quarta-feira, 21 de junho de 2017

A cracolândia está morta. Viva a cracolândia !



Diversas cidades do mundo enfrentam o problema da concentração de usuários de drogas em locais que aglutinam uma mistura de usuários com diferentes graus de dependência, moradores de ruas, traficantes, catadores de papel, dependentes de álcool e pessoas com deficiências mentais variadas. Trata-se de uma população heterogênea e cada situação envolve uma política específica.

Algumas como Zurique e Frankfurt tiveram sucesso na redução do problema, adotando estratégias variadas como intervenções urbanas, limpeza, oferta de trabalho e moradia, atendimento social e tratamento psiquiátrico, prevenção, policiamento, políticas de redução de danos e em casos mais graves a internação involuntária ou compulsória.

Em São Paulo, a transformação da área conhecida como cracolândia em tópico de preocupação pública começa em meados dos anos 90 e de lá para cá tem por diversas vezes chamado à atenção da sociedade e das autoridades. Para dar uma ideia da discussão, o gráfico abaixo traz o número de artigos que apareceram apenas nos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo contendo o termo “cracolândia”, de 1995, quando aparece pela primeira vez, até junho de 2017. São 3333 menções, o que dá uma dimensão do interesse pelo assunto, que atingiu o pico em 2012 durante a Operação Centro Legal.






Em São Paulo, tanto as gestões municipais passadas ( CAPS, SAID, “braços abertos”) quanto a atual (“redenção”) formularam ou vinham formulando políticas abrangentes baseadas nas boas práticas internacionais, em colaboração com o Ministério Público, OAB, entidades assistenciais e profissionais de saúde.

O cronograma de implementação, porém, foi atropelado pelos fatos em maio último. O crescimento acelerado de frequentadores da cracolândia no último ano, o sequestro, tortura e assassinato de um funcionário de uma clínica particular e as imagens nos telejornais de traficantes do PCC portando armas e vendendo drogas à luz do dia, impuseram uma ação de natureza policial e emergencial por parte do governo estadual. Todas as outras políticas assistências tem como pressuposto a retirada dos traficantes da área e mesmo as gestões anteriores alternavam ações de caráter preventivo para os usuários com ações de repressão ao tráfico.

Não obstante alguma imperícia e excesso na condução da ação, a polícia tinha alvos específicos, fruto de meses de investigação e identificação dos criminosos que atuavam na região. Foram detidos na operação 130 suspeitos, infiltrados numa população estimada de 1800 dependentes. A ação policial implica em consequências indesejadas, como a dispersão dos usuários por outras áreas da cidade e a quebra de vínculos e confiança com o poder público e profissionais de assistência social e saúde. Independente das avaliações sobre a condução da ação, não é admissível a presença de traficantes portando armas e vendendo drogas ostensivamente no centro da cidade, explorando a prostituição, sequestrando e matando. Esta depuração inicial, ainda que destrambelhada, é uma pré-condição para as outras políticas de reintegração de longo prazo.

O intuito deste artigo, contudo, não e o de discutir a ação policial na cracolândia em maio, que custou a demissão da secretária municipal de direitos humanos, mas antes os resultados de pesquisas de opinião que vem abordando a percepção da população sobre temas relacionados às drogas e seus usuários. A população não tem como opinar com conhecimento de causa sobre as políticas públicas para o setor, que é matéria para especialistas. Mas é importante saber como ela avalia estas políticas, pois os gestores públicos frequentemente levam estas opiniões em consideração para justificar suas ações.

O Ibope tem feito regularmente levantamentos sobre o tema e a tabela abaixo traz os resultados de algumas questões selecionadas de uma pesquisa nacional com 2002 entrevistados em dezembro de 2016. Os resultados estão desagregados por faixas de renda e sugerem que as visões do problema apresentam nuanças dependendo da categoria.

Antes de aprofundarmos estas diferenças, parece existir um amplo consenso sobre duas questões: o governo deve ofertar trabalho, abrigo e assistências diversas aos usuários (76%) e a pedido da família ou da justiça, a população apoia a internação involuntária do usuário (68%). Embora não tão expressivo, existe um razoável apoio à afirmação de que o governo deve priorizar o tratamento dos dependentes, mais do que o combate ao tráfico (46%).




Observe-se que nestas três questões, o apoio é maior entre a população de renda mais baixa. A última coluna mostra a diferença percentual de opiniões entre a renda mais alta e a mais baixa (a margem de erro da pesquisa é de 2%). Uma explicação provável é que a população de baixa renda depende mais do auxílio do poder público, no caso de ter familiar ou pessoa próxima na condição de dependente químico. O perfil dos frequentadores das áreas de consumo confirma a predominância de jovens de famílias de baixa renda, já que as famílias mais abastadas contam com outras opções de tratamento.

As duas outras questões são menos consensuais. 39% concordam que o uso de drogas é uma questão de saúde pública, mais que policial e apenas 22% concorda totalmente que a legalização da venda da maconha reduzirá a criminalidade. As diferenças entre as categorias de renda estão dentro da margem de erro, mas não deixa de ser curiosa a inversão do sinal, com os mais abastados ligeiramente mais favoráveis a esta posturas.

A pesquisa mostra que existe espaço tanto para políticas preventivas soft – assistências, tratamentos – quanto hard – internação involuntária, que não se confunde com a compulsória, que só pode ser autorizada judicialmente. Que não se trata apenas de uma questão policial e que novos caminhos devem ser buscados para lidar com o problema. A repressão isoladamente não funcionou, embora necessária para afastar o tráfico. Iniciada nos anos 90, a epidemia do crack se alastra. Estima-se que o Brasil tenha 1 milhão de usuários de crack, o que o torna no segundo maior consumidor do mundo, em números absolutos.


Nosso problema de miséria é muito mais grave que o de Zurique ou Frankfurt e é provável que tenhamos mais dificuldades para lidar com o problema, que em boa parte se deve a ela. Mas a abordagem integrada, de longo prazo, com participação estadual e federal, particularizada para os diferentes públicos que frequentam o “fluxo”, colocada em prática nestas cidades, sugere que é possível atenuar o problema. Ou ao menos evitar seu agravamento. 

terça-feira, 20 de junho de 2017

A(s) Crise(s) e o déficit institucional



Instituições são estruturas que regulam o comportamento de um conjunto de indivíduos numa sociedade. Elas transcendem os indivíduos, organizam suas interações e como tal cumprem um papel relevante de socialização e regulação social. Quanto maior a confiança nas instituições, maior o respeito às regras e normas delas emanadas: leis, decisões judiciais, preceitos morais, políticas governamentais, etc.

Um dos efeitos mais graves das crises - política, social, moral, econômica – que o país vivencia nos últimos anos é a perda de confiança nas instituições. É muito mais do que uma avaliação ruim dos últimos governos e governantes, algo que pode bem ou mal ser resolvido com novas eleições, melhora da economia, aperfeiçoamento de políticas contra a corrupção ou com rearranjos legalmente previstos para a alteração dos mandatários. É um mal-estar mais profundo, mais generalizado, com implicações igualmente mais sérias. Pois há uma perda de confianças nos mecanismos mesmos que seriam responsáveis pela superação das outras crises.

Vivemos uma crise institucional? Não chegamos a este patamar venezuelano: bem ou mal a economia reage, a lava-rápido avança, o congresso aprova reformas importantes, as mudanças ocorrem dentro dos marcos institucionais, o judiciário julga e suas decisões são respeitadas, a imprensa trabalha livremente, os partidos políticos participam da gestão e da formulação da reforma partidária, trabalhista, previdenciária e outras leis de interesse público.
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Mas as instituições saíram abaladas, como não poderia deixar de ser. Desde 2009 o Ibope publica um Índice de Confiança Social, medindo a confiança da população em algumas instituições.  O índice médio de confiança nas instituições caiu 14,5% de 2009 para 2017, passando de 57,6 para 49,3.










O tombo é maior quando analisamos algumas categorias em especial: queda de 48,6% na confiança no Congresso Nacional, de 45,2% na confiança dos partidos políticos e de 78,8% no presidente da república. O quadro é ainda mais complexo quando se vê que os níveis de confiança em algumas instituições já eram bastante baixos em 2009 e ficaram ainda piores em 2017. Congresso Nacional e Partidos Políticos gozavam da confiança de apenas 1/3 da população em 2009 e a fração reduziu-se a menos de 1/5. Os escândalos de corrupção atingiram particularmente a classe política, uma vez que que alguns de seus membros foram os principais beneficiários dela, embora não os únicos. (As Forças Armadas, em compensação, embora afetadas, continuam a gozar de amplo prestígio e se recuperaram com relação a 2013...)

Note-se que no auge das manifestações de 2013, no período pré-impeachment, a confiança nas instituições chegou ao seu limite mais baixo (46,7). Mas de 2013 para cá, como se vê na última coluna em verde, algumas instituições recuperaram seu prestígio enquanto outras continuaram se deteriorando: todas elas, não por acaso, ligadas ao sistema político (governo local, eleições, governo federal, congresso, partidos, presidência).

A pior consequência do descalabro dos últimos governos não foi a falência administrativa e financeira do país, cuja recuperação é factível e moderadamente rápida, tomadas as medidas necessárias. Muito pior foi a crise moral deixada, a descrença generalizada na política, na democracia, nas eleições, nos políticos e nas instituições em geral. O ceticismo. A desesperança. O alheamento. A vontade de sair do país e mudar para outro lugar. A desconfiança de tudo e em todos.

Na ausência de canais legítimos, política agora se faz pelas mídias sociais, no ministério público, no judiciário. Partidos, sindicatos, parlamentos e eleições são démodê. Participar da administração pública, militar em partidos e concorrer a cargos públicos é coisa para a gentalha sem escrúpulos - como se o setor privado estivesse imune ao problema da corrupção... A crise, em suma, apagou a “vocação para a política”, ou ao menos para a política institucionalizada.

A recuperação da credibilidade das instituições é lenta, difícil e não vingará sem uma mudança profunda nas regras do jogo. Mas mudança que terá que ser feita ela mesma dentro das regras do jogo: não existe sociedade democrática sem a existência de partidos políticos, deputados, senadores, eleições livres e periódicas, liberdade de imprensa, respeito à Constituição e ao Estado de Direito. Não há saída pela manu militari, pelo judiciário, pelo facebook ou twitter. Nem mesmo pelo merecidamente prestigiado corpo de bombeiros. No dia em que nos esquecermos disso, é porque as instituições já foram mesmo para o buraco. Neste caso, nem os bombeiros nos tirarão de lá!


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