsito passou a ser independente da polícia. Problemas de
corrupção sistêmica nos DETRANS – como a venda de habilitação e anulação de
multas - tem levado nos últimos anos à sua separação das Policiais Civis,
igualmente afetadas pela corrupção.
A gestão da Administração
Penitenciária é responsabilidade da Secretaria de Segurança em 9 Estados e área
independente de gestão em 16 deles. Os mesmos números aparecem no caso da
Defesa Civil, com 9 Estados colocando a tarefa sobre a égide da SSP e 16 sob
outros guarda-chuvas – como a Casa Civil ou Palácio - ou estruturas próprias. Como
sugeri alhures, o aumento da frequência e seriedade das crises climáticas deve
tornar as Defesas Civis cada vez mais técnicas e aparelhadas para lidar com o
problema, tirando-as da organização policial e da gestão pelos bombeiros. O
crescimento intenso da população prisional em todos os Estados, por sua vez,
tem levado à criação de outras formas de gestão – inclusive gestão privada ou
pela sociedade civil – geridas por secretarias próprias para o setor.
Assim, parece existir um “núcleo
duro” nas Secretarias estaduais de segurança, formado por Polícia Civil,
Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Perícia e outros órgãos ou funções
subsidiárias que a SSP assume ou não, conforme o caso. Quando o volume e o
problema são grandes demais – caso do trânsito, corrupção no Detran, administração de presos ou defesa civil –
muitos Estados tem procurado dar recursos e estruturas próprias para a execução
destas tarefas. O volume e seriedade destes problemas pode variar muito
regionalmente e faz sentido que o poder público se adapte a estas
circunstanciais.
Pode-se dizer o mesmo com relação
às modalidades de policiamento ostensivo, onde existe bastante heterogeneidade
entre as polícias militares. Algumas modalidades são praticamente universais –
como o policiamento rodoviário, ambiental, escolar, de trânsito, comunitário,
operações especiais, choque, policiamento com cães, enquanto outras são menos
comuns – como policiamento aéreo, turístico, fluvial, montado e policiamento de
fronteira. Novamente aqui, cabe aos Estados adaptarem-se segundo as
características e preferências regionais – embora o governo federal possa estimular
a existência de alguma modalidade em particular, de modo universal, como
policiamento comunitário.
Por outro lado, existem arranjos
que deveriam ser universais, quesitos mínimos, independente de contextos
regionais. Sete Estados afirmam na pesquisa do IBGE que a produção de
estatísticas não é regulamentada ou normatizada por documento legal, como
resoluções ou decretos, o que denota uma fragilidade institucional da prática,
que poderia ser abolida por futuras gestões. Em troca de recursos federais,
poder-se-ia cobrar dos Estados um mínimo de produção e transparência com
relação às estatísticas criminais, definidos em lei ou decretos estaduais.
Os conselhos estaduais de
segurança têm na maioria representação preponderantemente governamental (23
UFs) e 24 deles tem natureza apenas consultiva. Metade dos Conselhos se reuniu
4 ou menos vezes no último ano. Apenas 4 estados responderam que os Conselhos
tem dotação orçamentária própria. Seria recomendável aqui também alguma
sugestão federal para homogeneizar a estrutura, funções e funcionamento dos
Conselhos, de modo a garantir que sejam representativos e atuantes ao invés de
subservientes ao governo de plantão, como geralmente são.
Com relação ao treinamento da
Polícia Militar, em 23 casos ele é administrado pela própria instituição e em apenas
5 casos por outras instituições. Dos 27 Estados, 22 não realizam o curso de
formação de oficiais de forma integrada com a Polícia Civil. É preciso caminhar
aqui tanto no sentido da abertura para a formação policial, ao menos
parcialmente, por instituições acadêmicas externas, quanto no sentido da
integração da formação dos quadros superiores, pelo menos na cúpula das duas
polícias.
Todas as PMs mantem um serviço de
atendimento e despacho de ocorrências, mas em 12 UFs não é feito o
georeferenciamento das chamadas recebidas e 7 delas não georeferenciam a
localização das viaturas. Georeferenciamento é hoje um ferramental básico de
gestão e trata-se de um desperdício desprezar este tipo de informação para fins
operacionais, táticos e estratégicos. Com a geolocalização de chamados e
viaturas, é possível, por exemplo, identificar qual a viatura disponível mais
próxima da ocorrência, informação elementar para a otimização do atendimento.
Ou identificar hot spots, usados numa modalidade de policiamento mais efetiva
(policiamento por hot spots) e cuja existência não foi pesquisada na Estadic.
Em alguns Estados (7) o registro
de ocorrências da PM ainda é feito total ou parcialmente de forma manual e em 8
Estados o sistema de registro não é integrado ao sistema estadual de registros.
Novamente aqui, é impensável convivermos com etapas manuais de registro quando
as polícias lá fora já utilizam IA para auxílio ao preenchimento dos registros.
Caberia incentivar também, a integração entre os sistemas policiais estaduais,
uma vez que no falido sistema de policiamento bipartido as polícias estaduais
sonegam informação uma das outras e ambas do governo federal e das guardas
municipais.
No que respeita a qualidade de
vida dos policiais, algumas das PMs estaduais (8) ainda não disponibilizam
assistência à saúde mental dos profissionais e apenas 6 providenciam seguro de
vida ou seguro de acidentes (5). Alguns problemas de saúde, como depressão,
suicídio, alcoolismo, afetam desproporcionalmente os agentes de segurança e seu
bem estar físico e mental é importante tanto para eles como para garantir o
atendimento à população.
Com relação à Polícia Civil, em
14 Estados a perícia é vinculada a esta e em 12 Estados existem perícias
independentes da Policia Civil, separação proposta para garantir a
independência de recursos e de gestão da polícia técnico científica. Como no caso da PM, os cursos de formação são
na maioria dos Estados (19) administrados pela própria instituição, em academia
próprias, com pouco contato com instituições acadêmicas ou professores externos.
Em 4 UFs o registro das ocorrências policiais ainda é realizado de forma ao
menos parcialmente manual. Em apenas 10 Estados o sistema informatizado de
ocorrências é unificado ao da PM. Com relação à assistência aos profissionais,
apenas 11 dão alguma forma de assistência à saúde e 19 delas afirmam dar algum
tipo de assistência à saúde mental. Somente 6 UFs dão seguro de vida aos
policiais civis e só 3 UFs tem seguro de acidentes.
Do lado positivo, a maioria dos
Estados mencionou que recebe recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública.
Isto significa é que possível utilizar os recursos do Fundo como moeda de troca
para estimular a adoção de algumas medidas uniformemente pelos Estados. O
governo federal quer estipular diretrizes nacionais para polícias e guardas
municipais. A pesquisa Estadic e seu diagnóstico sugere uma agenda importante de
diretrizes que poderiam ser estipuladas, como condição para o recebimento de
fundos federais. Como por exemplo:
- Obrigatoriedade do modelo de
policiamento comunitário em todas as polícias estaduais e guardas municipais;
- Independência funcional das
Polícias Técnico Científicas das Polícias Civis, garantindo a estas recursos
físicos e humanos próprios e a gestão autônoma destes recursos;
- Formalização em documento legal
estadual da produção de estatística, estipulando indicadores mínimos,
periodicidade, nível de desagregação, transparência e outros critérios mínimos;
- Criação e padronização mínima
dos Conselhos Estaduais de Segurança, estimulando representação paritária ou
majoritariamente civil, papel deliberativo, recursos próprios e outras
condições de funcionamento;
- Maior permeabilidade dos cursos
de formação policial ao mundo acadêmico externo e cursos integrados para as
duas polícias, em todos os níveis;
- Georreferenciamento de todos os
registros policiais que contenham informações espaciais relevantes para a
gestão das ocorrências. Sistemas devem ser 100% informatizados e integrados –
ou pelo menos com acesso ilimitado garantido – entre as duas polícias.
- Com exceção de informações
sensíveis, governo federal e guardas municipais devem ter acesso amplo aos
registros dos sistema estaduais de ocorrências das duas polícias, para fins de planejamento e avaliação de polícias
de segurança;
- Disponibilização de assistência
à saúde física e mental e seguro de vida e acidentes aos policiais;
A Estadic nos mostra a
heterogeneidade existente na estrutura e funcionamento da segurança pública
estadual, algumas recomendáveis e outras nem tanto. A PEC da Segurança está
propondo a constitucionalização e a unificação dos fundos nacionais de segurança
e preocupada com a uniformização de alguns aspectos da organização da segurança
em nível nacional. Um fundo robusto e diretrizes claras e bem definidas, estabelecidas em
comum acordo com as forças de segurança, podem ajudar neste objetivo.
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