Tulio Kahn
O IBGE e o MEC fazem desde 2009
uma pesquisa nacional com estudantes de 13 a 17 anos de idade sobre saúde
física e mental, a PeNSE (Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar). Trata-se de
uma pesquisa amostral representativa onde os estudantes preenchem de forma
anônima um formulário eletrônico sobre diversos temas, tais como escolaridade
dos pais, inserção no mercado de trabalho e posse de bens e serviços; contextos
social e familiar; fatores de risco comportamentais relacionados a hábitos
alimentares, sedentarismo, tabagismo, consumo de álcool e outras drogas; saúde
sexual e reprodutiva; exposição a acidentes e violências; hábitos de higiene;
saúde bucal; saúde mental; e percepção da imagem corporal, entre outros
tópicos. https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/justica-e-seguranca/9134-pesquisa-nacional-de-saude-do-escolar.html?=&t=o-que-e.
A última edição foi realizada em 2019 com mais de 165 mil alunos de escolas
públicas e particulares de todo o país.
Existem diversas questões relacionadas
a segurança nas diferentes edições, perguntando sobre vitimização por agressão,
sensação de insegurança, bullying sofrido e praticado e a pesquisa permite
testar inúmeras teses criminológicas interessantes. Uma delas é a relação entre
violência e exposição à televisão, tema que venho aprofundando nos últimos
tempos no projeto Efeitos da Mídia Violenta (http://dx.doi.org/10.13140/RG.2.2.12736.81927).
A PeNSE são detalha infelizmente o tipo
de conteúdo assistido na TV, mas permite estimar a quantidade de horas diária
de exposição.
O formulário pergunta aos
estudantes “quantas horas por dia você assiste televisão (sem contar sábado,
domingo e feriado)” e recodificamos a questão para formar quatro grupos: 1 – dos
que responderam não assistir televisão e que representa 25,5% dos
entrevistados. O grupo 2 é o mais frequente, com 52,8% e é formado pelos que
assistem entre 1 até 3 horas por dia de TV. No terceiro grupo (14,9%) estão os
que assistem mais de 3 até 6 horas por dia de TV e finalmente, no grupo 4 (7,8%)
estão os que assistem mais de 6 horas de TV por dia.
Uma exposição excessiva à TV – em
especial ao conteúdo violento – já foi associada a inúmeros efeitos maléficos,
como sedentarismo, hábitos alimentares ruins, depressão, ideação suicida,
bullying, uso de drogas, vitimização e comportamento agressivo, entre diversos
outros efeitos.
O problema aqui, como sempre, é
que uso excessivo de TV pode ser influenciado por muitos fatores diferentes:
depressão pré-existente, falta de supervisão familiar, ausência de alternativas
de lazer, baixa renda, etc. Assim, a relação entre exposição à TV e estes
efeitos deletérios pode ser espúria e é preciso controlar a relação por uma
série de variáveis, que podem estar mascarando ou superestimando o “efeito
puro” da exposição à TV. O ideal seria construir um modelo de análise mais
complexo (como uma regressão logística) que levasse em consideração estes
controles, mas esta é uma tarefa para uma pesquisa mais demorada.
Neste artigo apresentaremos
apenas os resultados de tabulações cruzadas entre tempo de exposição à TV e
outras variáveis de interesse da Pense 2019, controlando apenas por idade do
estudante ou nível sócio econômico, usando a posse de carro por algum membro da
família como uma proxy para renda. Trata-se de uma análise simples e sujeita a
erros, mas que pode fornecer algumas pistas interessantes para aprofundamentos
posteriores.
Uma primeira constatação
interessante é que a relação entre exposição à TV e os efeitos maléficos não é totalmente
linear. Ao contrário, não assistir televisão pode ser quase tão prejudicial
quanto assistir muita televisão. Com frequência os piores resultados nos
cruzamentos se manifestaram justamente naquele grupo de ¼ de estudantes que
disseram nunca assistir televisão. Trata-se de um grupo de renda mais elevada,
com acesso a celular, computador e internet e que praticamente trocou a
televisão pela exposição às redes e mídias sociais. Neste caso teríamos apenas
uma substituição de mídias (TV por celular), mas os efeitos seriam tão
prejudiciais num grupo quanto no outro.
Todavia, entre os que afirmam
assistir TV, os efeitos são claramente lineares: assistir de 1 a até 3 horas de
TV diariamente é melhor do que assistir de 3 a 6, que por sua vez é melhor do
que assistir a mais de 6. A análise da Pense 2019 corrobora, como identificado
pela literatura, que o consumo exagerado de TV pode estar relacionado ao maior
consumo de drogas, maior grau de vitimização e maiores problemas de saúde
mental.
ALGUMA VEZ NA VIDA - DROGAS |
Nunca assiste |
Ate 3 hs |
Mais de 3 até 6 hs |
Mais de 6 hs |
Você já fumou cigarro, mesmo uma ou duas
tragadas? |
23,5 |
19,5 |
22,9 |
26,2 |
Você já experimentou narguilé (cachimbo de água)? |
24,1 |
20,6 |
23,2 |
25,7 |
Você tomou um copo ou uma dose de bebida
alcoólica? |
66,9 |
61,1 |
64 |
64,9 |
Você já usou alguma droga como: maconha, cocaína,
crack, cola, loló, lança-perfume, ecstasy, oxi, MD, skank e outras? |
15,2 |
11,4 |
12,9 |
14,3 |
Fonte: Pense IBGE 2019. N varia
entre 132 e 165 mil casos, dependendo da tabela
Assim, por exemplo, quanto mais
horas assistidas de TV, maior a probabilidade de ter fumado, experimentado
narguilé, tomado bebida alcoólica e usado alguma droga. O grupo que diz “nunca
assistir” TV, como observado, tem um comportamento similar ao grupo que diz
assistir mais de 6 horas diárias. As diferenças são estatisticamente
significativas, mesmo quando controlamos pela idade do aluno ou pela renda.
ALGUMA VEZ NA VIDA - VITIMIZAÇÃO |
Nunca assiste |
ate 3 hs |
mais de 3 até 6 hs |
mais de 6 hs |
Alguém o(a) tocou, manipulou, beijou ou expôs
partes do corpo contra a sua vontade? |
18,2 |
14,5 |
15,1 |
18 |
Alguém ameaçou, intimidou ou obrigou a ter
relações sexuais ou qualquer outro ato sexual contra a sua vontade? |
7,2 |
5,6 |
6 |
8,7 |
NOS ÚLTIMOS 12 MESES, quantas vezes você foi
agredido(a) fisicamente por sua mãe, pai ou responsável? (NENHUMA) |
79,8 |
78,5 |
75 |
72,9 |
Você esteve envolvido(a) em briga com luta
física? |
9,4 |
9,6 |
12,4 |
17,2 |
Quantas vezes algum dos seus colegas de escola
bateu (deu socos, tapas, chutes, pontapés) em você ou o machucou fisicamente
de outra forma? |
85,9 |
85,3 |
82,9 |
79,6 |
Fonte: Pense IBGE 2019. N varia
entre 132 e 165 mil casos, dependendo da tabela
Existe igualmente uma relação
linear entre tempo de consumo de TV e maior risco de abuso sexual, ameaça
sexual, agressão pelos pais, envolvimento em brigas corporais e vitimização
física. As diferenças são estatisticamente significativas, mesmo controlando
por idade ou renda.
A relação com a saúde mental é
complexa e provavelmente bidirecional. Ou seja, ver muita TV pode tanto agravar
a saúde mental como ser um sintoma de deterioração mental prévia. A pesquisa
mostra que existe uma relação linear entre quantidade de exposição à TV e sentimento
de abandono parental, incompreensão parental, bullying, assédio, sentimento de
tristeza, abandono, mau humor e ideação suicida. Observe-se que também aumenta
a probabilidade do estudante cometer
bullying contra os demais colegas de escola.
NOS ÚLTIMOS 30 DIAS - SAÚDE MENTAL |
Nunca assiste |
Ate 3 hs |
Mais de 3 até 6 hs |
Mais de 6 hs |
Com que frequência sua mãe, pai ou responsável
sabia realmente o que você estava fazendo em seu tempo livre? (NUNCA) |
7,3 |
5,7 |
6 |
13,1 |
Com que frequência sua mãe, pai ou responsável
entendeu seus problemas e preocupações? (NUNCA) |
17,5 |
12,4 |
15,1 |
22,1 |
Quantas vezes algum dos seus colegas de escola o
esculachou, zoou, mangou, intimidou ou caçoou tanto que você ficou magoado,
incomodado, aborrecido, ofendido ou humilhado? (NENHUMA) |
62,6 |
61 |
58 |
54,2 |
Você se sentiu ameaçado(a), ofendido(a) ou
humilhado(a) nas redes sociais ou aplicativos de celular? (SIM) |
12,9 |
11,4 |
12,6 |
17,1 |
Você esculachou, zombou, mangou, intimidou ou
caçoou algum de seus colegas da escola tanto que ele ficou magoado,
aborrecido, ofendido ou humilhado? (SIM) |
11,3 |
11,1 |
14,1 |
18,8 |
Com que frequência você se sentiu triste?
(SEMPRE) |
8,9 |
10,7 |
10,3 |
13,5 |
Com que frequência você sentiu que ninguém se
preocupa com você? |
14,7 |
10,5 |
12,1 |
19,3 |
Com que frequência você se sentiu irritado(a),
nervoso(a) ou mal-humorado(a) por qualquer coisa? |
19,2 |
13,7 |
16,4 |
24 |
Com que frequência você sentiu que a vida não
vale a pena ser vivida? |
11,8 |
7,6 |
9,5 |
16 |
Fonte: Pense IBGE 2019. N varia
entre 132 e 165 mil casos, dependendo da tabela
Como nos demais tópicos, em
alguns itens o grupo dos que “nunca assistem” TV se aproximam dos que assistem
em demasia. As diferenças entre os grupos de exposição se mantém significantes,
mesmo controlando idade ou renda.
Não é o caso de avançarmos na
análise aqui, que será inconclusiva sem dados longitudinais, outras variáveis
de controle, modelos que levem em conta a interação entre as variáveis e outros
procedimentos científicos mais robustos.
Mesmo que a associação causal
entre exposição à TV e comportamentos de risco seja espúria, sabemos que tanto
assistir muita TV quanto não assistir nunca são comportamentos de risco que
precisam ser monitorados e que ajudam a entender uma série de outros
comportamentos de risco correlatos. É algo fácil de ser observado em casa ou
perguntado por profissionais de saúde, segurança e educação. Independente do
conteúdo, reduzir a exposição à TV, por sua vez, pode ser uma prática efetiva
para a diminuição desses outros riscos. É preciso evitar, no entanto, que haja
apenas uma substituição da TV por outras mídias igualmente prejudiciais, quando
o uso for excessivo.
A pesquisa PeNSE permite
acompanhar alguns fenômenos no tempo – foi aplicada em 2009, 2012, 2015 e 2019
– e no espaço e sua amostra permite a desagregação dos dados por UF e Capitais.
O tamanho da amostra permite introduzir no modelo diversos controles simultâneos,
produzindo modelos robustos. O artigo acima é apenas um pequeno exemplo do que
pode ser investigado com a pesquisa, que é bastante rica e acredito que esteja
sendo subutilizada pelos pesquisadores brasileiros. É uma ferramenta importante
para entender o jovem de hoje e seus hábitos de alimentação, saúde, laser,
relacionamentos afetivos e diversos outros.
Estamos falando da geração
conectada à internet e às redes sociais através dos celulares. Os efeitos disso
não são de todo conhecidos. Segundo a pesquisa, cerca de ¼ dos jovens deixaram
de assistir a televisão, provavelmente substituindo-a pela exposição das redes
sociais como Instagran, Tik-Tok, Youtube e outras. Este comportamento, como
sugerimos, pode ser tão prejudicial para a saúde física e mental desta geração
quanto ficar exposto a muitas horas de TV.
É preciso incluir na PeNSE
questões sobre hábitos de consumo de internet e redes sociais, cujos efeitos
ainda são pouco conhecidos e estudados. Sem falar em questões sobre as mudanças
sociais advindas da epidemia de Covid em 2020.
A pesquisa mostra, finalmente, que
ainda é elevado entre os estudantes brasileiros o uso de álcool e drogas, bem
como problemas como o bullying, abusos sexuais, gravidez precoce, evasão
escolar, uso de armas, violência doméstica e depressão. Neste sentido, é também
um bom termómetro de como as políticas publicas estão – ou não estão - tratando
destes problemas no Brasil.
Referências
Kahn et all. https://www.researchgate.net/project/Efeitos-da-Midia-Violenta-a-visao-da-ciencia
OLIVEIRA, Max
Moura de et al . Características da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar -
PeNSE. Epidemiol. Serv. Saúde, Brasília , v.
26, n. 3, p. 605-616, set. 2017 . Disponível em
<http://scielo.iec.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-49742017000300605&lng=pt&nrm=iso>.
acessos em 28 fev. 2023. http://dx.doi.org/10.5123/s1679-49742017000300017.