Acompanho desde os anos 90 a
questão da letalidade e da violência policial e contra policiais no Brasil. Um
dos desafios no monitoramento da questão é como encontrar indicadores
minimamente objetivos que possam apontar quando os padrões de letalidade estão
dentro da “normalidade” esperada e quando estamos diante de padrões “excessivos”.
Só a análise de cada caso e
situação individual, feita na investigação, pode definir quando a atuação
policial no confronto foi legal e legítima e quando foi ilegal e excessiva. Há
que se levar em conta as provas testemunhais e as evidências forenses, as
circunstancias atenuantes e agravantes e os requisitos legais da necessidade e
proporcionalidade. Mesmo com todas as informações disponíveis é muito difícil
se colocar na posição do policial naquele momento e afirmar que se tratou de
uso ilegítimo ou abusivo da força. Isso faz com que seja baixo o percentual de
casos de mortes em confronto considerados como excessivos pela justiça e
julgados como homicídios. Na maioria dos casos, a justiça conclui que o uso da
força foi legítimo.
Se é temerário julgar casos
específicos sem o levantamento da situação, mais temerário ainda é fazer este
tipo de julgamento “coletivamente”, lançando mão de estatísticas e dados
agregados. Não obstante, acredito sempre que as estatísticas podem apontar algumas
tendências e padrões gerais sobre a questão. Elas jamais poderão ser utilizadas
para afirmar categoricamente alguma coisa ao nível individual. Mas podem lançar
alguma luz sobre o fenômeno da violência policial em geral.
Dito isso, é possível utilizar
alguns indicadores para analisar os padrões atuais de letalidade policial em
São Paulo, cujos dados de 2019 acabam de ser publicados. Não obstante a queda
generalizada da maioria dos crimes, membros da sociedade civil e dos meios de
comunicação apontam um crescimento da letalidade policial no período. Neste
artigo procuramos investigar se está ocorrendo um aumento, quando ele começou e
algumas possíveis razões para o fenômeno.
O quadro abaixo traz as médias
trimestrais de sete indicadores usuais de letalidade policial: 1) pessoas
mortas em confronto com a Polícia Civil, em serviço; 2) pessoas mortas em
confronto com a Polícia Militar, em serviço; 3) razão entre policiais mortos e
suspeitos mortos; 4) razão entre suspeitos feridos e suspeitos mortos; 5)
proporção de mortos em confronto dentro do total de homicídios; 6) mortes de
suspeitos por 1000 prisões e 7) morte de suspeitos por policiais por 100 mil
habitantes. A ideia é apontar para excessos através de indicadores minimamente
objetivos, minimizando os julgamentos morais.
Fonte: res 160 SSP/SP
Estamos analisando aqui médias
trimestrais, pois os dados são divulgados trimestralmente e temos dados para
apenas 2 trimestres para o ano de 1995 e 1 trimestre de 2019. (Assim, é preciso
multiplicar por quatro para termos uma ideia dos valores anuais).
A primeira coluna mostra que no
final dos anos 90 a Policia Civil se envolvia em mais confrontos letais do que
agora. A média é de 8,6 suspeitos mortos por trimestre e no primeiro trimestre
de 2019 ela ficou bem abaixo disto, com média de 3 mortos. Note-se a mudança de
patamar para baixo a partir de 2003, com exceção dos anos do ataque do PCC em
2006 e de 2017.
Por conta de sua função
constitucional e tamanho do efetivo, os confrontos com a Polícia Militar, responsável
pelo policiamento ostensivo, são bem mais letais, com média trimestral de 119
suspeitos mortos em confronto. Observe-se que depois do ano de 2013 parece ter
ocorrido uma mudança de patamar na letalidade dos confrontos, sendo todos os
valores superiores à média histórica, com exceção da observada em 2003, que foi
recorde da série. O primeiro trimestre de 2019 elevou um pouco este patamar,
mas a tendência altista já está caracterizada desde pelo menos 2014.
O terceiro indicador traz a razão
média entre suspeitos e policiais militares mortos em confronto. Em razão do
melhor treinamento, apoio e equipamento, é natural que morram mais criminosos
do que policiais nos confrontos. Mas
quantas vezes mais? A partir do que patamar temos um padrão “abusivo”? .
Historicamente, observamos em SP uma razão de 33:1, ou seja, suspeitos morrem
33 vezes mais do que policiais nos confrontos. (os números não são precisos,
pois estamos fazendo uma média de razões quando o ideal seria recalcular as
razões tomando os números absolutos originais. Mas a intenção é antes mostrar
como o indicador vem evoluindo no tempo). Note-se que no início da série
histórica esta razão era bem menor, bem como o impacto da política de mata-mata
entre Rota e PCC em 2012. Depois da relativa tranquilidade de 2013, note-se
novamente o que parece ser uma mudança de patamar para cima a partir de 2014. E
em 2019 um novo aumento, atingindo o pico da série histórica.
O quarto indicador traz a relação
entre suspeitos mortos e feridos nos confrontos. Numa situação normal, o
esperado é que os confrontos deixem mais feridos do que mortos. Os dados
mostram, todavia que, com exceção dos anos de 1995, 1996, 2005 e 2013, o nosso
padrão é invertido, ou seja, em média os confrontos produzem 1,3 mais mortos do
que feridos. Novamente aqui, vemos uma elevação no primeiro trimestre de 2019,
quando a razão chegou a 2,3 mortos por ferido.
O quinto indicador é a proporção
de mortos em confronto dentro dos homicídios em geral. O problema deste
indicador é que ele deixou de ser informativo, uma vez que presenciamos nas
últimas décadas uma redução sem precedentes no número de homicídios no Estado,
superior a 70%. De modo que esta proporção aumentaria de todo modo, mesmo que
tivéssemos uma diminuição ou estabilidade nos confrontos, por conta da queda no
denominador. Em todo caso, é digno de nota que no começo da série histórica as
mortes em confronto representassem apenas 3 a 4% das mortes no Estado e que
atualmente representem ¼ das mortes. Isto significa que o controle efetivo da
letalidade policial é hoje o melhor meio para reduzirmos ainda mais as mortes
por agressão externa em São Paulo.
O sexto indicador nos traz a taxa
de suspeitos mortos por 1000 prisões. A ideia subjacente é que quando ocorrem
mais crimes e mais prisões, temos concomitantemente um aumento no risco de
confrontos, uma vez que a maioria dos confrontos ocorre durante crimes em
andamento, principalmente roubos. Com efeito, no final dos anos 90 a polícia
paulista prendia em média 20 mil suspeitos por trimestre . Atualmente, esta
média é de 45 mil suspeitos, mais do que dobrando a quantidade de prisões.
Vemos assim que, mesmo tendo dobrado o risco de confrontos, a média de mortos
em confronto a cada 1000 prisões continuou ao redor de 4. A média sobe no período
de 2002 a 2006, mas depois volta a cair. Por este indicador, a letalidade
policial se manteve aproximadamente constante, se aceitamos o pressuposto de
que a letalidade é uma função do volume de crimes e de prisões. Mesmo aceitando
este pressuposto, um patamar elevado de letalidade não é “destino”, mas antes
produto de uma política de segurança. Evidência disso é o ano de 2013, sobre o
qual voltaremos a comentar.
O sétimo e último indicador é a
taxa de suspeitos mortos por 100 mil habitantes. A lógica subjacente aqui é
que, como qualquer crime, a letalidade também aumenta com a população, de modo
que é preciso analisar taxas e não números absolutos. São Paulo de 1995 tinha
33 milhões de habitantes e o de 2019 tem 44 milhões. O Estado ganhou o
equivalente a uma cidade de São Paulo neste período, aumentando assim a
probabilidade de confronto. De fato, também por este indicador a letalidade se
manteve relativamente constante, embora esteja acima da média nos anos de 2014
em diante, quando se manteve sistematicamente acima dos .32:100 mil.
A análise sugere que é preciso
olhar com cuidado os vários indicadores de letalidade, que revelam diferentes
facetas do problema. É verdade que em parte a letalidade cresce em função do
crescimento da população e do volume de prisões, que aumentam as chances de
confronto. Por outro lado, em outra parte ela é função de uma “política” ou
ausência de uma política e varia para cima ou para baixo dependendo do período
e indicador que se tome.
Depois de um período de “linha
dura” em 2012, a gestão é substituída e vemos uma melhora generalizada dos
indicadores de letalidade em 2013. A média trimestral de mortes cai de 136 para
83, a razão mortos suspeitos X mortos policiais cai de 84 para 19, a razão
mortos X feridos cai de 1,5 para 0,86, a porcentagem de mortos dentro dos
homicídios cai de 12% para cerca de 8%, a taxa de mortes por 1000 prisões cai
de 4,2 para 2,2 e a taxa de mortes por 100 mil habitantes cais de .33 para .20.
Ou seja, presenciamos uma melhora substancial dos padrões de letalidade, de um
ano para outro, fruto de uma política explícita de pacificação, após conflitos
de 2012. Quando a polícia e o governo querem, é possível baixar a letalidade
para níveis toleráveis, não obstante o aumento da população ou das prisões.
Os dados sugerem também que a
elevação da letalidade não é algo que aconteceu subitamente em 2019, mas um
processo que se inicia por volta de 2014. O que aconteceu de lá pra cá que pode
explicar este fenômeno? Provavelmente, como todo fenômeno complexo, isto se
deva a uma série de fatores: mudanças na gestão da SSP e no comando da PM,
agravamento da crise econômica e elevação dos crimes patrimoniais, aumento da
violência por parte dos criminosos, desmobilização da comissão de letalidade da
SSP desde 2011, maior rapidez da polícia no atendimento aos chamados, etc. A
polícia tem procurado justificar o aumento da letalidade pelo aumento da
agressividade dos criminosos e aumento da celeridade no atendimento às
ocorrências, mas até o momento não foram apresentados dados e estudos que
corroborem estas justificativas.
Mas o fenômeno talvez seja em
parte nacional e ligado a causas mais gerais. Segundo dados do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, de 2016 para 2017 houve um aumento de 20% no número de
mortos cometidos pelas polícias, que foram responsáveis por 5.144 mortes no
país. E novo aumento de 18% foi relatado em 2018, de acordo com o levantamento do
projeto Monitor da Violência, capitaneado pelo G1, que computou 6.160 mortes. https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2019/05/07/com-mortes-pela-policia-queda-de-assassinatos-no-brasil-em-2018-e-menor.ghtml.
Em artigo anterior, apresentamos outros indicadores de abuso policial no
Brasil, trazendo dados estaduais. https://tuliokahn.blogspot.com/2018/12/trata-aos-outros-como-queres-ser.html
Não temos evidências para
corroborar, mas é possível conjecturar que o próprio desgaste moral do PT e das
políticas e discursos humanitários “de esquerda” após 2014 tenham contribuído
para esta elevação da letalidade policial, em diversos Estados. De alguns anos
para cá ficou cada vez mais socialmente tolerável defender a resolução dos
conflitos pela força, políticas de segurança “manu dura”, criticar a defesa dos
direitos fundamentais, apoiar a liberação das armas de fogo, justificar o
excesso policial com base no “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, ou mirar
“na cabecinha”, como disse mais explicitamente o atual governador do Rio, onde
a letalidade também tem batido recordes.
Um dos piores efeitos dos
descaminhos da esquerda nesta década no governo foi ter contribuído
involuntariamente para que este tipo de discurso político se alastrasse pela
sociedade, legitimado por lideranças políticas, defendido por parcelas da
sociedade, principalmente através das mídias sociais.
Quanto mais aceita esta política e
este discurso de “jogar duro com a bandidagem”, menor a capacidade de pressão
das instituições da sociedade civil (há um projeto de lei na Assembleia para
acabar com a Ouvidoria de polícia de SP...) para pressionarem pela redução da
letalidade. Associadas tradicionalmente à esquerda, diversas ONGs perderam legitimidade
como interlocutoras neste debate, atingidas de tabela pelo desgaste dos
governos e partidos de esquerda. Ninguém quer mais ouvir falar de direitos
humanos e há menos espaço nos meios de comunicação para a denúncia de eventuais
abusos, inclusive contra policiais.
Assim, com menos pressão por
parte da sociedade civil organizada e com maior respaldo por parte de movimentos
e lideranças que defendem o endurecimento penal e no trato com os criminosos,
as polícias acabam cedendo muitas vezes à tentação do uso abusivo da força.
Como disse, são apenas
conjecturas para tentar explicar o aumento da letalidade pós 2014, embora a
literatura sobre o tema tenha já evidenciado que mudanças nos discursos com
relação à legitimidade dos confrontos tenham impacto significativo sobre os
níveis de letalidade (Oliveira Jr, Emanuel Nunes de. Letalidade da Ação
Policial e teoria interacional: análise integrada do sistema paulista de
segurança pública. FFLCH, 2008)
O bom desempenho da polícia se
mede pela taxa elevada de resolução de crimes, pela capacidade de prevenção,
pelo respeito demonstrado pela população, pela equidade no trato com o cidadão,
pela celeridade na resposta às demandas, pela satisfação de seus quadros.
Elevada taxa de letalidade
compromete este bom desempenho e deve ser desestimulada, por exemplo, com
redução no prêmio salarial quando aumenta a letalidade (como prevê a lei de
metas), com a retomada da Comissão de Letalidade e com a defesa muito incisiva
da legalidade pelos gestores da segurança pública. A grande maioria dos
policiais de São Paulo, com quem convivi durante muitos anos, é técnica,
profissional, legalista e não deseja o confronto. Letalidade alta é coisa de
capitão do mato. É evidência de fracasso da ação e risco para o policial. São
Paulo é caso de maior sucesso na redução dos homicídios do país. E pode se tornar também um exemplo no que diz
respeito à redução da letalidade policial. Este processo começa com a mudança do
discurso sobre o uso da força.
Bibliografia
Ceccato
V., Melo S.N., Kahn T. (2018) Trends and Patterns of Police-Related Deaths in
Brazil. In: Carrington K., Hogg R., Scott J., Sozzo M. (eds) The Palgrave
Handbook of Criminology and the Global South. Palgrave Macmillan, Cham