quinta-feira, 22 de março de 2018

Observações sobre o PL do SUSP. Nem sistema, nem único...


Um projeto de lei em andamento no Congresso pretende instituir um Sistema único de Segurança Pública – SUSP. A expressão é uma analogia ao SUS existente no âmbito da saúde e se popularizou durante os governos Lula e Dilma, que tentaram sem sucesso dar algum conteúdo ao trocadilho propagandístico.
Na área de segurança, confesso que nunca entendi o que quer dizer um sistema único. Temos duas polícias estaduais e em alguns Estados três, se considerarmos a polícia científica independente. E bombeiros militares como categoria específica dentro das PMs. Temos também as Guardas municipais comandadas pelos prefeitos e no nível federal a Polícia Federal, Polícia Rodoviária e Ferroviária Federal, a ABIN, Senasp, Senad, Depen e a Força Nacional de Segurança Pública. E agora as Forças Armadas envolvendo-se em operações GLO e interventores estaduais. Sem falar no setor prisional e no setor privado de vigilância eletrônica, transporte de valores e segurança patrimonial. Além de inúmeros outros órgãos que direta ou indiretamente fazem parte do sistema de justiça criminal ou do mais amplo sistema de prevenção criminal, como MP, Defensoria, Procuradoria, Ouvidoria, Judiciário, Secretarias de Justiça e assim por diante.
Em que medida estes órgãos e funções podem e devem formar um conjunto único e “sistêmico” (outra expressão valorizada pelos governos petistas) tenho sérias dúvidas. Estamos falando aqui de níveis de governo e ramos de poder diferentes, cada qual, geralmente, com suas competências e funções já definidas na Constituição. O Projeto de Lei pretende criar, extinguir, modificar os órgãos atualmente existentes ou modificar suas funções e competências? Mudar o pacto federativo e as formas de financiamento dos diversos órgãos? Fundir instituições? Aparentemente, não pretende nada tão amplo, como seria necessário para reformar de fato a segurança pública e merecer os qualificadores “sistema” e “único”.
Já nas disposições preliminares o projeto indica que segurança é dever da União, Estados e Municípios, porém “dentro das competências e atribuições legais de cada um”, mostrando que não veio para mudar muita coisa nesta matéria. Nas disposições gerais (art.3) prevê que Estados e Municípios são competentes para estabelecer suas respectivas políticas, “observadas as diretrizes da política nacional”. Mas se no regime federativo estados e municípios são entes autônomos, como fazer para que sigam estas diretrizes? Que instrumentos o PL cria para que estas diretrizes não sejam solenemente ignoradas por Estados e Municípios? Um fundinho nacional de aproximadamente 400 milhões por ano para todos não parece ter servido de incentivo para este alinhamento nacional nos últimos 20 anos.
O art. 7º do PL, que fala da composição do sistema, diz que o SUSP é integrado pelos órgãos mencionados no art. 144 da Constituição e que estes atuarão nos limites de suas competências.  No art. 144 só estão mencionados as policiais estaduais – PC, PM e bombeiros - e federais (inclusive a polícia ferroviária federal...) mas estão excluídos muitos dos órgãos que deveriam fazer parte de um pretenso sistema único de segurança.
As competências não são alteradas, inclusive a ultrapassada noção segundo a qual as Guardas são destinadas à proteção dos bens, serviços e instalações municipais. Nenhuma palavra sobre a Força Nacional de Segurança Pública ou sobre o Gabinete de Segurança Institucional. Ou sobre o Coaf e os Gabinetes de Gestão Integrada. Nada tampouco sobre a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) ou Fundo Nacional Antidrogas. Nada criado depois da constituinte de 1988.
O parágrafo 1 do art. 7º do PL lista os agentes penitenciários e socioeducativos entre os “integrantes estratégicos” do SUSP, embora estas categorias não estejam listadas entre os órgãos de segurança do art. 144. Como se trata de um Projeto de Lei, não é possível alterar, em suma, nada que seja de ordem constitucional, como órgãos de segurança e suas competências, pois para tanto seriam necessárias emendas constitucionais.
O PL procura estabelecer parâmetros para a aferição anual de metas – algo em si louvável – mas sugere que as atividades periciais sejam aferidas pelo quantitativo de laudos técnicos expedidos. Como a quantidade de laudos varia com a quantidade de crimes, temos que serão perícias de excelência precisamente aquelas dos locais com mais crimes! A polícia ostensiva, por sua vez, terá sua excelência aferida “pela maior ou menor incidência de infrações penais”, um indicador de resultado altamente influenciado pela notificação, práticas de atendimento policial e variáveis socioeconômicas que pouca relação tem com o esforço policial na área. Melhor teria sido simplesmente sugerir a necessidade de metas e indicadores, mas deixar a tecnicalidade da mensuração para a regulamentação ordinária.
O art. 15, que trata da regulamentação dos Fundos de Segurança - dos quais já fui o gestor em 2002 - deixou simplesmente de fora o Fundo Nacional Antidrogas e não faz qualquer comentário sobre montantes insuficientes, o problema da inadimplência dos Estados que impede a contrapartida ou o problema da carência de bons projetos ou do contingenciamento pelo Ministério da Fazenda, que são os maiores obstáculos ao financiamento federal da segurança. Na saúde, metade do orçamento vem do governo federal. E no SUSP, qual será esta porcentagem? Atualmente, os gastos federais representam somente cerca de 10% dos 80 bilhões anuais investidos por estados e municípios. No SUS há um piso constitucional estabelecido para cada nível federativo e repasses de verbas dos Estados para os Municípios. Nada disso é previsto no projeto do SUSP.
O art. 19 trata dos Conselhos de Segurança e diz no caput que estes são de natureza deliberativa enquanto o parágrafo 3º do mesmo artigo afirma que “os Conselhos terão natureza de colegiado, com competência consultiva”. Em seguida o art. 20 e seguintes se põem a definir regras e princípios para os Conselhos, atropelando a autonomia de Estados e Municípios. Chegam ao detalhe de indicar que os Conselhos sejam compostos, entre outros membros, por um representante da OAB, MP e Poder Judiciário, entrando em minúcias desnecessárias e equivocadas sobre qualificações necessárias para deliberar sobre políticas de segurança pública.
Enquanto o texto se perde em pormenores sobre indicadores de eficiência, documentos de identificação funcional e composição dos conselhos, os temas da defesa civil e do sistema penitenciário são tratados só de passagem pelo PL, assim como as importantes questões do tráfico de drogas e do crime organizado, quase não mencionadas. (“organizações criminosas” aparece uma vez e drogas cinco vezes). Por outro lado, o PL  reinstitui no art. 37  o SINESP, que foi criado em 2012…

Não obstante estas inconsistências, o projeto tem também algumas virtudes e méritos. Como por exemplo, o incentivo à criação dos Planos de Segurança Pública em todos os níveis e a proibição eventual de repasses federais aos Estados e Municípios que não formularem seus planos ou repassarem ao governo federal dados criminais e outras informações de interesse. Há uma preocupação salutar com a avaliação das políticas e com a formação e valorização profissional dos operadores da segurança. Avança na integração entre os diversos órgãos e reforça a necessidade da fiscalização das ações policiais através de órgãos internos e externos. Incentiva a participação da sociedade através dos conselhos e permite que a PM lavre boletins de ocorrência autonomamente. Propõe a criação de um “Sistema Nacional de Acompanhamento e Avaliação das Políticas de Segurança Pública e Defesa Social” – SINAPED e de um “Sistema Integrado de Educação e Valorização Profissional” - SIEVAP, além do PROVIDA. (deve ser isso que entendem como um projeto “sistêmico...) Por enquanto não passam de siglas sem rubricas orçamentárias, mas as ideias de avaliação e valorização profissional estão pelo menos presentes como preocupações.
Em resumo, o PL pode ser a base para um futuro bom Plano Nacional de Segurança Pública para o governo federal mas está longe de criar um sistema integrado e único de segurança pública, como sugere o nome. Não propõe a unificação das polícias estaduais, com suas duplas academias, corregedorias, RH, oficinas, hangares e rivalidade. Não unifica as carreiras policiais, o sistema de ingresso e de progressão. Não unifica os sistemas de informação nem os orçamentos. Não define o papel das Guardas, nem das Forças Armadas ou da Força Nacional de Segurança Pública dentro deste sistema. Cala sobre a questão do ciclo completo de polícia.
Um sistema único digno deste nome só virá através de emendas constitucionais que pretendam mexer de fato na estrutura e competências das organizações atuais. Até lá, abusando dos trocadilhos, só nos resta SUSPirar de decepção, diante de arremedos de projetos superficiais e que já PRONASCem mortos...


segunda-feira, 19 de março de 2018

Quais municípios tem a melhor atuação em segurança pública?




Túlio Kahn, sociólogo e colaborador do Espaço Democrático

Há algumas semanas um colega me solicitou que identificasse municípios que tinham uma boa atuação na área da segurança pública com o intuito de organizar uma premiação para os melhores.
Sabe-se que há muitos anos os municípios começaram a colaborar na esfera da segurança e um número cada vez maior deles vem tomando iniciativas neste sentido, premidos pelo aumento da criminalidade e da sensação de insegurança da população. Apesar deste esforço e dos recursos envolvidos, são poucas as fontes de informação e as avaliações sobre como vem atuando e com quais resultados.
Uma avaliação como esta é bastante complexa e envolve problemas conceituais, metodológicos, informações atualizadas sobre o que os municípios fazem nesta esfera (inputs), quando as principais iniciativas foram tomadas, o grau em que foram realmente implementadas e dados longitudinais sobre crimes, contravenções ou indicadores de sensação de insegurança (outputs).
Do ponto de vista conceitual, dadas as limitações institucionais, legais e orçamentárias dos municípios, o que se pode legitimamente esperar como “resultados” deste esforço complementar? Queda nos homicídios? No tráfico de drogas ou roubo de carga ou bancos? Creio que o mais realista seria esperar alguma alteração nas pequenas contravenções, na desordem física e social das cidades ou na sensação de segurança do cidadão.
Mesmo escolhendo os indicadores mais adequados para mensurar os resultados deste esforço, como garantir que uma eventual melhora nos índices se deve exclusivamente ou ao menos em grande parte ao esforço municipal e não a outras iniciativas concomitantes? O porte do município, região em que estão localizados e tipo de atividade econômica afetam fortemente o tipo e volume de crimes locais. Sem controlar estes fatores, entre outros, é difícil tentar qualquer comparação entre eles. Dada a grande heterogeneidade existente, seria correto comparar o desempenho de uma cidade de 10 mil habitantes com uma de 500 mil? Uma cidade na região metropolitana do Sudeste com uma do interior nordestino? Uma industrial com uma predominantemente agrícola? Estas questões já são relevantes quando tentamos comparar Estados, mas ainda mais relevantes no caso de cidades.
Avaliações limitadas já foram realizadas – por mim mesmo e outros pesquisadores – com relação a políticas específicas, como a Lei Seca ou alterações nos limites de velocidade das vias. Neste caso, a tarefa era mais simples, pois tratavam-se de iniciativas que não existiam anteriormente, de alçada exclusivamente municipal, com efeitos esperados sobre os crimes e acidentes envolvendo o consumo de álcool etc. Uma análise de séries temporais destes indicadores, seguindo um design “antes-depois-com grupo de controle” funciona razoavelmente bem para testar impactos. Mas avaliar de maneira ampla diversas iniciativas, estabelecidas em datas diferentes, com diferentes níveis de implementação, sem controlar centenas de variáveis que podem ter afetado os resultados, é bastante temerário, para dizer o mínimo.
Há também a questão de onde encontrar os indicadores adequados, uma série histórica mais ou menos padronizada dos resultados esperados. Existe, mal ou bem, um esforço federal para compilar informações de vitimização, atividade policial e criminal dos Estados, mas nada parecido para os mais de 5.500 municípios do País, com exceção talvez das mortes por causas externas compiladas pelo Datasus do Ministério da Saúde. Alguns destes dados criminais são disponibilizados pelos Estados, desagregados por cidades, através do SINESP, mas infelizmente não são divulgados para pesquisadores e muito menos para o público.
Sendo assim, se a intenção é encontrar bons exemplos e melhores práticas de atuação municipal na segurança, sem apelar para casos anedóticos e excepcionais, talvez uma das únicas alternativas neste momento seja recorrer aos indicadores de “input”, em outras palavras, ao que os municípios estão fazendo na área da segurança pública. Felizmente, para pesquisadores e gestores, o IBGE realiza desde 1999 a pesquisa MUNIC – Pesquisa de Informações Básicas Municipais – que “efetua, periodicamente, um levantamento pormenorizado de informações sobre a estrutura, a dinâmica e o funcionamento das instituições públicas municipais, em especial a prefeitura, compreendendo, também, diferentes políticas e setores que envolvem o governo municipal e a municipalidade.”
A pesquisa MUNIC de 2014, por exemplo, fez um levantamento específico sobre a estrutura e atuação dos municípios na segurança, cobrindo dezenas de variáveis. Entre todas, selecionei 10 que julgo mais representativas da atuação municipal na segurança, embora outros analistas pudessem ter selecionado critérios diferentes.
1 – Caracterização do órgão gestor;
2 – Conselho de Segurança Pública – existência;
3 – O conselho é paritário?;
4 – Quantidade de reuniões do conselho nos últimos 12 meses;
5 – Conselho comunitário de segurança pública – existência;
6 – Fundo de segurança pública – existência;
7 – Plano de segurança pública – existência;
8 – Guarda municipal – existência;
9 – Guarda treinada e/ou capacitada;
10 – Órgão de controle da guarda.
Assim, neste meu “tipo ideal” de atuação municipal em segurança, o município deveria ter algum tipo de órgão gestor superior de, mesmo que não seja uma secretaria de segurança exclusiva, que seria o melhor dos mundos. Deveria também contar com um Conselho de Segurança Pública, órgão superior de aconselhamento com composição preferencialmente paritária entre governo e sociedade civil, e que se reúne pelo menos 1 vez ao ano (meus critérios nem sempre são rigorosos…). Além deste “conselhão” de especialistas, também deveria contar com conselhos comunitários de segurança, em nível local e com participação da comunidade. Fazem parte ainda do “pacote premium” a existência de um Fundo Municipal de Segurança Pública e de um Plano Municipal de Segurança Pública. Ter uma guarda municipal é quesito de excelência e melhor ainda se a guarda tiver alguma rotina de treinamento e capacitação, mesmo que seja apenas no ingresso, embora o melhor fosse um treinamento periódico. Finalmente, a existência de um órgão de controle interno (corregedoria) ou externo (ouvidoria) para receber denúncias e fiscalizar a atuação da guarda. Muitas outras iniciativas e órgãos poderiam ser acrescentados a esta lista “ideal”, mas se formos demasiado exigentes, os pequenos municípios serão prejudicados, pois poucos poderiam arcar com a estrutura e custos envolvidos e é preciso ser minimamente realista.
Com efeito, se considerarmos todos os critérios escolhidos cumulativamente, apenas três municípios de todo o País poderiam ser classificados como “ideais”. A tabela abaixo mostra como estas diferentes estruturas e requisitos são distribuídos pelos municípios, tomando os itens isoladamente e cumulativamente.


Tomando os quesitos isoladamente, vemos que 22,6% dos municípios contam com algum tipo de órgão gestor da segurança, seja ele um órgão da administração indireta, secretaria conjunta ou exclusiva, setor subordinado à outra secretaria ou diretamente ao prefeito. Alguma estrutura para lidar com tema é, portanto, a estratégia mais frequente dos municípios, seguida da existência de uma guarda municipal (19,4%). Planos e fundos de segurança são, por outro lado, iniciativas mais raras, adotadas por somente 5% dos municípios.
A questão se complica quando começamos a analisar estas estratégias em conjunto, em busca de nossa “cidade ideal”. Como se pode ver na última coluna da tabela, apenas 14,1% tem ao mesmo tempo uma guarda e um órgão gestor de segurança. A porcentagem cai para 6% se acrescentarmos um órgão de controle e algum tipo de treinamento. E para 1,65% se adicionarmos a estes critérios a existência de um plano de segurança. Finalmente, para menos de 1% se incluirmos cumulativamente os demais critérios. Em resumo, apenas uma minoria ínfima de municípios (0,05%) seria avaliada positivamente, segundo os critérios selecionados: 3 atendem a todos os 10 quesitos, 4 atendem a 9 quesitos, 5 cidades a 8 quesitos e assim por diante.
Para quem tem curiosidade, as 5 cidades premiadas utilizando estes filtros seriam Niterói, Campinas, Diadema, Itatiba e Canoas – a lista completa de cidades e critérios pode ser encontrada aqui.
Como observado, em geral apenas os municípios maiores e com mais recursos conseguem atender à maioria dos quesitos, pois a atuação na segurança é custosa em termos de recursos humanos e financeiros. Se considerarmos o básico do básico, o atendimento apenas aos cinco primeiros quesitos – ter uma guarda, órgão gestor, órgão de controle, treinamento e plano de segurança – ainda assim apenas 1,6% dos municípios (92) seriam avaliados positivamente em termos de atuação na segurança. Percebe-se, assim, que a atuação municipal é ainda bastante incipiente e existe espaço para aperfeiçoar o que as cidades vêm fazendo pela segurança.
Sabemos alguma coisa do que as cidades estão tentando fazer graças ao IBGE. A pergunta de 1 milhão de dólares é: este esforço traz resultados? A resposta a esta pergunta é muito mais complexa: caberia à Senasp e aos órgãos de financiamento de pesquisas incentivar a comunidade acadêmica a tentar respondê-la. É muito dinheiro e esforço investido pelos municípios em segurança, cujos orçamentos estão à mingua. E neste aspecto avaliativo estamos no Brasil quase sempre como a Justiça: de olhos vendados!

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