“Evidence based” é o conceito do momento na segurança
pública. O BID lançará em breve uma plataforma digital de políticas públicas de
segurança baseadas em evidências e em novembro a UFC organizará um seminário
sobre o tema. Há teses revendo o que se produziu no Brasil com evidências
robustas e os planos de governo usam o termo a torto e a direito. (
O contexto da pandemia talvez seja propício para explorar o
conceito pois deixou bastante claro a diferença entre as políticas baseadas em
ideologias – contra o isolamento social, máscaras e a favor da cloroquina – e as
políticas baseadas em evidências preconizadas pelas OMS. Brasil e EUA são
exemplos da primeira e não por acaso estão entre os casos mais graves de
disseminação da doença no mundo. Ignorar evidências mata.
As áreas da saúde e da educação foram talvez as primeiras a
abraçarem a ideia de políticas baseadas em evidências. São áreas que
tradicionalmente valorizam o conhecimento e se preocuparam historicamente em
montar bases de dados e monitorar indicadores, fazer avaliações, planejamentos
de longo prazo, estipulação de metas, análises de custo benefício, projeções e
outras ferramentas de administração com base em dados empíricos.
Nos países desenvolvidos o conceito de políticas “evidence
based” já chegou à área da segurança pública. As polícias disponibilizam dados,
fazem projetos piloto, contratam ou realizam internamente avaliações com rigor
científico, policiais frequentam as universidades ou especialistas acadêmicos
são contratados para trabalharem na polícia como analistas e avaliarem as estratégias
e táticas utilizadas. Fundos nacionais significativos são destinados a avaliar
as políticas de segurança.
O cenário no Brasil – com poucas exceções – é bem distante
disso. Políticas públicas de segurança raramente foram avaliadas
sistematicamente e seguem, como os criminosos, como “atividades de rotina”. E
posturas ideológicas frequentemente servem de sustentação para justificar
políticas equivocadas. É o caso por exemplo da política de flexibilização de
armas de fogo para a população. Embora as análises tenham mostrado à exaustão que
mais armas em circulação aumentam homicídios e suicídios, é comum que se
defenda a flexibilização argumentando para o filosófico “direito ao porte”[1].
Assim também, preponderam nos discursos sobre as políticas de segurança as
ideologias do “excesso de direitos aos criminosos”, da “leniência das punições”,
da “periculosidade da maconha”, da “eficiência das armas para se prevenir contra
os criminosos”, da “necessidade contínua de se contratar mais policiais”. “Polícia
comunitária” e “participação cidadâ”, por outro lado, são apenas slogans
publicitários e ineficientes pois polícia tem que correr atrás de criminosos. “Atendimento
social” é pra secretaria de assistência e não tem nada a ver com segurança. Ditados
como “bandido bom é bandido morto” e “em briga de marido e mulher, ninguém mete
a colher”, ilustram bem outros aspectos das ideologias reinantes nesta esfera e
que acabam por influenciar as políticas de segurança.
Desconfio que este viés filosófico-ideológico no trato das
políticas públicas, como já discutimos em outro lugar, são fruto do espírito
bacharelesco da administração pública brasileira, tão bem descrito pelos
sociólogos dos anos 30 e 40. Aquela tendência de reduzir tudo ao universo
jurídico, de imaginar que a palavra escrita e as “Leis” tem o poder mágico de
mudar o mundo, de tratar os casos individualmente, de abusar da retórica e dos
sofismas para resolver problemas concretos, de reduzir o comportamento humano
ao seu aspecto moral, de achar que a ciência da hermenêutica é superior às
outras ciências, auxiliares do Direito, do menosprezo pelos números e pelas
pesquisas. Embora exista hoje a jurimetria, o direito é ainda majoritariamente
uma ciência dedutiva e “text based”, enquanto políticas “evidence based” são do
tipo indutivo.
Esse perfil bacharelesco-filosófico dos administradores públicos
e legisladores brasileiros é comum a todas as áreas da gestão, mas bastante
pronunciado na área de segurança pública. Com efeito, é preciso ser bacharel em
direito para ser delegado da Polícia Civil ou da Polícia Federal, e grandes
juristas ou operadores do direito são os tradicionais escolhidos para chefiar o
Ministério da Justiça ou Secretarias de Segurança Pública. Reforma do Código
Penal e do Código de Processo Penal são entendidas no Brasil como políticas de
segurança e mais relevantes do que reformas estruturais no sistema de justiça
criminal.
O curioso é que segurança pública tinha tudo para ser
pioneira e abraçar com entusiasmo a ideia de políticas baseadas em evidência! As
polícias em todo mundo foram as primeiras instituições, ainda no século XIX, a ousarem
com a ideia de uma polícia técnico-científica, baseada em provas materiais e
evidências concretas. O trabalho do perito é similar ao de um pesquisador
científico: ele coleta, compara, analisa, conclui com base probabilística. Logo
após a criação, as polícias foram as primeiras instituições a adotarem o
reconhecimento pelas impressões digitais ou fotográfico. Os peritos trabalham há
anos com bancos de dados, comparações balísticas, exames de DNA, espectrômetros
de massa. Não por acaso, o procedimento policial chama-se “investigação”, como
na academia, e seu executor é um “investigador”.
Mas por alguma razão
que mereceria ser explorada, o espírito bacharelesco preponderou nas
instituições policiais, sobrepondo o espírito científico das primeiras polícias.
O problema da perícia foi usar estes recursos científicos para analisar apenas casos
individuais, negligenciando geralmente a análise das macro políticas de
segurança. A polícia científica se preocupou em saber se aquele indivíduo
estava intoxicado no momento do assassinato e não com o papel do álcool como
fator de risco para a segurança. Se o ferimento naquele cadáver foi feito por
instrumento perfuro-contundente e não com a contribuição das armas para a
violência. Ficaram no micro e deixaram a macro política de segurança nas mãos
dos doutores juristas, que usam gravata e se expressam melhor do que
engenheiros ou biólogos. Como sempre, não basta conhecer, é preciso saber
vender sua expertise com convicção. É o que os advogados aprendem a fazer no júri,
mesmo que o cliente seja culpado (ou a política preconizada seja equivocada...).
A ideia de aplicar as técnicas da ciência e dados empíricos para
a avaliação da macro política de segurança começou a tomar força a partir dos
anos 80, em razão de um conjunto de fatores. Houve uma convergência entre uma
massa de cientistas sociais se interessando pelo problema da criminalidade e da
violência, barateamento de computadores e softwares, disponibilização pública
de dados, abertura na gestão das instituições de segurança, crise nas políticas
tradicionais de segurança, quando a sociedade se deu conta que contratar mais
policiais e construir mais presídios não estava sendo o suficiente para lidar
com a criminalidade. Desde os anos 30 tivemos cientistas sociais analisando
crimes e políticas de segurança com base em estudos empíricos, mas de modo
episódico. Nos anos 80 em diante assistimos à massificação do fenômeno nos
países desenvolvidos e nos 90 a tendência chega ao Brasil. Alguns cientistas
sociais chegaram mesmo a ocupar cargos de relevância na gestão policial de
alguns Estados e a palpitar sobre políticas de segurança....A diferença é que chamávamos
a prática apenas de “análise estatística” e éramos somente sociólogos ao invés de
“data scientists”
A partir desta época passou a ser possível testar algumas
teorias criminológicas e avaliar as estratégias de segurança. A ciência então
passa a analisar não apenas criminosos individuais, mas padrões coletivos. Foi
deste caldeirão que surgiram ideias como policiamento orientado a problemas,
policiamento de hot spots e hot times, fiscalização da desordem física e
social, policiamento preditivo, o uso de pesquisas de vitimização, análise das “jornadas
para o crime”, identificação de fatores de risco e fatores protetivos,
políticas preventivas como as terapias cognitivas, os algoritmos para
priorização do atendimento de mulheres vítimas da violência e centenas de
outras estratégias e táticas para lidar com o crime.
Os cientistas sociais começaram a mostrar um quadro geral da
segurança pública que os inquéritos e laudos individuais não permitiam ver: as
áreas da cidade não são igualmente propensas ao cometimento do crime, existem
perfis específicos de criminosos e vítimas, álcool e armas são fatores de risco
relevantes e assim por diante. Este conhecimento serviu de fundamento para
traçar políticas de segurança mais eficientes e eficazes.
O fato é que o uso de evidências científicas para avaliar e
traçar políticas está longe de ser uma novidade nas polícias, onde existe toda
uma longa tradição de investigação forense, que foram tratadas como ciências auxiliares
do direito, espelhando a hierarquia da organização policial.
Creio que a tendência daqui para frente – e a epidemia
talvez contribua para isso – é que todas as políticas tenham que ter, obrigatoriamente,
algum fundamento teórico e empírico para que sejam adotadas em larga escala e financiadas
com recursos públicos. Alguns estados norte americanos adotaram regras que
punem financeiramente os gestores que ignorarem as evidências existentes, ao
implementar uma política pública. As novas gerações de policiais são muito mais
abertas para a sociedade e a academia em particular, mas é preciso maior entrosamento,
estimulando policiais a frequentarem as universidades e intercâmbios com
institutos de pesquisa.
Parte significativa dos recursos deve ser reservada para estudos,
bases de dados, avaliações, monitoramento de indicadores, seminários, treinamentos.
Isto também faz parte, em sentido amplo, do trabalho de “Inteligência”, que não
se resume a colher informações sobre criminosos. A ampliação das políticas de
segurança baseadas em evidências pelas polícias são uma garantia para a sociedade
de que as instituições estão maximizando seus recursos.
[1] Os
homicídios vinham em queda nacionalmente, depois do pico de 2017. A situação
começa a se inverter no segundo semestre de 2019, quando se inicia novo ciclo
de alta, simultaneamente, em diversos Estados. Não por acaso, este ciclo de
crescimento coincide com a disparada dos novos registros de armas, depois que o
governo federal criou 11 decretos sobre o tema em 2019. Há diversos fatores explicativos
– como os confrontos entre traficantes no Ceará - mas o resultado era mais do
que esperado, com base nas evidências colhidas nas pesquisas sobre o impacto
das armas nos homicídios.
Nenhum comentário:
Postar um comentário