Túlio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Diversos países adotam políticas de enfrentamento direto ao tráfico como estratégia para tentar reduzir o consumo e oferta de drogas, bem como a criminalidade e a violência em geral. Esta política ficou conhecida como “guerra às drogas” e teve início por volta dos anos 1960, nos Estados Unidos, de onde se difundiu mundo afora. Não obstante a longevidade, o impacto e a dispersão geográfica da política de “guerra às drogas”, existem poucas avaliações sistemáticas e rigorosas dos seus custos e resultados para as sociedades que as adotaram.
Uma avaliação abrangente da política de guerra às drogas envolve encontrar indicadores que consigam capturar em que medida estes objetivos foram atingidos e analisar tanto os resultados desejados quanto os indesejados – pois toda política gera “externalidades”.
Os objetivos das políticas de guerra às drogas são diversos e os indicadores de sucesso variaram conforme a administração federal norte-americana, mas a literatura identifica entre os principais: diminuir a prevalência do uso de drogas entre os jovens, diminuir o número de usuários crônicos, aumentar o preço das drogas, diminuir o grau de pureza, aumentar a idade média do primeiro uso, aumentar o volume de drogas apreendidas pela polícia, diminuir a área cultivada, aumentar a área destruída nas operações policiais, destruir laboratórios e precursores químicos, reduzir o faturamento anual do tráfico, aumentar as condenações por tráfico, reduzir o número de crimes associados ao tráfico, reduzir custos sociais e médicos associados ao uso de drogas, reduzir o número de emergências hospitalares ligadas ao abuso, reduzir a incidência de doenças relacionadas ao uso (HIV, hepatite C, etc).
Como no Brasil políticas criminais não são baseadas em pesquisa, mas em ideologias, de todos estes indicadores de “sucesso” listados pela literatura temos condições de acompanhar sistematicamente apenas alguns. Mas mesmo quando se faz política baseada em evidências é preciso tomar muito cuidado para saber o que de fato elas significam.
Note-se que estes indicadores não medem necessariamente o sucesso da política de combate às drogas, pois muitas destas medidas podem ser ambíguas.
1- Aumento do preço das drogas – É considerado uma medida de sucesso, mas apenas se for uma consequência da diminuição da produção e da entrada de drogas, já que preços maiores desestimulam o consumo. Em compensação, o aumento de preço, pelas regras do mercado, estimula a produção, pois os lucros também se tornam maiores. E, na medida em que se trata de uma mercadoria bastante inelástica com relação ao preço (vícios, em geral, são menos afetados pelos preços), pode ocorrer uma substituição por drogas mais baratas e de efeitos ainda mais danosos. A substituição da cocaína pelo crack e o fortalecimento dos cartéis de drogas, por exemplo, pode ser uma consequência indesejada do aumento do preço da droga, como sugeriu o Nobel de economia Milton Friedman. (Dana, Samy e Almeida, Sérgio. Pode não ser o que parece. Ed. Objetiva, RJ, 2017)
2- Diminuição da pureza da droga – Significa, em tese, que houve sucesso na redução da oferta. Em tese, pois o tráfico pode simplesmente batizar a droga para gerar maiores lucros, independentemente da oferta. E a droga batizada pode acarretar mais danos à saúde dos usuários e aumento os custos hospitalares.
3 – Volume de droga apreendida – É sucesso quando aumenta ou quando cai? Quando aumenta, pode refletir a entrada de mais drogas e não necessariamente maior atividade policial. É preciso “controlar” a variável atividade policial para interpretar corretamente o indicador como medida de sucesso ou fracasso no combate ao tráfico.
4- Condenações por tráfico – Não são necessariamente positivas, dependendo da periculosidade de quem se prende. Sabe-se que prisões tem “rendimentos marginais decrescentes”: se estamos prendendo cada vez mais traficantes de baixa periculosidade (mulas) e baixa hierarquia no mundo do tráfico, então o aumento das condenações pode ser contraproducente. Os baixos escalões são rapidamente substituídos e tornam-se um ônus para o Estado nas prisões, com impactos mínimos sobre as organizações criminosas. Ironicamente, na medida em que o sistema de justiça criminal retira de circulação os competidores mais fracos, pode contribuir para o fortalecimento das organizações mais poderosas. E os condenados viram, nas prisões, massa de manobra para o crime organizado.
5 – Prevalência do uso – Vários dos indicadores de uso de drogas variam em função do ciclo econômico – crescimento e retração da economia – e não medem necessariamente o sucesso da atividade policial, mas simplesmente o poder de compra dos usuários. Sem controlar as variáveis do nível de atividade econômica e de atividades policiais, não significam muita coisa. Nos últimos dois anos vimos a queda na apreensão de drogas em muitos Estados, como provável reflexo dos 8 trimestres de recessão, mais do que do incremento do combate ao tráfico.
Vê-se, assim, que a avaliação do sucesso de uma política pública é complexa e envolve diversos cuidados metodológicos, como o uso de um design adequado, hipóteses claramente formuladas e o controle de diversos fatores de modo a garantir que os efeitos observados se devem realmente às ações colocadas em prática e não a fatores não controlados. Desnecessário dizer que uma avaliação rigorosa é difícil de ser obtida se esta preocupação não foi pensada desde o início. O resultado é quase sempre avaliações pouco rigorosas sobre políticas que custam milhões em volume financeiro e, frequentemente, em vidas, quando se tratam de políticas de segurança pública.
Quais os custos e consequências desta política de guerra às drogas, principalmente nas sociedades latino-americanas? Concebida originariamente para diminuir o problema das drogas nos Estados Unidos, os efeitos mais impactantes desta política talvez se manifestem nas sociedades menos desenvolvidas, como México, Brasil e Colômbia, detentores de taxas elevadíssimas de homicídios, em parte originados dos confrontos com o tráfico. Tanto nos EUA quanto em outros lugares, internamente, são as camadas mais desfavorecidas que absorvem os maiores impactos da política de guerra às drogas.
O Brasil é menos um produtor de drogas do que um centro de consumo e rota de passagem. Boa parte dos custos típicos da guerra às drogas reside em atividades de controle da produção e tais custos são praticamente inexistentes aqui. O Brasil, deste modo, sub-representa certos tipos de custo – especialmente os ligados ao combate à produção – enquanto sobrerrepresenta outros, como o número de mortos nos confrontos. Parte significativa dos recursos estadunidenses gastos na guerra às drogas têm relação com atividades desenvolvidas nos países produtores de drogas – Colômbia, Bolívia, Peru –, onde milhões de dólares são gastos na erradicação de áreas de cultivo de coca ou nos programas de substituição de renda para ex-cultivadores de coca. É preciso ter estas especificidades em mente antes de tentar generalizar os achados e avaliações das pesquisas norte americanas para o caso brasileiro.
Se as avaliações de políticas públicas já são raras, o levantamento dos custos e externalidades é ainda mais raro nas avaliações de políticas de segurança. Mesmo quando há a intenção de levantá-los, gestores e pesquisadores enfrentam grandes dificuldades para encontrar as medidas adequadas ou para transformá-las numa escala monetária comum. Este problema é tanto maior quando se trata de avaliar uma atividade ilícita como o tráfico de drogas. Qual o faturamento das organizações criminais? Quantas pessoas o tráfico envolve? Quantas pessoas deixam de visitar uma cidade por causa da violência associada ao tráfico? Qual o impacto da violência da guerra às drogas nas gerações futuras? Qual o impacto presente no rendimento do trabalho e escolar? A legalização da maconha para uso recreativo, em alguns estados norte-americanos, criou um mercado legal em torno do cultivo e venda da maconha, que é taxado pelo poder público. Pensando no chamado “custo de oportunidade”, devemos incluir nos custos da guerra às drogas também o quanto se deixa de arrecadar em impostos, na hipótese de legalização do uso recreativo da maconha?
Deixando de lado estes custos mais complexos, a estratégia da guerra às drogas é operacionalizada de diversas formas, incluindo, entre outras: ações de identificação e erradicação de áreas de plantio, substituição de sementes para os ex-cultivadores, fiscalização de fronteiras, fiscalização de portos, monitoramento de aeronaves suspeitas, investigação de quadrilhas, monitoramento de movimentações bancárias suspeitas, operações ostensivas nos territórios controlados pelo tráfico, custodia dos condenados por tráfico, custas processuais, para mencionar apenas algumas das principais. Estas diversas ações envolvem a mobilização de recursos humanos e materiais da Polícia Federal, Polícias Civis e Polícias Militares estaduais, Ministério Público, Judiciário, sistema prisional, Forças Armadas – para mencionar apenas alguns órgãos públicos envolvidos diretamente na questão. Ninguém contabilizou com rigor os custos destas atividades, mas parece claro que elas consomem energia substancial das forças de segurança no Brasil, que poderiam se dedicar a outras tarefas caso tivéssemos políticas alternativas para lidar com a questão, como prevenção e tratamento, redução de danos ou mesmo o fim da proibição do uso recreativo da maconha, como tentado em Portugal, no Uruguai e em diversos estados norte-americanos.
Além de custos diretos, a política de guerra às drogas têm consequências indiretas elevadas para a sociedade. A lista de resultados indesejados do proibicionismo (externalidades) é extensa: número de policiais e civis mortos nos confrontos, anos de vida produtivos perdidos, pagamentos de pensões por invalidez e por morte pelo INSS, indenizações por invalidez e morte, gastos do sistema de saúde no tratamento médico aos feridos nos confrontos, tratamento psiquiátricos aos afetados, corrupção dos agentes públicos pelo tráfico, danos à propriedade do Estado e de terceiros durante as operações nas comunidades, impactos no desenvolvimento escolar das crianças nas áreas afetadas pelos confrontos, paralisação dos serviços e do comércio, estagnação econômica das comunidades onde ocorrem os confrontos, queda de produtividade no trabalho, efeitos intergeracionais da violência, estigmatização e marginalização dos usuários, diminuição do turismo em razão da violência, riscos de envolvimento do tráfico na política etc.
A literatura criminológica já identificou inúmeros efeitos deletérios de longo prazo do convívio cotidiano com a violência: perda de rendimento escolar, perda de produtividade do trabalho, empobrecimento geral das comunidades, queda de confiança nas instituições, perda de qualidade de vida etc. Alguns destes efeitos podem passar para as gerações seguintes, mesmo que estas não tenham sido submetidas diretamente à violência. Mesmo que não consigamos associar valores monetários a estes custos intangíveis, é importante ao menos reconhecê-los, pois ajudam a compreender que a real dimensão do custo da política de “guerra às drogas” pode ser muito maior do que a calculada.
A estimativa de custos é apenas um dos muitos aspectos que envolvem a avaliação de qualquer política pública. Este cálculo de custo-benefício é necessário para podemos avaliar se os mesmos objetivos não poderiam ser atingidos com custos e consequências menores, tanto para o poder público quando para a sociedade. Mesmo que uma política seja “eficaz”, é possível que existam outras políticas mais “eficientes”, quando comparamos o desempenho relativo de políticas alternativas para lidar com o complexo problema das drogas. Embora não disponhamos de dados concretos para avaliar a política de guerra às drogas no Brasil, as evidências parciais sugerem que é um retumbante fracasso: as pessoas no Brasil não estão morrendo de overdose, mas nos confrontos com o tráfico. Não há evidência de redução significativa no consumo de drogas nem no poderio das organizações criminosas, apesar do crescimento dos custos para o sistema de justiça criminal. Urge avaliar a estratégia e, se for o caso, ter a coragem de modifica-la!
Bibliografia
Bergen-Cico, Dessa K. War and drugs: The role of military conflict in the development of substance abuse. Routledge, 2015.
Buchanan, J. & Young, L. (2000) ‘The War on Drugs – A War on Drug Users’. Drugs: Education, Prevention Policy, 7(4), 409-422
Count the Costs: The War on Drugs: Creating crime, enriching criminals
Dana, Samy e Almeida, Sérgio. Pode não ser o que parece. Ed. Objetiva, RJ, 2017
Duke, Steven B., and Albert C. Gross. America’s longest war: Rethinking our tragic crusade against drugs. Open Road Media, 2014.
Pat Paterson and Katy Robinson. Measuring Success in the War on Drugs. William J. Perry Center for Hemispheric Defense Studies. Perry Center Occasional Paper, July 2014
UNODC. World Drug Repoort 2014.
Walsh, John M. Drug War Monitor. Are We There Yet? Measuring Progress in the U.S. War on Drugs in Latin America. DECEMBER 2004, WOLA BRIEFING SERIES
Werb D, Kerr T, Nosyk B, et al The temporal relationship between drug supply indicators: an audit of international government surveillance systems BMJ Open 2013;3:e003077. doi: 10.1136/bmjopen-2013-003077
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segunda-feira, 18 de dezembro de 2017
quarta-feira, 29 de novembro de 2017
Pagadores de impostos, uni-vos!
O Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels completará 170 anos em 2018. É um dos textos mais traduzidos e influentes da história e sempre é válido e prazeroso relê-lo de tempos em tempos. Menos pela agenda política preconizada ali, já defasada, do que pelo método de análise dos fenômenos históricos e socais, cuja utilidade heurística é reconhecida até hoje.
Seria pretensioso fazer aqui uma análise crítica do Manifesto, que já foi destrinchado por analistas muito mais competentes, como Harold Laski, Joseph Shumpeter e dezenas de outros nestes 170 anos. Com a vantagem de reler o Manifesto num momento mais avançado no tempo, permito-me alguns comentários sobre o texto, a luz do contexto atual.
Não fossem os comunistas, o capitalismo seria hoje muito menos humanizado. Salvar o capitalismo de seus excessos talvez tenha sido a maior contribuição do movimento. O decálogo de propostas elencados no Manifesto em 1848 se encontra parcialmente em vigor em praticamente todas as democracias ocidentais, ao menos os itens menos radicais como o imposto de renda progressivo, a taxação do direito de herança, a participação dos operários nos lucros, a redução da jornada de trabalho, a abolição do trabalho infantil, a reforma agrária, a criação de bancos nacionais que ofertam crédito estatal, a educação gratuita para todas as crianças em escolas públicas. Ao lado de propostas mais radicais - como a expropriação da propriedade privada, a centralização dos meios de comunicação e transporte, o trabalho obrigatório e o estabelecimento de exércitos industriais - são todas elas medidas presentes no Manifesto e adotadas quase universalmente nas democracias liberais. Boa parte da agenda do Manifesto, como lembra Shumpeter, contaria com a benção de J.S Mill – “afora a ideia hitlerista dos exércitos industriais”. As outras, felizmente, foram deixadas de lado.
As medidas adotadas foram, digamos assim, as medidas “paliativas”, que não tocavam na questão central da propriedade privada e das relações de produção. Para a burguesia, era a entrega dos anéis para a preservação dos dedos. A incorporação de parte palatável da agenda comunista acabou por esvaziar a parte mais radical. O chamamento do Manifesto à ação revolucionaria foi sendo tanto mais esvaziado quanto mais as reivindicações operárias nele contidas - com a colaboração dos comunistas e socialistas - foram colocadas progressivamente em pratica pelos governos social democratas e socialistas. A estratégia de alianças progressistas e de lutar pelas conquistas menores e imediatas que melhorassem a posição dos trabalhadores, ao final, corroeu o ímpeto revolucionário do proletariado, se é que ele algum dia existiu. O proletário tinha já algo a perder, além de seus grilhões.
Note-se de passagem como a estratégia das esquerdas no Brasil – que apostam frequentemente no quanto pior melhor e na sabotagem de projetos que podem beneficiar os trabalhadores apenas porque foram propostos pela oposição – está em franco desacordo com a estratégia preconizada no Manifesto, segundo o qual os comunistas deveriam se aliar às iniciativas que implicassem em melhorias aos trabalhadores. Se a situação dos trabalhadores não é melhor no Brasil e outros subdesenvolvidos, isto foi muitas vezes o resultado da ação míope dos partidos de esquerda, que deveriam ler mais Marx.
Se a agenda política do Manifesto ficou ultrapassada, como ferramenta para a compressão dos eventos históricos e como filosofia da história, tomando as devidas precauções, o materialismo histórico dialético ali esboçado é uma matriz de análise ainda útil para o cientista social. Ele desperta a nossa atenção para os vínculos existentes - entre poder político, relações jurídicas e cultura de uma sociedade e época - com a forma histórica de produção daquela sociedade e época. Para a tendência de que a educação, a justiça, os hábitos e demais elementos superestruturais desta sociedade sejam em grande parte influenciados pelos interesses dos detentores dos meios de produção e de que as ideias dominantes de uma época são geralmente as ideias da classe dominante. Finalmente, de que a oposição entre interesses de classes, frequentemente, é a chave mestra para entender a mudança histórica. Tirados os exageros retóricos – talvez incluídos no Manifesto em razão do propósito incendiário do documento – tratam-se de proposições que fazem sentido do ponto de vista lógico e empírico.
Marx não foi o primeiro a apontar estas relações, mas talvez tenha sido o que mais as enfatizou e desenvolveu em suas análises. É através do materialismo histórico que Marx mostra, por exemplo, o papel revolucionário que a burguesia desempenhou na história, dando um caráter cosmopolita à produção e ao consumo, eliminando os preconceitos medievais, através da revolução contínua da produção e do desenvolvimento da tecnologia: o Manifesto contém uma elegia à burguesia que nem autores liberais ousaram fazer.
Se como filosofia geral da história os conceitos presentes no Manifesto fazem sentido até hoje, o tempo nos mostrou que muitas das proposições ali formuladas estavam equivocadas e que o desejo de mudar o mundo frequentemente oblitera a capacidade de analisar o mundo.
A lista de equívocos, leituras reducionistas e predições caducas no Manifesto é grande e tiveram enormes consequências históricas. A revolução não ocorreu nos países capitalistas avançados, mas em países atrasados como a Rússia e a China. (o caráter não democrático destas experiências talvez dê razão a Marx e Engels, quando afirmavam não ser possível queimar etapas para a revolução...).
O capitalismo do século XIX parecia gerar crises cíclicas de superprodução, mas que com o tempo foram amenizadas com a regulação dos mercados, criação de instituições globais e acesso generalizado à informação. O socialismo real, ao contrário, levou a crises de abastecimento e à subprodução. Um século e meio depois das previsões cataclísmicas, o capitalismo não parece se dirigir a um estado terminal, ao contrário do que vimos ocorrer com a maioria dos regimes socialistas.
Os conflitos nacionalistas e religiosos do último século sugerem, por sua vez, que se a luta de classes é importante, ela está longe de ser o motivo único e exclusivo por traz dos conflitos (algo alias que Marx e Engels jamais afirmaram e é antes a leitura de marxistas de botequim). Em paralelo à identidade de classe, o operário também tem identidades de pátria e de religião, de gênero, de time, de bairro e centenas de outras simultaneamente. Lutam pelo interesse dos animais ou ambientais. Pela igualdade dos gêneros, contra a indústria farmacêutica, pelos direitos LGBT, contra o racismo e antissemitismo, pelos povos indígenas e contra a mutilação genital. Operários americanos são contra a vinda de operários mexicanos e operários protestantes contra a presença de operários islâmicos na Europa. A tal superestrutura e o jogo de interesses parece ser um tanto mais complexo e autônomo do que a pensada originalmente no Manifesto ou pelo materialismo histórico em geral. São “falsas identidades” criadas pela burguesia para enfraquecer a verdadeira identidade de classe? Quem define quais identidades são as mais relevantes?
A história parece ter assim muitos “motores”, para além da luta de classes. As ideologias têm alguma autonomia neste processo. Lideranças carismáticas e mesmo o acaso tem sido frequentemente outros motores independentes. De todo modo, coube a Marx e Engels o papel de mostrar a relevância da luta de classes como um eixo de interpretação frutífero para entender certos momentos da história.
Um dos principais equívocos da doutrina foi o entendimento de que não poderia existir harmonia de interesses entre capital e trabalho e que o jogo seria sempre um jogo de soma zero, onde um ganha aquilo que o outro perde. Este entendimento estava em parte baseado na falsa premissa de que o operário moderno, “em vez de elevar sua posição com o progresso da indústria, desce cada vez mais abaixo das condições de existência de sua própria classe”, o que tornaria a burguesia incapaz de ser classe dominante. Os indicadores econômicos e sociais sugerem que, ao contrário, houve neste século e meio um enorme avanço tecnológico e ganhos de produtividade que foram redistribuídos em benefício de todos (embora certamente mais para alguns e menos para outros...). Não se tratava necessariamente de um jogo de soma zero, mas de um jogo de ganha-ganha, que não dependia da superexploração da mais valia, do pauperismo da classe trabalhadora ou das colônias. É o que observou Shumpeter quando em 1949 escreveu “A Significação do Manifesto Comunista na Sociologia e na Economia”, para o Journal of Political Economy: o crescente peso social e político da classe trabalhadora – diz Shumpeter, “tem sido o resultado da crescente renda real per capita e portanto, a consequência de um desenvolvimento cuja possibilidade mesma o marxismo negava explicitamente”.
Por fim, o Manifesto expressa a ilusão ingênua de que a repressão necessária durante o período de transição do capitalismo para o socialismo desapareceria, depois de implantado o socialismo... O Estado é algo bem mais complexo do que simples comitê gestor dos interesses exploradores da burguesia no capitalismo ou mero gestor das coisas, no socialismo.
A história mostrou que o Estado pode ser utilizado para promover o desenvolvimento econômico e a justiça social, como ocorreu nas sociais democracias ocidentais. Mas também poderia converter-se – como em certos países - numa casta de funcionários autônoma que, mesmo sem a propriedade dos meios de produção - mas através dos impostos, sinecuras, pensões, aposentadorias, indenizações e regalias, persegue seus próprios interesses, em detrimento tanto da burguesia quanto do proletariado. Uma burocracia preocupada apenas consigo mesma, ineficiente, ociosa, elefantina, frequentemente corrupta, um obstáculo ao desenvolvimento econômico e a justiça social, sem os méritos da burguesia para revolucionar a produção nem os méritos do proletariado para inserir na agenda a humanização dos excessos do capitalismo.
Burgueses e proletários ao menos produzem alguma coisa. Através das instituições democráticas, é preciso recolocar o Estado brasileiro em seu devido lugar, de assegurador das condições para o desenvolvimento econômico e da justiça social. Caso contrário, ao invés de burguesia e proletariado, teremos apenas uma casta estamental, detentora de canetas e o do Diário Oficial, vivendo da extração de recursos de uma massa de miseráveis. Se Marx vivesse no Brasil de hoje seu brado talvez fosse, “pagadores de impostos, uni-vos!”.
terça-feira, 14 de novembro de 2017
quinta-feira, 9 de novembro de 2017
O que pensam os especialistas sobre políticas de segurança pública?
As políticas
de segurança pública não acompanham a gravidade da situação de segurança no
país. Apesar de avanços tímidos nas últimas décadas, parece consenso entre os
especialistas e operadores da área de segurança que faltam recursos humanos e
materiais, tecnologia, dados, instituições, leis, investimentos, integração,
eficiência, transparência, pesquisa. Faltam também conceitos, análises de
custo-benefício e políticas baseadas em evidências. Sobram, por outro lado,
ideologias e políticas mal concebidas ou mal implementadas, improvisos,
interrupções, interesses privados.
A lista de
deficiências é enorme e cada especialista é capaz de montar a sua própria
facilmente, em minutos. Se o diagnóstico das carências é razoavelmente comum, o
que dizer das propostas para melhorar a área de segurança? Existiriam alguns
consensos possíveis entre especialistas sobre o que fazer para melhorar? Esta
foi a questão que nos propusemos no início deste projeto organizado no âmbito
do Espaço Democrático.
Trata-se de
uma fundação partidária e neste sentido o propósito do levantamento não é fazer
um artigo para uma revista acadêmica – embora seja relevante – mas antes o de
tentar sugerir uma agenda mínima comum, lastreada em conhecimento e
experiências comuns, que pudesse ser adotada, ao menos em parte, pelos
candidatos às eleições de 2018. Queremos propostas que possam influenciar a
política de segurança pública e que possam ser defendidas por candidatos de
todos os partidos e matizes ideológicos, refletindo a diversidade dos
participantes consultados na pesquisa, também oriundos dos mais diversos
espectros políticos e ideológicos. Não se trata de uma agenda “de direita” ou
de “esquerda” ou pelo menos assim esperamos, quando afastamos da agenda, ao
final, as propostas que dividem os especialistas e nos concentramos naquilo em
que quase todos concordam.
Existe um
descolamento entre a sociedade e os partidos e instituições representativas.
Este afastamento também é perceptível na comunidade acadêmica, que prefere
frequentemente manter distância – em parte salutar – do debate político conjuntural
e da dinâmica governamental. Mas não é possível dar as costas para a política,
sob o risco de vermos cada vez mais as políticas de segurança sendo concebidas
e colocadas em prática por quem menos conhece o tema. Esperamos que esta
iniciativa contribua para estreitar as distâncias entre os mundos acadêmico e
político, nos quais coabito há mais de duas décadas.
De uma maneira
geral, os 86 especialistas consultados apoiaram a maioria das 89 propostas
listadas na pesquisa (73,6% de apoio, somando as categorias totalmente a favor
+ a favor). Alguns tópicos, contudo, receberam em média mais apoio do que
outros e isto é ilustrado de diferentes modos na tabela. As medidas de
prevenção foram as que receberam em média maior apoio (88,5%) seguida das
propostas de criação de novas instituições e das políticas federais. Inversamente, as propostas relativas a
mudanças legislativas, políticas municipais e com relação às drogas foram as
que receberam relativamente menor apoio, embora mesmo nestes casos a
porcentagem de apoio tenha sido superior a 50%.
As 89 propostas foram divididas em quatro blocos, de acordo com o grau de apoio dos especialistas: fortemente a favor, a favor, fracamente a favor e contra. No tópico abaixo destacamos algumas propostas dentro de cada bloco.
Os maiores consensos, como esperado, giram em torno de matérias pouco polêmicas ou propostas de “soma positiva”, onde ninguém perde e existem aparentemente um ganho coletivo: políticas preventivas, construção de bases de dados, pesquisas, planos de segurança com requisito para receber recursos federais, etc. Estão aí também algumas das políticas clássicas como policiamento comunitário, penas alternativas, participação da comunidade, que contam com a simpatia generalizada dos analistas.
Duas das medidas mais consensuais lidam com a questão das drogas: diferenciação legal entre usuário e traficante e liberação da maconha para uso medicinal. Chama a atenção o apoio a algumas medidas bastante concretas, como o chip de identificação das armas, bloqueadores de sinais nos presídios, fiscalização das fronteiras, uso das imagens das câmeras do setor privado e a proposta de criação da função do oficial de condicional. Destacaria aqui nesta lista o grande apoio manifestado com relação ao chamado “ciclo completo de polícia”, que os especialistas identificam como um dos aspectos mais problemáticos da existência de duas polícias no país. Existem diversas propostas diferentes de adoção de ciclos completos: por modalidade criminal, por área, por nível de governo, etc. Este aparentemente é um dos grandes temas para a discussão de qualquer reforma séria do sistema de segurança pública no país.
Embora não de modo tão expressivo como no primeiro bloco, parece existir um elevado grau de concordância entre os especialistas com relação as medidas agrupadas no bloco “a favor”. Chama a atenção neste segundo bloco a questão da legalização da maconha, vista com restrições por parte da sociedade, mas bastante apoiada pelos estudiosos do crime. Patente também aqui alguma preocupação com o controle das policias e do sistema prisional. Destaco uma antiga bandeira da área – a criação de um Ministério da Segurança Pública, separado do Ministério da Justiça – que poderia ser o guarda-chuva institucional adequado para avançar diversas destas políticas, muitas delas de alçada do executivo federal.
A maioria destas propostas do terceiro bloco, “fracamente a favor”, recebeu apoio dos especialistas, mas desta vez menos consensual. Significa que são necessários mais debates, pesquisas, avaliações baseadas em evidências, antes de inseri-las numa agenda comum capaz de angariar o apoio generalizado. Estão neste rol o uso das parcerias público privadas, as UPPs, a liberação dos jogos de azar, a adoção da Lei Seca, extinção do Inquérito Policial e outras medidas polêmicas. As medidas de repressão aos pequenos delitos na linha da teoria das janelas quebradas também ficaram nesta categoria, embora existam evidências consistentes de que melhoram a sensação de segurança e podem prevenir crimes mais graves. Note-se que se há consenso sobre a questão da integração das polícias estaduais, ele é menor no que diz respeito à unificação, passo mais radical. O mesmo pode-se dizer sobre as drogas: consenso com relação a legalização da maconha, mas não com relação às outras drogas. E muito embora se reconheça a influência do álcool como fator criminógeno, as opiniões dividem-se sobre o aumento das restrições ao consumo. Destaco aqui as propostas de ampliação do prazo de internação do adolescente infrator autor de crimes graves e do aumento da pena máxima de prisão para além dos 30 anos. Estas questões eram antes quase um tabu entre os teóricos da área, mas atualmente, ao que parece, já divide um pouco mais as opiniões, embora a maioria ainda se posicione contrariamente a elas.
Existem como vimos alguns consensos sobre o que não se deve fazer, reunidos aqui no último bloco, que denominamos “contra”, pois a maioria dos especialistas se manifestou contrariamente a estas propostas. Das 9 propostas que foram classificadas nesta categoria, 5 delas versam sobre modificações legislativas. As maiores oposições aparecem em relação à flexibilização do Estatuto do Desarmamento e à participação das Forças Armadas em ações de garantia da Lei e da Ordem. Também na lista a discordância com relação ao aumento do tempo para progressão de regime, a internação compulsória de usuários crônicos de drogas e a redução da maioridade penal.
Cabe à sociedade, à comunidade acadêmica e ao Congresso discutir e detalhar cada uma das propostas aqui elencadas, entre centenas de outras não mencionadas. Cada uma delas é complexa e mereceria um estudo a parte. Posicionamentos apressados e simplistas como “contra” ou “a favor” manifestados na pesquisa não são inferência segura para a adoção ou rejeição a elas.
Tampouco a intenção da pesquisa era essa. O objetivo antes era dar uma visão panorâmica e genérica sobre alguns dos muitos temas de segurança pública em debate, para que pelo menos possamos intuir, em linhas muito gerais, o que aqueles que se debruçaram durante anos sobre estes temas pensam sobre eles. Muitos temas são polêmicos mesmo entre os especialistas e outros vão frontalmente contra o que manifesta a “opinião pública”, geralmente bem menos liberal do que os acadêmicos com relação a temas como drogas e punição aos delinquentes.
Não se trata muitas vezes de uma agenda popular, assim como não são reforma de previdência, aumentos de impostos, cortes de gastos sociais. Só que as vezes são necessários. Partidos e candidatos que assumam algumas das propostas defendidas pelos especialistas podem perder votos, entre aqueles que preferem a adoção de medidas simplistas para a segurança pública. Mas é aí que se diferenciam os que estão dispostos a discutir seriamente a questão daqueles que simplesmente jogam para a torcida.
E falando de coragem, outro aspecto evidenciado na análise: mais polícia, leis mais duras, mais prisões, parcerias com o setor privado, políticas de tolerância zero, etc. são frequentemente associados a políticas conservadoras no debate político. Mas existem evidências de que algumas delas podem ter - em certos contextos, se usados com foco e parcimônia, etc., - efeitos positivos para a redução da criminalidade. As respostas, anônimas, sugerem que ao menos uma parcela dos especialistas reconhece este potencial, contrariando a opinião corrente dos seus pares. Aqui também é preciso reconhecer alguma coragem e honestidade intelectual, dos que fogem do politicamente correto com base em evidências de pesquisa.
Aqui apresentamos soluções alternativas, muitas polêmicas e alguma ideia de como são vistas pelos especialistas. Esperamos que os candidatos as levem em consideração nas próximas eleições e que tenham a coragem necessária para defende-las publicamente, mesmo nadando contra a corrente. Por outro lado, como sublinhamos, muitas delas são totalmente palatáveis para a opinião pública e ao mesmo tempo recomendadas por quem se dedica ao tema. Talvez a sociedade, partidos e acadêmicos possam se unir em torno de uma dezena delas, numa agenda comum para avançarmos no enfrentamento da violência e da criminalidade.
Abaixo, segue o link para a pesquisa completa:
https://www.researchgate.net/publication/320596324_Pesquisa_O_que_pensam_os_especialistas_sobre_seguranca_publica_Dados_provisorios
sexta-feira, 3 de novembro de 2017
Notas sobre o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017
Como de costume, gosto de fazer
alguns comentários por ocasião do lançamento do Anuário Nacional de Segurança
Pública, matizando a cobertura da imprensa sobre os dados e procurando tirar
algumas lições.
Antes de tudo, gostaria parabenizar
o FBSP e equipe pela nova edição do Anuário. O Ministério da Justiça divulga em
sua página dados criminais limitados, e de 2014. Por incrível que pareça para
um país com 61 mil homicídios, para ter informações mais detalhadas e recentes
sobre os números do crime, só consultando o anuário de uma ONG, que se utiliza
da LAI para coletar os dados junto aos órgãos públicos, que deveriam ser
transparentes com relação aos dados. E para dados de 2017, só através desta ING
(indivíduo não governamental, como
definiu alguém jocosamente este trabalho), que coleta mensalmente os dados
junto aos sites de algumas Secretarias de Segurança. Difícil fazer e avaliar
política pública assim.
Os dados do anuário são anuais e
relativos a 2016. Assim, não conseguem sempre captar as tendências mais
recentes, que começam a mudar a partir do segundo semestre de 2016. O resultado
é que quando o anuário é divulgado no final do ano, estamos olhando a situação pelo
retrovisor. O anuário mostra os roubos subindo em 2016 com relação a 2015. Se
olharmos para os dados mais atuais, que já refletem em parte a mudança no
contexto econômico, a análise muda parcialmente: roubos caem -9,7% em agosto em
São Paulo com relação ao mesmo período do ano anterior, desaceleram fortemente
no Rio de Janeiro, caem -12,8% em Minas, caem -3,6% no Rio Grande do Sul, diminuem -12,2% no Mato Grosso do Sul e -38,2%
no Mato Grosso. Diminuem -26,5% em Goiás
e -19% no Paraná. Roubo de veículos caem -21% no DF e -22% na Bahia (dados da
Capital). Em Rondônia, a queda é -10% com relação a setembro de 2017. A
tendência de queda nos roubos prevaleceu durante quase todo ano de 2017 no
Ceará, apesar do aumento de 8% em setembro. Em geral, como previsto pela
relação entre ciclos econômicos e crimes patrimoniais, boa parte dos Estados
mostra queda nos roubos e roubos de veículos com relação ao ano anterior.
Feitas estas observações, vemos
no anuário que as mortes violentas intencionais cresceram 3,8% no país. Mas não
foi generalizado: tivemos queda em 10 Estados. Quem puxa a alta são RJ, PE, PA,
RS, BA e RN. Rio de Janeiro puxa os números para cima não só nas mortes, mas
também nos outros indicadores criminais. De modo geral, a crise econômica
iniciada em 2014 e a crise fiscal e moral carioca explicam boa parte dos aumentos
observados nos dados de 2016. O impacto carioca nas tendências nacionais pode
ser notado em diversos crimes: furto e roubo de veículos crescem 7,3% em 2016,
puxados por uma alta de 21,8% no Rio (Em SP, houve queda de 0,2%). O Roubo de
carga é altamente concentrado no Rio e São Paulo e dos 4239 casos a mais em
2016, 2645 devem-se ao Rio. No roubo em geral observou-se um aumento nacional
de 13,9%, inflacionado novamente pelo caso carioca, onde o crescimento foi de
40% (em SP, aumento de 3,1%). Em resumo, 11 trimestres consecutivos de queda do
PIB, cortes nos orçamentos de segurança e a piora no desempenho do RJ explicam
em boa parte as tendências de 2016.
Os casos do aumento das mortes no
RJ e em PE chamam a atenção, pois vinham ambos de uma tendência de queda
consistente nos anos anteriores. Homicídios no Rio caíram durante quase uma
década, a partir de 2005. São bons exemplos de como a gestão pode influenciar
as taxas de criminalidade para cima ou para baixo, quando políticas de segurança
são adotadas e depois abandonadas. Desagregando os dados, vemos que as mortes
em confronto com a polícia são responsáveis por boa parte do crescimento das
mortes violentas no RJ. As mortes em confronto estavam estabilizadas na casa
dos 2 mil casos nos anos anteriores mas disparam depois da crise de 2014. Em
resumo, a crise aumentou a quantidade de roubos, que impactou nos confrontos
com a polícia, que por sua vez impactou nas estatísticas gerais de mortes
violentas. É importante detalhar o contexto das mortes, pois o tratamento do
problema das mortes em decorrência da atividade policial é diferente do
tratamento do problema dos homicídios em geral. São Paulo reduziu drasticamente
estas últimas e como consequência, parcela expressiva das mortes no Estado
ocorre hoje no contexto dos confrontos com a polícia.
Como também previsto pela teoria,
que sugere uma relação inversa entre estatísticas de tráfico e de roubo de
veículos, o anuário mostra uma queda nas estatísticas de tráfico de drogas de
-7,2% em 2016, enquanto os roubos de veículos cresceram 7,3%. Dos 25 Estados
analisados, encontramos tendências inversas entre tráfico e roubo de veículos
em 18. Parecem corroborar espacialmente o que vimos ocorrer temporalmente
quando tomamos os dados de Rio e São Paulo: quando roubo de veículo cresce as
estatísticas de tráfico caem e vice-versa. A diminuição de renda observada nas
crises, aparentemente, reduz o consumo de drogas como o de qualquer mercadoria.
Com menos consumo, caem as apreensões e ocorrências de tráfico. E aumenta de
demanda por peças de reposição de veículos no mercado paralelo, impactando no
roubo de veículos.
O anuário mostra uma redução
geral no orçamento destinado a segurança pública da ordem de -2,6%, esperado
num contexto de diminuição da arrecadação. Em São Paulo, a queda foi de -10,2%.
Apesar disso, o desempenho médio de São Paulo foi superior à maioria dos
Estados. Em longo prazo os cortes nos orçamentos implicam em diminuição do
desempenho, mas a relação entre ambos não é tão direta. São Paulo gasta 5,7% do
orçamento com segurança enquanto o Rio gasta 16%. O gasto per capita é de 245 reais
em São Paulo e de 550 no Rio. A análise não é tão simples, claro. Mas sugere
que gestão é elemento importante e que precisamos aprofundar os estudos da
relação entre gastos com segurança e tendências criminais. Como se gasta talvez
seja uma variável mais relevante do que quanto.
E por falar em qualidade dos
gastos, o anuário mostra que o custo médio anual das operações de Garantia da
Lei e da Ordem (GLO) executadas pelas Forças Armadas é de 255 milhões de reais.
O custo da Força Nacional de Segurança Pública está em torno de 212 milhões, de
modo que, somadas, gasta-se anualmente 467 milhões com estas operações. É muito
dinheiro invertido em políticas pouco avaliadas com relação ao custo-benefício.
Para efeitos de comparação, o Fundo Penitenciário Nacional gasta em média 428
milhões e o Fundo Nacional de Segurança Pública 513 milhões. Talvez fosse preferível
transferir recursos das operações GLO e da Força Nacional para os fundos
nacionais. O fato é que ninguém avalia estes gastos, que são insuficientes de
modo geral (o orçamento anual de SP equivale a cerca de 10 bi) e eventualmente,
mal alocados.
Em resumo, não temos informações
suficientemente amplas e atualizadas para propor e avaliar políticas de
segurança no Brasil. Quando existem, as avaliações não são feitas, por deficiências
de capacidade institucional do governo federal. Algo semelhante ocorre nos
Estados e não apenas na esfera da segurança. Isto quando vemos, através dos
dados do anuário, que gestão é um elemento crucial para obtenção de bons
resultados. Para que tenhamos boas novas nas edições futuras, algo urgente
precisa ser feito para sanar estas deficiências. A agenda de reformas é grande em
algum momento teremos que lidar com a espinhosa questão da reforma das polícias.
Mas aumentar o orçamento da segurança em nível federal, melhorar as bases de
informações criminais e recuperar a capacidade institucional do governo
nacional nesta área não é tão complicado assim. Falta disposição para desarmar esta bomba atômica.
quarta-feira, 1 de novembro de 2017
Link para o programa "entre aspas" na Globonews
Dia 31 de outubro estive com Renato Lima do FBSP comentando os últimos dados de criminalidade publicados no anuário brasileiro de segurança pública.
Abaixo link para a íntegra do programa
http://g1.globo.com/globo-news/videos/t/todos-os-videos/v/um-debate-sobre-a-crise-na-seguranca-publica-do-brasil/6257682/
debate no "entre aspas" sobre os dados do anuário
segunda-feira, 16 de outubro de 2017
Criminalidade começa a arrefecer no país
As estatísticas de roubo dos
últimos meses sugerem uma queda nesta modalidade criminal com relação aos anos
anteriores. Os roubos aumentaram 29% em
2016 com relação a 2015, mas diminuem em média 4,5% em 2017 quando comparado ao
ano anterior, analisando um grupo de 11 Estados. Contrariando a tendência, Rio
de Janeiro e Rio Grande do Sul tiveram crescimento dos roubos em 2017, ainda
que a taxas menores do que 2016. Apenas no DF o crescimento dos roubos em 2017
foi maior do que em 2016.
Movimento parecido pode ser
observado quando analisamos para este mesmo grupo de Estados os indicadores de
roubo e furto de veículos e furtos em geral: crescimento em 2013 e 2014,
ligeira queda em 2015, novo crescimento em 2016 e finalmente queda em 2017.
A tabela abaixo nos mostra a
variação da taxa de roubos, sempre em relação ao ano anterior e os dados foram
extraídos dos sítios das secretarias de segurança pública na internet e estão disponibilizados
no blog. (https://tuliokahn.blogspot.com.br/p/taxas-criminais-estados.html)
Alguns governadores e secretários
de segurança tem se jactado pelas quedas, ao contrário do que assistimos quando
a criminalidade cresce... Embora diferenças de desempenho entre as regiões
possam ser o resultado de políticas de segurança mais ou menos exitosas, o
cenário geral deve ser atribuído preponderantemente ao contexto macroeconômico,
uma vez as mudanças de tendência ocorrem mais ou menos ao mesmo tempo e num
grande número de Estados.
Não por acaso, como insistimos
sempre, estes movimentos cíclicos da criminalidade acompanham de perto os
ciclos econômicos, com a diferença de que os ciclos criminais antecipam em
alguns meses a economia, uma vez que os criminosos são os primeiros a sentir a
deterioração ou melhora da situação. Assim, a criminalidade começa a subir já
em 2013 e desacelera já no final de 2016, antecipando as fases do ciclo
econômico.
Correlacionando as séries
históricas de variações do PIB e variações dos indicadores criminais
encontramos correlações negativas e significativas entre ciclos econômicos e
criminalidade: R = -.36 com roubos em São Paulo, R = -.42 com crimes contra o
patrimônio em Minas Gerais e R = -.41 com roubo de veículos no Rio de Janeiro,
usando séries que vão de 56 a 84 trimestres, dependendo do Estado. Em outras
palavras, quando o PIB cresce o crime cai (ou cresce a taxas menores) e
vice-versa.
Para visualizar o fenômeno,
dividimos a série do PIB em trimestres onde o crescimento foi acima da média
(em vermelho) ou abaixo da média (em azul). Como o gráfico sugere, o crime cai
ou cresce bem menos quando a economia vai bem.
É provável assim que a situação
de segurança na maioria dos Estados melhore de forma generalizada nos próximos
meses, seguindo a melhora na economia, como ocorreu em anos anteriores. A
melhora da economia deve contribuir para incrementar também a arrecadação dos
Estados e indiretamente os investimentos em segurança pública.
O cenário das políticas de
segurança, ao contrário, não perece muito promissor. Pesquisa recente do Sou da
Paz sobre a atividade legislativa no Congresso em 2016 revelou a continuidade
de propostas legislativas na linha da “repressão e criminalização”. Na pauta do Congresso a flexibilização e
mesmo revogação do Estatuto do Desarmamento, de longe a melhor iniciativa federal
na esfera da segurança das últimas décadas. A Senasp e o Ministério da Justiça
perderam o papel de protagonistas neste debate, se é que um dia o tiveram e o
Ministério da Defesa ocupa este espaço – com boa intenção mas recursos pouco
apropriados. Para exemplificar a precariedade do papel do executivo Federal, até
mesmo para fazer um diagnóstico quantitativo do cenário criminal nacional,
ainda que precário como esse é preciso que alguém se dê ao trabalho de coletar
e analisar as informações, pois não são disponibilizadas em âmbito federal em
tempo hábil para uso conjuntural. A Justiça vê e lida apenas com os crimes
individualmente, mas é cega com relação à macro políticas de segurança (além de
cega com relação à imoralidade dos próprios vencimentos...). Em suma, nada a
vista de novo no plano Federal. Por que conseguimos influenciar os rumos da
economia, mas não o da segurança pública?
Vale aqui fazer um paralelo entre
as duas áreas. O governo federal consegue influenciar em alguma medida os rumos
da economia, pois conta com estrutura, recursos financeiros, competências
legais, instrumentos, quadros capacitados, dados, pesquisas, uma política clara
de juros, câmbio, inflação, entre outros recursos.
Segurança pública não tem sequer
um Ministério próprio. Por incrível que pareça, o acréscimo do termo “segurança”
ao nome do Ministério não fez a criminalidade ceder. Como dizia Oliveira Viana,
você pode ler todo um capítulo de filosofia do movimento diante de uma pedra
que ela não se mexerá um milímetro. A maior influencia que o governo federal
exerce sobre as taxas de criminalidade se dá indiretamente por intermédio da
política econômica, através de medidas anticíclicas. Política de segurança,
propriamente dita, não existe.
Em matéria de segurança o
executivo é aparentemente ultra liberal: o mercado, deixado a si próprio, se
encarrega de regular os ciclos criminais. Infelizmente este mercado é
imperfeito e a cada ciclo vemos avanços no patamar criminal. Deixado a si
mesmo, ele produz 60 mil vítimas por ano. Para que esta intervenção seja bem
sucedida, a segurança também precisará de estrutura, recursos financeiros,
competências legais, instrumentos, quadros capacitados, dados e pesquisas,
políticas claras. Estado mínimo aqui equivale à volta ao estado de natureza
hobbesiano. É preciso acrescentar a “reforma da segurança” à agenda de reformas
que o país necessita. Caso contrário bateremos novos “recordes” de produção de
cadáveres a cada novo ciclo.
quarta-feira, 11 de outubro de 2017
Teoria da dependência ou teoria da incompetência?
Tulio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático
Como bom comunista, Vladimir Ilyich Ulyanov, o Lenin, estava na Suíça quando escreveu O imperialismo, fase superior do Capitalismo, em 1916, em meio à Primeira Grande Guerra. Revelando a mais absoluta falta de consciência de classe, proletários de todo o mundo matavam-se mutuamente nas trincheiras europeias. E operários de elite dos países capitalistas adiantados, subornados com bons salários garantidos pelos superlucros auferidos das colônias e semicolônias, uniam-se às suas burguesias nacionais para explorar operários dos países atrasados. Para complicar ainda mais o cenário, a revolução socialista parecia mais provável na atrasada Rússia do que nos países capitalistas avançados, como Inglaterra e França, onde se deveria esperá-la.
O marxismo precisava, de algum modo, explicar esta nova e complexa realidade em que as classes não se comportavam do modo como deveriam se portar. O conceito de Imperialismo procurava dar uma explicação coerente para as guerras nacionais, para o aburguesamento da aristocracia operária e outros fenômenos não previstos originariamente.
O século 20 se iniciava e o capitalismo não entrara em crise. As empresas se expandiram dando origem a grandes monopólios, trustes e carteis. Lançando mão das estatísticas burguesas, Lenin mostra o fenômeno da concentração da produção nas mãos de poucas empresas, cada vez maiores. A mudança da quantidade gerava uma mudança de qualidade e o monopólio surgia inevitavelmente nesta fase superior do capitalismo, obedecendo a uma lei inexorável. O monopólio enterrava o capitalismo clássico da época da livre-concorrência, estabelecendo acordos de venda, partilhando os mercados, fixando a produção e estabelecendo preços.
Os bancos passavam pelo mesmo processo de concentração e assumiam um novo papel na economia, passando de meros intermediários a aceleradores dos processos de concentração de capital e constituição de monopólios. O entrelaçamento dos bancos com a indústria dava origem ao capital financeiro, que predomina sobre as demais formas de capital.
Mas nem tudo era negativo. Assim como Marx reconheceu o caráter revolucionário do capitalismo, Lenin enxerga nos trustes da fase imperialista uma forma superior de produção, que gera economias de escala e inovações tecnológicas. Em última análise, o monopólio promovia o progresso na socialização da produção, planificada por alguns poucos capitalistas.
De particular interesse para os latino-americanos é a explicação desenvolvida por Lenin sobre como o imperialismo cria uma rede internacional de dependências entre os países. Esta explicação inspirou posteriormente a criação da conhecida Teoria da Dependência, nos anos 1960, numa tentativa de compreender os entraves ao desenvolvimento dos países latino-americanos, pretensamente originados dessa situação de dependência. Curiosamente, a teoria atingiu seu auge de influência nos anos 1970, precisamente enquanto o Brasil crescia a taxas chinesas… Note que Lenin não fala que os países atrasados, colônias e semicolônias, tornam-se dependentes dos países mais avançados, mas fala de uma rede de dependências, pois os países desenvolvidos, neste mercado mundial criado pelo capitalismo, também dependem dos países atrasados para matérias-primas, mão de obra barata, mercado de consumo, envio dos excedentes de população e outras necessidades.
O capitalismo monopolista moderno, lembrava o camarada Lenin, não exporta apenas mercadorias, mas também precisa exportar capitais excedentes para os países atrasados. Nestes países, os lucros são maiores, pois os capitais são escassos e os salários, matérias-primas e fatores de produção são mais baixos.
Não se tratava necessariamente de uma exportação por vias violentas! Como descreve Lenin, “um bom número de Estados, desde a Espanha até os Balcãs, desde a Rússia até à Argentina, Brasil e China, apresentam-se, aberta ou veladamente, perante os grandes mercados de dinheiro, exigindo, por vezes com extraordinária insistência, a concessão de empréstimos” (p. 82). Isto criava relações especiais de transação econômica entre credores e devedores, relações especiais que corroíam as bases da livre-concorrência, criticava Lenin.
O mundo inteiro estava já partilhado entre as grandes potências – sejam elas velhas, como Inglaterra e França, potências capitalistas jovens, como Alemanha, Estados Unidos e Japão, ou países pré-capitalistas, como a Rússia de 1916 – e o capitalismo monopolista financeiro não fazia mais do que exacerbar esta partilha. As grandes potências tornavam-se, aos poucos, países rentistas e parasitários, que viviam às custas dos países atrasados, enredados por sua vez numa teia de dependências financeiras e diplomáticas. Assim, embora a rede de dependência envolva países avançados e atrasados, há uma relação de subordinação dos últimos, principalmente no caso das colônias, onde a subordinação tomava por vezes a forma de violência e perda de independência política.
O ano era 1916, um ano antes da Revolução Russa, e Lenin estava prestes a trocar “as armas da crítica pela crítica das armas”. Isto provavelmente explique a perigosa mistura de análise científica e exortação política existente no texto. A militância talvez tenha forçado o autor a adotar algumas falsas premissas e ofuscado sua visão do processo histórico. Entre elas as premissas de que a subalimentação das massas é uma pré-condição básica para o modo de produção capitalista. De que o capitalismo monopolista é incompatível com a esperança de paz entre os povos ou que o capital financeiro implica na perda de independência política dos povos submetidos a ele.
Lendo o livro um século depois, parece que o verde da vida superou o cinza da teoria leninista e que o social-chauvinista Kautsky tinha lá seus lampejos de razão. O capitalismo não precisa de massas esfomeadas, que produzem pouco e não consomem. Tampouco precisa da guerra entre os povos ou da subordinação política das colônias. Estes foram antes ciclos históricos do que necessidades intrínsecas ao modo de produção capitalista.
Apesar da concentração industrial e bancária, a concorrência continuou sendo a base do funcionamento do sistema. Sistema que gera riqueza crescente, de modo que não se trata de um jogo de soma zero onde o enriquecimento de um pais ou camada social se faz às expensas de outro país ou camada social. Existe “extração do excedente”, mas ele é grande o bastante para ser repartido e, de resto, não seria gerado sem o aporte de capital e tecnologia externos. Os países atrasados não estavam condenados eternamente ao atraso e a subordinação política, econômica e diplomática e de fato neste século as taxas de crescimento econômico e social em muitos deles foram superiores às dos países adiantados.
Talvez a culpa pelo subdesenvolvimento latino-americano não se deva tanto aos obstáculos externos, como as esquerdas imaginavam nos anos 1960 e 1970 e deva ser buscada também nas opções políticas e econômicas desastrosas tomadas pelas elites nacionais, inclusive as operárias. Embora sejamos todos “dependentes” de tecnologia e capitais e passando pela mesma conjuntura internacional, a taxa de crescimento do PIB em 2017 é de 3,7% na Bolívia, 2,8% no Uruguai, 2,7% na Argentina, 2,4% no Peru, enquanto no Brasil a expectativa gira em torno de 0,3% e na Venezuela ao redor de -18%. Talvez uma “teoria da incompetência” explique melhor nossas mazelas do que o imperialismo. O imperialismo é um tigre de papel. Somos nós mesmos os maiores culpados pelo nosso subdesenvolvimento e jogar a culpa no “imperialismo” e na “exploração dos países desenvolvidos” é uma forma de escamotear esta incompetência.
O imperialismo, fase superior do Capitalismo foi um dos livros relacionados na bibliografia do artigo A visão dependentista, do economista Luiz Alberto Machado.
segunda-feira, 9 de outubro de 2017
Falaram a verdade pra mim sobre o desarmamento
Reunião de artigos e pesquisas sobre armas de fogo no Brasil, escritos de 1999 pra cá.
Link para o livro na Amazon:
https://www.amazon.com/Falaram-verdade-sobre-desarmamento-Portuguese-ebook/dp/B0767Z92QN/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1507548829&sr=8-1&keywords=tulio+kahn
Prefácio
O título deste
livro faz uma alusão óbvia ao livro “Mentiram para mim sobre o desarmamento”, livro
de Benedito Barbosa Junior (Vide Ed, 2015), com quem dialogo democraticamente
sobre a questão das armas de fogo desde os anos 90. Nosso último encontro foi
em setembro de 2015, no Espaço Democrático, fundação na qual sou conselheiro e onde
mais uma vez o Estatuto do Desarmamento e seus efeitos foram discutidos de
forma cavalheiresca e respeitosa, como deve ser. A íntegra do encontro pode ser
lida aqui: http://espacodemocratico.org.br/a-sociedade-armada-e-mais-segura/
Graças ao big
data e ao algoritmo de recomendações, quem entrar no site da Amazon para
procurar por seu livro, verá que os leitores que o compraram também compraram
os livros: “Pare de acreditar no governo”, “Não, Sr. Comuna”, “Como ser um
conservador”, “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, “Maquiavel
pedagogo”, “O jardim das aflições”, “As ideias conservadoras”, “A nova era e a
revolução cultural” e “Ponerologia – psicopatas no poder”. Todos eles, como
sugerem os títulos, tratam do pensamento conservador e são claramente contra as
esquerdas e o pensamento de esquerda.
Existem várias
outras evidências desta associação espúria entre defesa das armas e pensamento
conservador. O livro tem uma fanpage no Facebook, de onde extrai 2184 comentários
de posts publicados entre maio e outubro de 2017. A preocupação com a segurança
pessoal e pública estava presente, é claro, mas em nada menos que 265 vezes
encontramos a presença nos comentários de termos como: ESQUERDA, COMUNISTA, SOCIALISTA,
LULA, VENEZUELA, ESQUERDISTA, COMUNISTAS, MST, COMUNISMO, DILMA, ESQUERDISTAS, MARXISTA,
BOLIVARIANA, ESQUERDOPATAS, MORTADELA S,
SOCIALISTAS, CENTRO-ESQUERDA, CHAVEZ, VERMELHOS, FREIXO, FHC e outros do mesmo
teor. Sem incluir ai as dezenas de mensagens favoráveis a Bolsonaro e outras
lideranças e ideias conservadoras. O que fazem estas expressões num debate
sobre desarmamento? Alguém acredita seriamente que há um complô comunista em
andamento e que o desarmamento civil é uma estratégia para que o golpe não
encontre resistência da população?
Eu, que
politicamente considero-me um centrista radical e que filosoficamente advogo
pela separação entre ciência e política, fico sempre me perguntando por que
raios a questão do desarmamento – que em boa parte envolve um debate técnico
sobre seus efeitos individuais e coletivos – foi polarizada desta forma:
defensores do desarmamento seriam invariavelmente “de esquerda”, tiranos que
conspiram contra o direito de defesa para chegar ao poder. A própria ideia do
título, “mentiram para mim”, passa uma ideia de conspiração. Mentir é ato
planejado, com objetivos claros. E, além disso, envolve a questão de saber
“quem mentiu”? Quem são “eles”? O governo? A ONU? Os institutos de pesquisa? Os
Russos? A CIA?
Esta
associação entre liberação das armas e pensamento conservador e restrição às
armas e pensamento de esquerda se explica por algumas razões: basicamente, ela
foi importada para o Brasil do debate norte americano e das divergências entre
Republicamos e Democratas na forma de tratar a questão. Encontramos ecos
nítidos deste debate na campanha do referendo de 2005, onde os defensores da
liberação das armas lançaram mão dos mesmos argumentos utilizados nos Estados
Unidos pela NRA (National Rifle Association) e pelos grupos conversadores para
combater a regulação das armas de fogo, embora não tenhamos aqui nada parecido
com a Segunda Emenda: tratar-se-ia de um direito individual inalienável, de uma
interferência indevida do Estado, da defesa contra a tirania, etc.
Acrescente-se a isso o fato do Estatuto do Desarmamento ter sido aprovado, por
acaso, no primeiro ano da gestão Lula. E adicionalmente o fato das entidades de
defesa dos direitos humanos terem se engajado neste debate em favor do controle
das armas de fogo. Em conjunto, este contexto ajuda a entender porque o debate
sobre as armas fugiu das mãos dos especialistas e das questões técnicas e
metodológicas e extrapolou para o debate político, onde raramente prevalecem os
argumentos científicos e racionais.
Apesar do título
do livro, não pretendo argumentar que o que apresento seja “a verdade” e os
argumentos e evidências contrárias sejam todas “mentirosas”. Diferente da
política, verdade em ciência é sempre probabilística e provisória, baseada nas
melhores evidências disponíveis. Os esforços dos acadêmicos convergem para o
falseamento das próprias hipóteses e para discussões sobre validade e
confiabilidade dos dados enquanto a lógica do pensamento político busca apenas argumentos e evidências
que suportem suas hipóteses. Na esfera política o que interessa é vencer o
debate e não estabelecer a veracidade dos fatos. Esta é a grande diferença
entre o debate na academia e na política e um dos motivos pelos quais não
existe um verdadeiro diálogo entre armamentistas e desarmamentistas.
Meu ponto aqui
é que a discussão deve ser feita em outras bases, levando em consideração
argumentos factuais sobre o impacto das armas de fogo na segurança pública e
não argumentos político ideológicos. Não existe nenhum complô comunista para
tomar o poder à força. O que existe são 60 mil mortos por ano no país, a
maioria com uso das armas. É ai que o debate deve se concentrar, baseado em
evidências empíricas e não numa cruzada anticomunista ou contra a tirania, que
explora medos imaginários.
Os artigos
aqui apresentados procuram analisar a questão das armas numa perspectiva
técnica ou a mais técnica possível, uma vez que neutralidade axiológica é
sempre um ideal a ser buscado, embora fique claro meu posicionamento e
militância em favor das restrições às armas de fogo. Não se trata de uma questão de direita ou de
esquerda, mas de saber o que é melhor, do ponto de vista da sociedade como um
todo, para a segurança pública.
Os textos são
apresentados em ordem cronológica, cobrindo o período de 1999 a 2017 e mostram
alguma evolução no tratamento e entendimento do tema. O material é variado,
incluindo artigos de jornal, entrevistas, trechos de pesquisas acadêmicas, posts
de blogs e outros. Acredito que no conjunto dão uma boa visão de como tem
ocorrido o debate sobre as armas nas últimas duas décadas no Brasil e
apresentam dados que em sua maioria corroboram sistematicamente o impacto da
regulação das armas na diminuição dos homicídios e os efeitos positivos
trazidos pelo Estatuto. É apenas neste sentido que o livro pode ser considerado
uma resposta ao “Mentiram pra mim sobre o desarmamento”. Uma resposta significa
que alguém do outro lado está ouvindo, o que nem sempre é o caso. Se as
evidências apresentadas conseguirem convencer alguns da importância de
restringir a quantidade de armas em circulação para a segurança, já terá valido
o esforço.
São Paulo,
outubro de 2017
domingo, 1 de outubro de 2017
Diga me com quem andas e eu te direi quem és
quarta-feira, 13 de setembro de 2017
quinta-feira, 31 de agosto de 2017
Da participação das Forças Armadas na Segurança Pública: nem panaceia nem golpe de estado
Da participação das Forças Armadas na Segurança Pública: nem panaceia nem golpe de estado
Os tanques voltaram, mais uma vez, a frequentar as ruas do Rio de Janeiro desde de julho último. A paisagem não é exatamente nova. Nos últimos 30 anos, as Forças Armadas foram chamadas para mais de uma centena de operações de garantia da lei e da ordem, diversas delas no próprio Rio de Janeiro, como durante as Olimpíadas, Copa do Mundo e outros grandes eventos. E o Rio não é exceção: São Paulo, ao que consta, é o único Estado que nunca solicitou o apoio das Forças Armadas para segurança pública.
As pesquisas sugerem que os cariocas, assustados com o crescimento da violência, apoiam a medida e acreditam que a presença dos soldados na rua diminui a criminalidade e aumenta a sensação de segurança. Não existem dados recentes, mas durante a Operação Rio, em meados dos anos 90, nada menos do que 89% dos cariocas aprovavam o uso das Forças Armadas no combate ao tráfico de drogas. A população aprova, os governos estaduais querem distribuir o ônus do fracasso na segurança pública e o governo federal quer mostrar que faz algo pela segurança.
Mas o que os militares acham disso? Pesquisa de doutorado da USP realizada em 2010 (Entre a Cooperação e a Dissuasão: políticas de defesa e percepções militares na América do Sul, Oscar Medeiros Filho) com estudantes das escolas militares sugere que as novas gerações de oficiais acham que o envolvimento dos militares na segurança tende a ser cada vez maior (84,6%) e que é viável (64%). Com a diminuição do risco das guerras convencionais, os futuros militares sentem a necessidade de novas missões para justificar seu papel na sociedade, como operações de paz, projetos sociais ou segurança interna: luta contra o terrorismo, contra o crime organizado, narcotráfico, tráfico de seres humanos, contrabando de armas e munições, delitos ambientais, etc. Os mais antigos temem a cooptação da tropa pelo crime organizado, a insegurança jurídica, o desgaste pela baixa produtividade das operações, os custos, a perda da reputação na eventualidade de ações abusivas ou que resultem em mortes. Mas missão dada é missão cumprida e como a penúria orçamentária é grande, os recursos adicionais podem ser importantes para amenizar a situação, exercitar a tropa e encher a gasolina dos tanques.
Se existe alguma evidência de que a população e os oficiais mais novos apoiam a iniciativa e de que a presença do exército contribui para a diminuir a sensação de insegurança, não existem dados conclusivos sobre os efeitos das operações de garantia da lei e da ordem (GLO) sobre os índices de criminalidade. Os dados mais recentes do Instituto de Segurança Pública, publicados em agosto, mostram um crescimento de 50% dos roubos no Rio em 2017, comparado ao mesmo período do ano anterior, o que alguns apressadamente sugerem ser evidência do fracasso das operações. A iniciativa talvez mereça uma análise mais rigorosa, controlando com outras áreas similares que não tiveram operações e pelas tendências anteriores. Pois se o crime aumentou 50%, é possível, pensando contrafactualmente, que tivesse aumentado 60%, sem a presença das Forças Armadas. Não é possível chegar a conclusões robustas sobre o impacto das operações apenas comparando indicadores criminais agregados, antes e depois das intervenções.
Mas a questão da participação das Forças Armadas na segurança envolve muitos outros aspectos, além do impacto sobre a sensação de insegurança e índices criminais. Trata-se de uma política que otimiza recursos ou os mesmos resultados poderiam ser alcançados de forma mais eficiente? Também aqui, falta uma metodologia para avaliar as operações de forma isenta e metodologicamente correta. Perguntado sobre os custos da operação numa matéria ao Estadão, um general responde que não sabe estimar ao certo, pois o cálculo “dependeria da quantidade de munição utilizada”! Os críticos das operações GLO, por sua vez, consideram como custos todos os salários, equipamentos e despesas do efetivo empregado, esquecendo-se que a maior parte deste custo existiria de todo modo, independentemente de onde e como estivessem empregados. A permanência do Exército no Complexo da Maré durante um ano e meio, segundo o Ministério da Defesa, custou 400 milhões de reais. Mas é provável que este efetivo custasse, digamos, 300 milhões, se tivesse simplesmente aquartelado. Ele não seria desmobilizado caso não houvesse a operação. A dificuldade reside em isolar os custos específicos da operação, descontando de alguma forma os “custos fixos”.
Na equação de custos-benefícios, o último termo tampouco é bem concebido. Se considerarmos apenas a quantidade de pessoas presas ou armas e drogas apreendidas, os benefícios certamente parecerão baixos, pois as quantidades foram quase sempre insignificantes. Mas como estimar benefícios menos tangíveis, como o aumento da sensação de segurança, os ganhos em experiencia para as forças envolvidas, o eventual aumento do turismo e do comércio, para mencionar apenas alguns? Certo, o tráfico volta a ocupar as favelas imediatamente após a saída do Exército, mas de quanto foi a perda monetária para o crime organizado durante a ocupação de 1 ano e meio da Maré? O fato é que as operações de Garantia da Lei e da Ordem são cada vez mais frequentes e, portanto, demandam análises mais sofisticadas dos seus custos e benefícios, feitas até o momento apressadamente. Nos Estados Unidos, a proteção externa de algumas unidades militares é feita por empresas de segurança privada, pois chegou-se à conclusão, após análises de custo-benefício, de que era mais barato e o treinamento e armamento utilizado mais adequados para a função. E o exército presta apoio logístico a operações de combate ao narcotráfico.
Para além das evidências empíricas, contudo, o tema envolve considerações de outras naturezas, pois têm implicações jurídicas, políticas, estratégicas, culturais entre outras.
Existe a questão da adequação de treinamentos e equipamentos. Com efeito, o treinamento regular da tropa não envolve treinamento para o policiamento ostensivo civil, algo que exige um mínimo de um ano numa academia policial estadual. A falta de conhecimento do terreno e do contexto social local são problemas adicionais, no caso de tropas de fora do Estado.
Não se sabe ao certo se as tropas brasileiras utilizadas nos últimos 13 anos no Haiti – caso costumeiramente invocado, junto ao SISFRON, para ilustrar a possibilidade de uso das F.A. no policiamento civil – tiveram algum tipo especial de treinamento. Mas para uma instituição de dispõe de um sistema de ensino do nível da Escola Superior de Guerra ou da Academia das Agulhas Negras, não parece difícil adequar o treinamento de parte permanente da tropa para funções de outra natureza, se esta for uma opção. Em 2005, a portaria 62 de 17/02/2005 do Ministério da Defesa criou o Centro de Instrução de Operações de Garantia da Lei da Ordem, em Campinas e em 2014 o Ministério editou um Manual de Garantia da Lei e da Ordem, para suprir as deficiências de treinamento, que ainda são muitas. Passo lentos estão sendo dados no sentido de preparar as forças terrestres para estas missões.
Militares envolvidos nas operações GLO no Rio criticaram recentemente alguns procedimentos operacionais civis, que, segundo eles, imobilizam a ação das Forças Armadas. Na guerra, inimigo avistado é inimigo abatido, caso não se renda. No contexto do policiamento civil, existe a questão da gradação do uso da força: aviso verbal, uso de arma não letal, tiro de advertência, reservado o uso efetivo da arma apenas como último recurso no caso de ameaça a vida do policial (soldado) ou de terceiros. As polícias (em tese), obedecem aos princípios da necessidade e da oportunidade no emprego da arma de fogo. Ao menos aprendem isso nas academias. É preciso mudar a chave e entender que estas regras de engajamento “imobilizantes” é que diferenciam o Estado Democrático de Direito dos regimes autoritários e mesmo nas guerras não estamos diante de um “vale tudo” pois vigoram as regras do direito internacional humanitário, que estipulam o tratamento digno aos náufragos, inimigos aprisionados e bens civis.
Os equipamentos, obviamente, também deveriam ser readequados, caso se opte pela conveniência de continuar com estas operações: um tanque não tem nenhuma serventia na perseguição a um trombadinha com uma bicicleta e o poder de paragem das armas utilizadas é totalmente inadequado para uso no policiamento civil.
Do ponto de vista jurídico, a Constituição em seu artigo 142 admite o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem sob determinadas condições e a legislação infraconstitucional estabelece que a atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem somente se dará “após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”, segundo o artigo 15 da Lei Complementar n. º 97 (1999). O emprego deve ser episódico, célere, numa área limitada e por período previamente definido. O papel deve ser subsidiário ao das polícias. O legislador provavelmente tinha em mente situações extremas como o estado de sítio ou estado de defesa ao prever este papel, de resto presente desde a Constituição de 1891.
Avaliando-se por cima as características das 115 operações dos últimos anos, percebe-se, porém, que nem sempre as operações atenderam aos quesitos da lei. Em operações de fronteira, onde sobra terra e falta efetivo policial estadual, ok, mas como fica o “episódico” e “célere” nestas operações de longa duração? Durante greve das polícias estaduais, vá lá, embora a Força Nacional tenha sido criada para isso. Mas para fazer revista em presídios? Para proteger a Esplanada dos Ministérios de manifestantes? Segurança durante os grandes eventos esportivos? Não me parece que nestas ocasiões os demais instrumentos de preservação da ordem estivessem esgotados, mas antes uma atuação preventiva. O fato é que o tipo de emprego que se vem fazendo das F.A. nestas situações não parece estar devidamente coberto pela legislação atual e se a intenção for continuar com esta política, será preciso modificar o marco legal para cobrir uma série de lacunas. Assim como está hoje, boa parte das 115 ações me parecem inconstitucionais, ao menos frente a interpretação usual do termo “excepcional”. (Diga-se de passagem, que nem as F.A. nem a Força Nacional de Segurança Pública estão elencadas entre os órgãos de segurança pública no art. 144, o que levanta dúvidas adicionais sobre a legalidade de seu emprego em ações de segurança).
Não se trata apenas da questão do “poder de polícia”. Parece claro que no momento em que são legalmente convocadas para atuar na preservação da ordem pública, nos moldes de uma polícia ostensiva, esta faculdade fica imediatamente implícita, pois é inerente à função. Se a constituição prevê os fins, deve prever os meios. Através de Projeto de Lei, o congresso tenta explicitar este poder, concedido durante o período dos grandes eventos.
Existem outros imbróglios jurídicos pouco claros. O que acontece se um soldado morre ou mata alguém no decorrer de uma operação? Os policiais militares recebem uma indenização em caso de morte e respondem a um tribunal civil caso matem. E o soldado? Recentemente, sugeriu-se que as mortes cometidas por soldados fossem julgadas pelos tribunais militares, criando uma desigualdade de situação com relação aos policiais militares.
Finalmente, sob o aspecto cultural, alguns analistas sugerem que o emprego regular das Forças Armadas nestas missões pode gerar a perigosa noção de que somente os militares são capazes de impor a lei e a ordem. Isto num contexto de crescente descrédito das instituições democráticas fundamentais como partidos, congresso e a presidência da república. O risco da “volta dos militares” me parece um tanto exagerado, ainda mais, como vimos, porque esta eficiência para impor a lei e a ordem está longe de ser corroborada pelas evidências. E uma coisa é a população enxerga-los como capazes de atuar na crise da segurança e outra, bem diferente, como capazes de administrar o país.
É verdade, a grave crise da segurança pública no Rio de Janeiro e no Brasil não será resolvida com participação das Forças Armadas na Segurança Pública. Mas tampouco apenas pelas polícias, como insistem muitos especialistas, críticos por princípio do uso das Forças Armadas na segurança. O problema é tão grave e multifacetado que só mesmo com a ação conjunta de todas as forças vivas da sociedade pode ser atenuado, como já insistimos diversas vezes. Se Trump ou a Coréia do Norte pudessem ajudar, seriam bem vindos! Os exemplos do Haiti e do SISFRON devem ser mais bem estudados, mas sugerem a viabilidade do uso em certas ocasiões e circunstancias. Desde que se resolvam os muitos problemas aqui apontados e outros esquecidos, as Forças Armadas também podem dar sua contribuição para a segurança pública, sempre excepcional, episódica e subsidiária, como de resto prevê a Constituição.
terça-feira, 29 de agosto de 2017
O patrimonialismo na América Latina
Neste artigo damos continuidade à série que a Fundação Espaço Democrático vem publicando sobre patrimonialismo, no intuito de aprofundar a utilidade heurística do conceito para compreender a sociedade brasileira atual.
Resenhamos aqui o livro de Ricardo Vélez Rodríguez, Patrimonialismo e a realidade latino-americana, onde o conceito de patrimonialismo parece emergir como uma grande teoria unificada da ciência política, capaz de explicar todas as mazelas históricas latino-americanas nos últimos séculos.
Até hoje, o patrimonialismo seria a grande explicação para o fato dos países latinos não terem se desenvolvidos do ponto de vista econômico e político. Rodríguez justifica sua posição escolhendo exemplos históricos tão dispares quanto o bolivarianismo chavista, o populismo de Menem na Argentina, a “ditadura” fujimorista no Peru, o regime de Papa Doc no Haiti, o getulismo e as últimas administrações petistas no Brasil.
A chave para o entendimento de todos estes regimes pseudodemocráticos, segundo o autor, estaria na tradição patrimonialista herdada da colonização ibérica e aperfeiçoada na região, em contraste com o modelo contratualista, que vicejou na Europa Ocidental e nas ex-colônias não-ibéricas.
Alguns traços fundamentais compõem este modelo de cultura política e organização societária: no tipo ideal de patrimonialismo, a organização estatal é tipicamente mais forte do que a sociedade, existe uma confusão entre o público e o privado na administração pública, o aparelho estatal é privatizado em benefício dos governantes e seus apaniguados, a cooptação política esvazia a representação dos interesses de classe. Aqui, conquistar o Estado não é um meio para a consecução de outros fins, de natureza pública, mas o fim em si mesmo. Além disso, predominam as práticas do nepotismo e do clientelismo na distribuição dos cargos públicos, o Estado, com um orçamento inchado através do confisco tributário do setor produtivo, é percebido como grande empresário, que produz riqueza diretamente através das empresas estatais ou garante o sustento do setor privado através de subsídios e sinecuras.
Sindicatos, movimentos civis e partidos são frágeis e facilmente cooptados pelo poder com recursos e cargos, oferendo pouca dissidência real aos governantes. As leis e a justiça são elaboradas e aplicadas casuisticamente em favor dos amigos e interesses particulares, ao invés de constituírem-se em normas impessoais. As “ideologias” políticas não passam de roupagem decorativa e os partidos nada além de blocos parlamentares aglutinados em torno de personalidades. Predominaria no meio social a ética do levar vantagem em tudo, o horror ao trabalho produtivo e a corrupção generalizada no âmbito da administração. Na sociedade em geral, reina a falta de solidariedade e predomina o espírito de clã.
Neste contexto de cidadania frágil emergem com frequência as lideranças carismáticas e messiânicas, muitas de feição marxista, e mais raramente alguns projetos modernizadores de inspiração liberal, ainda que de alcance limitado.
Toda esta superestrutura ideológica, condensada no conceito de patrimonialismo, seria o fruto, por sua vez, das condições de produção existentes na Península Ibérica e nas sociedades coloniais, marcadas pela ausência de feudalismo, pelo sistema de sesmarias, pelo modelo econômico escravista e posteriormente pelo latifúndio. Rodríguez reconhece que as sociedades latino-americanas mudaram drasticamente no último século, principalmente através dos processos de industrialização e urbanização. Mas argumenta que os valores – como o insolidarismo e o patotismo – não foram modificados. O espírito seria ainda o mesmo dos séculos anteriores. O atraso brasileiro teria suas raízes na cultura patrimonialista herdada do passado – pois “uma nação é aquilo que está na mente do seu povo“ – não obstante as mudanças das condições sociais. Assim, é neste campo da cultura e dos valores, sustenta o autor, que vamos encontrar as soluções para o desenvolvimento econômico e social do país.
Trata-se de uma leitura tentadora para explicar as mazelas das sociedades latino-americanas e, com efeito, encontramos ainda na política atual de nossos países diversos traços descritos no conceito de patrimonialismo.
Mas será possível enquadrar regimes e sociedades tão diferentes dentro de um mesmo grande marco teórico explicativo? Será que os dados empíricos, como os coletados nas diversas pesquisas de opinião pública, dão de fato sustentação à permanência desta cultura política patrimonialista? Não existiriam já diversos indícios da emergência de grupos e setores mais dinâmicos e menos atrelados ao Estado, portador de nova ideologia, onde destacar-se-iam valores como o mérito, o empreendedorismo, o livre mercado, e outros valores típicos das sociedades “contratualistas”? – para usar termos do autor. Será que a permanência de alguns traços patrimonialistas nas nossas culturas cumpre hoje os mesmos papeis que cumpriram outrora? As soluções dos nossos problemas virão tão somente da mudança destes valores? As conjecturas apresentadas pelo autor, embora estimulantes, são por vezes bastante questionáveis.
Existem diversas outras hipóteses para explicar o subdesenvolvimento econômico e social das sociedades latino-americanas: fragilidade das instituições, cenário macroeconômico internacional, herança dos recentes regimes autoritários, o populismo, modelo educacional adotado, desigualdade da renda etc. Afinal, temos também inúmeros exemplos históricos de países que estavam longe de ser modelos de sociedades “contratualistas” – a começar por Portugal e Espanha – mas que através de políticas consistentes e de longo prazo foram capazes de superar suas heranças históricas malditas. Valores tradicionais e traços culturais centenários foram alterados em questão de anos na China, Rússia e Índia, para ficar nos países lembrados pelo autor. O capitalismo, como reconhecia Marx, é altamente revolucionário quando se expande. Tudo o que é sólido se desmancha no ar.
Nos polos e setores onde ele se instalou, mesmo nas nossas sociedades, vemos a emergência de novas culturas e práticas políticas. Talvez o caminho mais acelerado para esta mudança cultural seja um choque de capitalismo (e de liberalismo), iniciado no âmbito da sociedade e não patrocinado pelo Estado. Basta que o Estado não atrapalhe. O segredo para a superação do subdesenvolvimento está, quiçá, em menos Estado e mais sociedade. Mas aqui já extrapolamos nosso propósito inicial. Patrimonialismo é certamente um conceito que precisa ser conhecido e explorado e ainda nos ajuda a entender muito da política e sociedade brasileira e latino-americana. Mas nem tudo é herança cultural colonial e dificilmente vamos superar nossas dificuldades se achamos que esta é a única ou principal causa de nosso subdesenvolvimento.
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