Em artigo recente mostrei como o pico
das séries criminais no Brasil parece ocorrer por volta de 2016 e 2017 - depois
de dois anos de aguda contração na economia. Analisando por modalidade
criminal, vimos que roubo a instituição financeira e tentativa de homicídio
caíram a parir de 2015, furto de veículos e roubo seguido de morte a partir de
2016, homicídios, lesão corporal seguida de morte, roubo de carga e roubo de
veículos desde 2017. (Kahn, 2022 – Sensação de insegurança e criminalidade em
queda. https://www.linkedin.com/feed/update/urn:li:activity:6912794055009542144/)
Discutimos também nos últimos anos em
diversos artigos algumas hipóteses para a queda dos homicídios no Brasil e que
podem se aplicar agora também aos demais crimes violentos, também em queda após
o pico de 2017, como temos mostrado: demografia, ciclos econômicos, regressão à
média, securitização responsiva, etc.
Entre as hipóteses mais plausíveis há
uma conjectura segundo a qual a migração dos crimes violentos para os crimes
digitais se deveria a mudanças de tecnologia, que por sua vez estariam
induzindo a mudanças na atividade de rotina. Entre estas mudanças tecnológicas estão
a proliferação de celulares, o acesso praticamente universal à internet e o
aumento do tempo dedicado pelos jovens aos jogos on-line, redes sociais e serviços
de streaming. Estas novas rotinas
produziram recentemente mudanças bruscas no estilo de vida, diminuindo a
motivação dos agressores e as oportunidades de contato entre agressores e
vítimas.
A teoria do crime como atividade de
rotina diz que para que um crime ocorra é preciso que ofensor e vítima se
encontrem num determinado espaço (pouco protegido) e tempo. Pelo menos esse é o
caso para os crimes de contato. O avanço das novas tecnologias impõe uma
revisão da teoria uma vez que o encontro físico entre agressor e vítima
tornou-se secundário. A hipótese é que a proliferação de celulares,
especialmente entre os jovens, é tão intensa e seu uso tão intensivo, que estes
encontros entre ofensores e vítimas estão deixando de ocorrer com tanta
frequência como antes. (por outro lado, é uma boa explicação para o crescimento
do roubo e furto de celulares). Menos interação social implica em menos
conflitos e, por conseguinte, menos homicídios. O fenômeno é mundial e aparentemente
também se observa em algumas partes do Brasil, de uns anos para cá.
Vejamos alguns dados sobre o fenômeno.
O celular é a principal forma de conexão com a internet e redes sociais.
Segundo a pesquisa Global Digital Repport de 2022, o tempo médio diário global
dispendido nos celulares é de 4 horas e 48 minutos. Os brasileiros lideram o
ranking de uso, com uma média de 5 horas e 25 minutos. Segundo a pesquisa, no
Brasil, 77% da população acessam a Internet e o uso é intenso. Enquanto o tempo
médio diário global na Internet é de 6 horas e 58 minutos, no Brasil o tempo
online é 10 horas e 19 minutos diários, atrás apenas da África do Sul e das
Filipinas. Desse total, as pessoas dedicam em média no mundo, 2 horas e 27
minutos às redes sociais, enquanto no Brasil, chegamos a 3 horas e 41 minutos
diários. As pessoas ficam online principalmente para buscar informações (61%),
manter contato com familiares e amigos (55%) e ficar atualizado (53%).
Em
artigo de 2019 comentei este intenso crescimento, identificado pelo IBGE e a
hipótese da migração: “De acordo com os dados da pesquisa TIC do IBGE de 2018,
em 2008 apenas 34% da população brasileira tinha acesso à
internet. Dez anos depois, este número dobrou. Em 2018, 69,8% da
população tem acesso a internet. Nas classes A e B esta porcentagem supera os
90%. Isto representa 127 milhões de pessoas ou 46,5 milhões de domicílios com
acesso a internet. Proporcionalmente, o crescimento foi maior nas classes C,D e
E, embora a penetração absoluta ainda seja menor nos grupos de renda mais
baixos.
Entre
os jovens de 20 a 24 anos 88,4% tem acesso à internet e a grande maioria, 97%,
acessa a internet pelo smartphone. No sudeste, 76,5% utilizam a internet, em
comparação com 60,1% no Norte e 58,4% no Nordeste. Esta distribuição se encaixa
no fato da criminalidade ter caído mais no Sudeste e menos no Norte e Nordeste.
Não
só o acesso à internet cresceu como também o tempo que as pessoas passam
conectadas na rede, especialmente os jovens. Segundo a pesquisa We are
social de 2019, o brasileiro passa em média 9 horas e vinte minutos
conectados a internet, por dia. Deste tempo, 3:30 minutos são gastos acessando
as redes sociais. Somos o segundo país no ranking mundial de tempo gasto na
internet. Regra geral, nações em desenvolvimento passam mais tempo na internet
do que nações desenvolvidas. Isso ocorre porque eles têm população mais jovem,
cuja permanência diária na internet é maior do que a média da população.
O
elevado nível de acesso e o tempo gasto na internet explicam porque o Brasil
está nos primeiros lugares do ranking de crimes cibernéticos do mundo (somo
2,8% da população mundial, mas cerca de 5% da origem dos ataques cibernéticos
no mundo) e ajuda a entender também a predileção dos criminosos, em
geral jovens, pelos smartphones. A hipótese é de que este aumento dos
celulares, do acesso à internet e tempo gasto na internet, deslocou parte dos
criminosos para os crimes digitais”. (Kahn, 2019.Ladrões e vítimas no
ciberespaço: internet, mudança de estilos de vida e queda dos roubos, in
Segurança Pública: diagnósticos e prognósticos - 2019 eBook Kindle). No artigo
mostrei como a queda do roubo de veículos nos Estados guardava uma correlação inversa elevada
(r=-.71) com a porcentagem de jovens com acesso à internet.
Os dados de explosão dos estelionatos
no país reforçam a ideia de que é possível que estejamos passando de uma
transição dos crimes de contato – que são potencialmente mais violentos – para
os crimes digitais. Se a hipótese for correta, deveríamos observar uma
diminuição da criminalidade violenta nas regiões onde o acesso à internet foi
mais intenso e precoce. Embora os crimes digitais não tenham fronteira
geográfica, é uma possível explicação para o fato dos homicídios e outros
crimes terem começado a cair antes no Sudeste e apenas tardiamente no Nordeste
e Norte.
Para uma minoria de ofensores
conectados e mal intencionados, abriu-se um novo e imenso mercado de
oportunidades criminais. Há uma discussão sobre se se trata de antigos
criminosos que passaram a adotar um novo modus
operandi ou de uma nova geração de criminosos, mas não temos informação
suficiente para esclarecer o ponto. Tampouco sobre se estamos lidando com
criminosos isolados e eventuais ou quadrilhas organizadas. Mal começamos a
mensurar a magnitude do fenômeno e ainda a menos a estudar suas
características.
No Rio de Janeiro os estelionatos aumentaram
103% entre 2018 e 2021, no Rio Grande do Sul 274%, no Espírito Santo 230%, no
DF 186% e em Santa Catarina, nada menos que 288% no mesmo período. O
crescimento médio nos cinco estados foi de 201% no período, quando os
estelionatos passam de 100 para 300 mil casos anuais. Dados dos dois primeiros
meses de 2022 sugerem que a média mensal de casos continua crescendo.
Infelizmente apenas alguns Estados disponibilizam os dados de estelionatos ou
de crimes digitais, mas é bastante provável que o fenômeno seja nacional. Note
que a epidemia apenas exponenciou um fenômeno pré-existente, levando mais gente
a ficar em casa, acessando a internet através de computadores mais
desprotegidos do que nas empresas ou escolas.
Os crimes digitais podem englobar também
os furtos e roubos, mas os mais comuns são as diversas modalidades de
estelionatos, onde o crescimento é mais visível. O artigo 171 do Código Penal
define estelionato como “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em
prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício,
ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.”, com pena de 1 a 5 anos de reclusão
e multa. Mudança importante ocorreu em 2019, através da Lei 13.964 de 2019,
conhecida como Lei Anticrime, que estabeleceu que o crime de estelionato não é
mais de ação penal pública incondicionada, mas sim pública condicionada à
representação. Em outras palavras, deveríamos esperar uma diminuição no número
de casos reportados à justiça, mas presenciamos justamente o contrário. É
provável que o crescimento vertiginoso na quantidade de casos tenha induzido
esta mudança na legislação.
Para tentar conter o avanço do
fenômeno, o legislativo fez o de sempre, ou seja, procurou aumentar a pena para
o estelionato. O Congresso apresentou vários projetos como o 2068/20, PL
4554/20 e o Projeto de Lei nº 2905/2021, para aumentar as penas para o crime de
estelionato, com agravamento de pena “se a fraude é cometida com a utilização
de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio
de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico
fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.” Finalmente, uma
nova lei sobre o assunto (14.155) entrou em vigor em maio de 2021. https://www.in.gov.br/web/dou/-/lei-n-14.155-de-27-de-maio-de-2021-322698993. É preciso
uma analise rigorosa dos efeitos destas propostas, mas a julgar pelo gráfico
acima e pelo histórico dos “aumentos de pena” no país, a proposição não
intimidou muito os estelionatários...
É preciso também aprofundar o estudo
do fenômeno e pensar em medidas preventivas – alertas para a população, uso de
tecnologia, melhoria na investigação e monitoramento do problema, etc. - que vão além do aumento das penas. Uma
das dificuldades na prevenção ao estelionato é que existem dezenas de tipos
diferentes de golpes. Assim, por exemplo, segundo o Observatório de Segurança Pública
do Mato Grosso, os golpes mais comuns em 2021 foram a clonagem do Whatsapp
(27%), golpes por sites de comércio eletrônico e redes sociais (21%); transação financeira sem autorização do
titular, como o saque do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), auxílio
emergencial ou empréstimo (12%); boleto e código de barra falso (4%); cartão
clonado (4%); SMS ou Link falso que quando acessado furta os dados da vítima
(2%); outros golpes (cheque clonado, depósito com envelope vazio, documento
falso), com 2%; e golpe do motoboy (1%). Entre os golpes mais comuns, segundo a
FEBRABAN, estão o da “falsa reputação”, a pirâmide financeira, o golpe do falso
funcionário do banco, falso motoboy, falso leilão, o “pisching”, golpe do
extravio do cartão, do delivery, entre diversos outros.
Desnecessário dizer que o prejuízo
potencial para as vítimas destes golpes supera em muito os valores que podem
ser perdidos com o roubo de uma carteira ou mesmo de um carro ou residência. Para
o criminoso, a punição é menor e bem menos arriscada do que para roubo.
Tampouco é preciso intermediários para transformar o fruto do crime em
dinheiro. Com o processo de securitização, veículos e residências são cada vez
mais difíceis de roubar. Em resumo, mão é preciso ser um grande calculador
racional para entender a troca dos roubos pelo estelionato.
O aspecto positivo, se é que existe, é
que se realmente temos uma migração, então os crimes violentos de contato podem
entrar numa tendência duradoura de queda. Ainda é cedo para adiantar e talvez
estejamos apenas diante de um ciclo de queda, mas é possível que em alguns anos
o Brasil passe por algo parecido com que vem ocorrendo nos países
desenvolvidos, onde a criminalidade tem caído sistematicamente nos últimos 20
anos: homicídios, arrombamentos, roubos de veículos diminuíram intensamente na
Europa Ocidental, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão e
diversos outros em todo o mundo. A exceção por lá, como aqui, são os crimes
digitais e os roubos/furtos de celulares, que cresceram em muitos países. Estas
tendências são corroboradas não apenas pelos dados oficiais, mas também por
pesquisas de vitimização e fontes paralelas ao sistema de justiça. (Farrel,
2014; Farrel, 2018; Sidebotton, 2018; Matews, 2018).
Sempre teremos alguém querendo vender
o Pão de Açúcar e cartões de loteria premiada e gente inocente o suficiente
para pagar por eles. As novas tecnologias apenas abriram novos mercados para
uma prática milenar enquanto fecharam outros mercados, reforçando a proteção de
veículos e residências. Criminosos, como todos nós, se adaptam aos novos
tempos.
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