segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Taxa de esclarecimento de homicídios: o que explica a variação estadual?


O Brasil tem o maior número absoluto de homicídios dolosos no mundo e uma taxa de homicídios mais de três vezes superior à média mundial (5:8), não obstante a queda iniciada a partir de 2017 (Estudo Global sobre Homicídios, 2023, UNODC). Um dos motivos que contribui para isso é a baixa taxa de esclarecimento de homicídios pelas polícias brasileiras – em torno de 40% - mesmo considerando-se que o esclarecimento dos homicídios é em geral superior ao esclarecimento dos crimes patrimoniais. (Onde mora a impunidade, Instituto Sou da Paz, 2024)

A quantidade expressiva de casos concentrados em certas localidades impõe uma tarefa hercúlea para a investigação e a natureza destas mortes, frequentemente ligada à dinâmica criminal, é outro diferencial que explica a baixa elucidação no Brasil. A falta de treino na preservação do local de crime, o medo das testemunhas, a precária coleta de provas e a ausências de bancos de dados balísticos, de DNA, fotográficos, etc. contribuem com sua parcela para que boa parte das mortes continue impune.

A taxa de esclarecimento de crimes é assim um indicador da qualidade da investigação policial, mas também reflete outras circunstancias que são alheias ao esforço policial. De todo modo, trata-se de um indicador clássico de eficiência de polícia judiciária e que não está disponível nas estatísticas policiais nacionais. Por este motivo, o Instituto Sou da Paz passou a coletar os dados para o monitoramento do indicador solicitando informações diretamente dos Estados, nos últimos  anos.

A tabela abaixo traz a taxa de esclarecimento de casos mais recente para cada Estado coletada nas pesquisas Onde Mora a Impunidade, realizada pelo Sou da Paz, e uma classificação em três níveis criada por mim com base nestas taxas. Os dados para AL, MA e TO foram estimados com base na média regional (31% para NE e 45% para N), uma vez que estas unidades não forneceram dados para a pesquisa. O esclarecimento médio baseando nos valores da tabela ficou em 47,6%, (diferente do obtido pelo Sou da Paz, que não estimou valores para os Estados ausentes) variando de 9% no RN a 90% no DF, sugerindo que há muita variação entre os Estados.


Analisando-se a série histórica enviada pelos Estados notamos que existe muita variação anual nas estimativas, de modo que preferimos trabalhar aqui com três grandes categorias – baixo, médio e alto esclarecimento – ao invés de se fiar nas quantidades estimadas. Como é possível notar pela tabela, a maioria dos estados com baixo esclarecimento parecem vir do Nordeste e na categoria de alto esclarecimento vemos Estados do Sul e Centro Oeste. Nenhum Estado do Sudeste está na categoria alto esclarecimento e o RJ aparece na categoria baixo esclarecimento. Vemos assim que Região do país – e suas desigualdades econômicas e sociais - explica em parte esta distribuição, mas parece também deixar muita coisa de fora.

O que pode explicar estas diferenças tão dispares? O IBGE divulgou recentemente a pesquisa Estadic 2024, com inúmeras características do sistema de justiça criminal dos Estados, algumas delas potencialmente relacionadas, direta ou indiretamente, a taxa de esclarecimento de homicídios, tais como Região do país, se a PM e a PC tem tiveram cursos de preservação do local do crime em 2022, se a Perícia é desvinculada da Polícia Civil, se existe algum programa de prevenção ou para a redução de homicídio, entre outras. Dos 27 Estados, apenas 1 (Rondônia) recusou-se a responder à pesquisa do IBGE deste ano. Adicionamos também a base alguns indicadores criminais do Atlas Brasileiro de Segurança Pública, como taxa de homicídios estadual, taxa de armas de fogo apreendidas, despesa per capita em segurança, tamanho da população no sistema penitenciário por 100 mil hab., etc.

Para investigar que variáveis podem estar associadas ao nível de esclarecimento, optamos por utilizar uma rede neural perceptron, dado que a amostra é pequena (26 UFs) e a rede neural faz menos exigências com relação à distribuição e linearidade dos dados. No total incluímos 8 variáveis no modelo, sendo 5 fatores e 3 co-variáveis. Todas as variáveis foram normalizadas e utilizamos a tangente hiperbólica como variável de ativação. Softmax foi utilizada como função de ativação final (sete camadas ocultas resultaram do modelo) e entropia cruzada foi selecionada como função de erro, uma vez que nossa variável dependente é categórica com 3 níveis (baixo, médio e alto).

O resultado da predição foi de 89% para a amostra de treinamento e de 85,7% na amostra de teste. O erro de entropia cruzada é de 3.893, se considerarmos a predição da amostra de testes e a porcentagem de predições incorretas, de 14,3%


O modelo parece portando prever adequadamente se um Estado pertence a um nível, baixo, médio ou alto de esclarecimento. Significa dizer que as variáveis incluídas no modelo estão associadas com o desempenho do Estado no esclarecimento dos homicídios. Todas as variáveis independentes dão alguma contribuição razoável para a predição, o que significa dizer que estão associadas ao fenômeno.

O perceptron multicamada fornece excelente capacidade de modelar relações complexas, mas sua falta de interpretabilidade em termos de coeficientes e sinal da associação é uma limitação inerente ao método.

No perceptron, os pesos associados às conexões entre os neurônios são ajustados para minimizar um erro (como a função de perda softmax), mas esses pesos não têm um significado interpretável em termos de impacto direto, pois os pesos são combinados de maneira não linear (após passar por funções de ativação, como tangente hiperbólica, usada no nosso modelo). Eles não estão vinculados a uma relação explícita entre entrada e saída. Redes neurais capturam interações complexas e não lineares entre variáveis. A relação entre uma entrada e a saída pode depender do contexto das outras entradas. Isso contrasta com modelos lineares, onde o efeito de cada variável é independente das outras. Em redes multicamadas, como a utilizada aqui, os pesos são ajustados em várias camadas (7, no modelo), e o efeito final de uma entrada na saída é distribuído por múltiplas operações e ativações intermediárias. Assim, o impacto de uma variável não pode ser rastreado diretamente até a saída, e o sinal de sua associação não é evidente.

 

Em resumo, o modelo é bom para classificar e prever, mas não é possível interpretar o sinal da relação entre as variáveis. Uma solução alternativa é rodar um modelo de regressão linear simples e observar o sinal das associações. Assim, quando falamos abaixo no sentido ou sinal da associação entre as variáveis estamos no baseando no sinal obtido através da regressão e não da rede neural. A título de curiosidade, a regressão seleciona como bons preditores praticamente as mesmas variáveis da rede neural: região, se o Estado tem um programa estadual de prevenção de homicídios, taxa de homicídios dolosos, taxa de população carcerária, curso de preservação de local do crime, taxa de armas de fogo apreendidas e despesa per capita em segurança.

Ao contrário de modelos estatísticos tradicionais, as redes neurais não possuem coeficientes diretamente interpretáveis. O SPSS desenvolve um processo pós-hoc para inferir a importância relativa das variáveis com base nos pesos e nas interações dentro do modelo. A contribuição total de cada variável é uma combinação ponderada de todos os caminhos possíveis entre a variável de entrada e a saída. Na tabela abaixo vemos esta “importância normalizada” onde a variável mais relevante equivale a 100% e as demais são comparadas a ela.

Passando para a análise dos resultados: Região é significativo, com as taxas de esclarecimento no Centro Oeste sendo claramente superiores às demais regiões. Estar no Centro Oeste aumenta, portanto, a probabilidade de pertencer ao grupo de alto esclarecimento.

A presença de algum programa de prevenção e ou redução de homicídios no Estado tem igualmente um efeito notável e aumenta a probabilidade do Estado ter uma taxa de esclarecimento mais elevada. O esclarecimento é maior onde o poder público parece se preocupar mais com a questão, o que pode implicar em maiores recursos para a investigação de homicídios.

A existência de Curso de Preservação do local do crime para a Polícia Civil e para Polícia Militar é relevante – especialmente na PC e o sentido é positivo: ou seja, Estados com cursos deste tipo em 2022 apresentam maiores taxas de esclarecimento.

O impacto da Perícia Oficial independente, no entanto, vai ao sentido contrário ao esperado: Estados onde a Perícia tornou-se independente da Polícia Civil tem taxas de esclarecimento inferiores aos demais. A ideia é que a autonomia financeira e administrativa das perícias contribuísse para seu desempenho, mas no caso do esclarecimento dos homicídios esse efeito foi contrário. É preciso tomar cuidados com variáveis omitidas, pois as perícias tendem a se tornar autônomas nas grandes corporações dos maiores Estados.


A taxa de apreensão de armas de fogo no Estado parece relevante e o sentido é positivo: quanto maior a taxa de apreensão de arma (geralmente tarefa da PM), maior também a taxa de esclarecimento de homicídio. Se pensarmos na apreensão de armas como um indicador de atividade policial, faz sentido pensar que ambas as grandezas caminhem juntas. Ambas podem ser o reflexo de alguma política de combate aos homicídios implementada no Estado, como vimos, focando tanto na retirada de armas em circulação quanto na investigação de casos.

Por algum motivo pouco claro, quanto maior a taxa de presos no sistema penitenciário do Estado, maior a probabilidade dele pertencer aos grupos de médio ou alto esclarecimento de homicídios. Ambas as dimensões estão relacionadas com a diminuição da impunidade.

Por outro lado, uma taxa de homicídios elevada, diminui a probabilidade de esclarecimento: este sinal negativo faz sentido se pensarmos que o baixo esclarecimento estimula a ocorrência de mais homicídios. Como já observamos, as menores taxas de esclarecimento encontram-se hoje no Norte e Nordeste, precisamente as regiões que apresentam as maiores taxas de homicídio. No sentido inverso, um alto esclarecimento passa a mensagem de rigor na apuração e desestimula o cometimento de novos homicídios, além de incapacitar ofensores contumazes.

A intenção não é esgotar todas as possibilidades de interpretação, mas sugerir que maiores ou menores índices de esclarecimento de homicídios não são aleatórios. Algumas variáveis independem do poder público (como a natureza dos homicídios), mas outras estão sob sua alçada. Os dados sugerem que o foco na questão da redução dos homicídios – como um programa estadual com este objetivo, maior apreensão de armas, cursos de preservação de local, diminuição da impunidade, etc., - podem trazer efeitos benéficos sobre as taxas de esclarecimento. É preciso recursos e liderança para enfrentar o problema. E é possível aprender com a experiência dos Estados com elevados índices de esclarecimento.

 

 

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