O Brasil tem o maior número
absoluto de homicídios dolosos no mundo e uma taxa de homicídios mais de três
vezes superior à média mundial (5:8), não obstante a queda iniciada a partir de
2017 (Estudo Global sobre Homicídios, 2023, UNODC). Um dos motivos que
contribui para isso é a baixa taxa de esclarecimento de homicídios pelas
polícias brasileiras – em torno de 40% - mesmo considerando-se que o
esclarecimento dos homicídios é em geral superior ao esclarecimento dos crimes
patrimoniais. (Onde mora a impunidade, Instituto Sou da Paz, 2024)
A quantidade expressiva de casos
concentrados em certas localidades impõe uma tarefa hercúlea para a
investigação e a natureza destas mortes, frequentemente ligada à dinâmica
criminal, é outro diferencial que explica a baixa elucidação no Brasil. A falta
de treino na preservação do local de crime, o medo das testemunhas, a precária
coleta de provas e a ausências de bancos de dados balísticos, de DNA,
fotográficos, etc. contribuem com sua parcela para que boa parte das mortes
continue impune.
A taxa de esclarecimento de
crimes é assim um indicador da qualidade da investigação policial, mas também
reflete outras circunstancias que são alheias ao esforço policial. De todo
modo, trata-se de um indicador clássico de eficiência de polícia judiciária e
que não está disponível nas estatísticas policiais nacionais. Por este motivo,
o Instituto Sou da Paz passou a coletar os dados para o monitoramento do
indicador solicitando informações diretamente dos Estados, nos últimos anos.
A tabela abaixo traz a taxa de
esclarecimento de casos mais recente para cada Estado coletada nas pesquisas
Onde Mora a Impunidade, realizada pelo Sou da Paz, e uma classificação em três
níveis criada por mim com base nestas taxas. Os dados para AL, MA e TO foram
estimados com base na média regional (31% para NE e 45% para N), uma vez que
estas unidades não forneceram dados para a pesquisa. O esclarecimento médio
baseando nos valores da tabela ficou em 47,6%, (diferente do obtido pelo Sou da
Paz, que não estimou valores para os Estados ausentes) variando de 9% no RN a
90% no DF, sugerindo que há muita variação entre os Estados.
Analisando-se a série histórica
enviada pelos Estados notamos que existe muita variação anual nas estimativas,
de modo que preferimos trabalhar aqui com três grandes categorias – baixo,
médio e alto esclarecimento – ao invés de se fiar nas quantidades estimadas.
Como é possível notar pela tabela, a maioria dos estados com baixo
esclarecimento parecem vir do Nordeste e na categoria de alto esclarecimento
vemos Estados do Sul e Centro Oeste. Nenhum Estado do Sudeste está na categoria
alto esclarecimento e o RJ aparece na categoria baixo esclarecimento. Vemos
assim que Região do país – e suas desigualdades econômicas e sociais - explica
em parte esta distribuição, mas parece também deixar muita coisa de fora.
O que pode explicar estas
diferenças tão dispares? O IBGE divulgou recentemente a pesquisa Estadic 2024,
com inúmeras características do sistema de justiça criminal dos Estados,
algumas delas potencialmente relacionadas, direta ou indiretamente, a taxa de
esclarecimento de homicídios, tais como Região do país, se a PM e a PC tem
tiveram cursos de preservação do local do crime em 2022, se a Perícia é
desvinculada da Polícia Civil, se existe algum programa de prevenção ou para a
redução de homicídio, entre outras. Dos 27 Estados, apenas 1 (Rondônia)
recusou-se a responder à pesquisa do IBGE deste ano. Adicionamos também a base
alguns indicadores criminais do Atlas Brasileiro de Segurança Pública, como
taxa de homicídios estadual, taxa de armas de fogo apreendidas, despesa per
capita em segurança, tamanho da população no sistema penitenciário por 100 mil
hab., etc.
Para investigar que variáveis
podem estar associadas ao nível de esclarecimento, optamos por utilizar uma
rede neural perceptron, dado que a amostra é pequena (26 UFs) e a rede neural
faz menos exigências com relação à distribuição e linearidade dos dados. No
total incluímos 8 variáveis no modelo, sendo 5 fatores e 3 co-variáveis. Todas
as variáveis foram normalizadas e utilizamos a tangente hiperbólica como
variável de ativação. Softmax foi utilizada como função de ativação final (sete
camadas ocultas resultaram do modelo) e entropia cruzada foi selecionada como
função de erro, uma vez que nossa variável dependente é categórica com 3 níveis
(baixo, médio e alto).
O resultado da predição foi de 89% para a amostra de treinamento e de 85,7%
na amostra de teste. O erro de entropia cruzada é de 3.893, se considerarmos a
predição da amostra de testes e a porcentagem de predições incorretas, de 14,3%
O modelo parece portando prever
adequadamente se um Estado pertence a um nível, baixo, médio ou alto de
esclarecimento. Significa dizer que as variáveis incluídas no modelo estão
associadas com o desempenho do Estado no esclarecimento dos homicídios. Todas
as variáveis independentes dão alguma contribuição razoável para a predição, o
que significa dizer que estão associadas ao fenômeno.
O perceptron multicamada fornece
excelente capacidade de modelar relações complexas, mas sua falta de
interpretabilidade em termos de coeficientes e sinal da associação é uma limitação
inerente ao método.
No perceptron, os pesos
associados às conexões entre os neurônios são ajustados para minimizar um erro
(como a função de perda softmax), mas esses pesos não têm um significado
interpretável em termos de impacto direto, pois os pesos são combinados de
maneira não linear (após passar por funções de ativação, como tangente
hiperbólica, usada no nosso modelo). Eles não estão vinculados a uma relação
explícita entre entrada e saída. Redes neurais capturam interações complexas e
não lineares entre variáveis. A relação entre uma entrada e a saída pode
depender do contexto das outras entradas. Isso contrasta com modelos lineares,
onde o efeito de cada variável é independente das outras. Em redes
multicamadas, como a utilizada aqui, os pesos são ajustados em várias camadas
(7, no modelo), e o efeito final de uma entrada na saída é distribuído por
múltiplas operações e ativações intermediárias. Assim, o impacto de uma
variável não pode ser rastreado diretamente até a saída, e o sinal de sua associação
não é evidente.
Em resumo, o modelo é bom para
classificar e prever, mas não é possível interpretar o sinal da relação entre
as variáveis. Uma solução alternativa é rodar um modelo de regressão linear
simples e observar o sinal das associações. Assim, quando falamos abaixo no
sentido ou sinal da associação entre as variáveis estamos no baseando no sinal
obtido através da regressão e não da rede neural. A título de curiosidade, a
regressão seleciona como bons preditores praticamente as mesmas variáveis da
rede neural: região, se o Estado tem um programa estadual de prevenção de
homicídios, taxa de homicídios dolosos, taxa de população carcerária, curso de
preservação de local do crime, taxa de armas de fogo apreendidas e despesa per
capita em segurança.
Ao contrário de modelos
estatísticos tradicionais, as redes neurais não possuem coeficientes
diretamente interpretáveis. O SPSS desenvolve um processo pós-hoc para inferir a
importância relativa das variáveis com base nos pesos e nas interações dentro do
modelo. A contribuição total de cada variável é uma combinação ponderada de
todos os caminhos possíveis entre a variável de entrada e a saída. Na tabela
abaixo vemos esta “importância normalizada” onde a variável mais relevante
equivale a 100% e as demais são comparadas a ela.
Passando para a análise dos
resultados: Região é significativo, com as taxas de esclarecimento no Centro Oeste
sendo claramente superiores às demais regiões. Estar no Centro Oeste aumenta,
portanto, a probabilidade de pertencer ao grupo de alto esclarecimento.
A presença de algum programa de
prevenção e ou redução de homicídios no Estado tem igualmente um efeito notável
e aumenta a probabilidade do Estado ter uma taxa de esclarecimento mais elevada.
O esclarecimento é maior onde o poder público parece se preocupar mais com a
questão, o que pode implicar em maiores recursos para a investigação de
homicídios.
A existência de Curso de
Preservação do local do crime para a Polícia Civil e para Polícia Militar é
relevante – especialmente na PC e o sentido é positivo: ou seja, Estados com
cursos deste tipo em 2022 apresentam maiores taxas de esclarecimento.
O impacto da Perícia Oficial
independente, no entanto, vai ao sentido contrário ao esperado: Estados onde a
Perícia tornou-se independente da Polícia Civil tem taxas de esclarecimento
inferiores aos demais. A ideia é que a autonomia financeira e administrativa
das perícias contribuísse para seu desempenho, mas no caso do esclarecimento
dos homicídios esse efeito foi contrário. É preciso tomar cuidados com
variáveis omitidas, pois as perícias tendem a se tornar autônomas nas grandes
corporações dos maiores Estados.
A taxa de apreensão de armas de
fogo no Estado parece relevante e o sentido é positivo: quanto maior a taxa de
apreensão de arma (geralmente tarefa da PM), maior também a taxa de
esclarecimento de homicídio. Se pensarmos na apreensão de armas como um
indicador de atividade policial, faz sentido pensar que ambas as grandezas
caminhem juntas. Ambas podem ser o reflexo de alguma política de combate aos
homicídios implementada no Estado, como vimos, focando tanto na retirada de
armas em circulação quanto na investigação de casos.
Por algum motivo pouco claro,
quanto maior a taxa de presos no sistema penitenciário do Estado, maior a
probabilidade dele pertencer aos grupos de médio ou alto esclarecimento de
homicídios. Ambas as dimensões estão relacionadas com a diminuição da
impunidade.
Por outro lado, uma taxa de
homicídios elevada, diminui a probabilidade de esclarecimento: este sinal
negativo faz sentido se pensarmos que o baixo esclarecimento estimula a
ocorrência de mais homicídios. Como já observamos, as menores taxas de
esclarecimento encontram-se hoje no Norte e Nordeste, precisamente as regiões
que apresentam as maiores taxas de homicídio. No sentido inverso, um alto
esclarecimento passa a mensagem de rigor na apuração e desestimula o
cometimento de novos homicídios, além de incapacitar ofensores contumazes.
A intenção não é esgotar todas as
possibilidades de interpretação, mas sugerir que maiores ou menores índices de
esclarecimento de homicídios não são aleatórios. Algumas variáveis independem
do poder público (como a natureza dos homicídios), mas outras estão sob sua
alçada. Os dados sugerem que o foco na questão da redução dos homicídios – como
um programa estadual com este objetivo, maior apreensão de armas, cursos de
preservação de local, diminuição da impunidade, etc., - podem trazer efeitos
benéficos sobre as taxas de esclarecimento. É preciso recursos e liderança para
enfrentar o problema. E é possível aprender com a experiência dos Estados com
elevados índices de esclarecimento.
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