quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Explosão da criminalidade ou ano base atípico?

 

Explosão da criminalidade ou ano base atípico?

 

Ouvi recentemente um conceituado comentarista no rádio alarmado com as taxas de crescimento criminal em São Paulo em outubro, comparando com o ano anterior. Especialista em seguros, o comentarista alertava que se a Secretaria de Segurança Pública não fizesse nada, as seguradoras seriam obrigadas a aumentar o valor dos seguros de veículos, diante da explosão da criminalidade.

Não tenho mandato para defender a SSP – embora ainda faça parte do Conselho Estadual de Segurança – mas o alarde é parcialmente injusto. Tecnicamente, a variação explosiva dos índices de 2002 para 2021 pode ser constatada e não há erro formal no cálculo do comentarista.

Mas os manuais de estatísticas nos ensinam -  inclusive o que publiquei quando coordenador de análise da secretaria – que ao comparar períodos não devemos usar como período base um momento que seja atípico, tanto para cima quando para baixo.

E, como todos sabemos, o ano de 2020 esteve longe de ser típico, pelo menos desde os meados de fevereiro. A epidemia provocou mudanças bruscas e repentinas na rotina e diversos fenômenos sociais e econômicos foram fortemente afetados por essa mudança de rotina. Como eu e dezenas de outros tivemos a oportunidade de mostrar, a epidemia produziu alterações significativas em boa parte dos crimes, em geral, atuando para reduzi-los drasticamente. Crimes são “atividades de rotina“ e estão altamente correlacionados às oportunidades, como a disponibilidade de alvos.  Antes mesmos das avaliações de impacto, já antecipávamos que este enorme experimento natural fosse produzir grandes impactos nas séries criminais. (assim como já sabemos que a evasão escolar, desemprego e aumento de armas em circulação cobrarão seu preço no futuro).

Igualmente, antecipávamos que mais cedo ou mais tarde, parte da tendência anterior retornaria à média, uma vez que a rotina se reestabelecesse. Muitos crimes, assim, se movimentariam na forma de “V” ou “U’, conforme o retorno fosse mais rápido ou vagaroso. Alguns ainda apresentam forma de “L” e não retornaram ao patamar anterior.  A sucessão de ondas e de aberturas e fechamentos da economia e das atividades sociais poderia provocar movimentos em “W” e assim por diante.  Qualquer que fosse o movimento, ficou claro que as séries históricas de crimes ficariam bastante prejudicadas para fins de análise. Para garantir alguma comparabilidade, sugeri que as taxas fossem calculadas a partir da população em circulação nas ruas e não com base na população residente: calculadas desta forma, algumas taxas que pareciam ter baixado na verdade tiveram risco relativo aumentado.

O fato é que os analistas precisarão decidir daqui por diante – e não apenas os analistas criminais, mas também as demais áreas mais afetadas pelo COVID – como farão para garantir um mínimo de comparabilidade nas séries históricas. A alternativa mais simples talvez seja apenas ignorar os dados coletados durante a epidemia (quando começa e quando termina é algo que precisaria ser analisado localmente). Em suma, adotar como período base o ano de 2019.

No exemplo abaixo tomamos as estatísticas criminais de São Paulo, de janeiro a outubro de cada ano, e analisamos as variações em 2021, primeiro tomando o ano de 2020 como base e depois adotando o ano de 2019 como base. As tendências, como esperado, são bastante distintas em alguns casos.

 

Comparando como fez o comentarista os dados de 2021 com 2020, vemos um aumento de 9,4% no total de crimes, depois de uma queda abrupta de 21,7% no ano anterior. Furtos outros e furto de veículos – que foram bastante afetados durante a epidemia – mostram crescimento entre 17 e 20% neste ano. Roubo de veículos crescem 3,1% e roubos outros 2,7%. Em queda digna de nota em 2021, apenas os homicídios dolosos (-3,2%) e os latrocínios (-9,5%). Curiosamente, os dois crimes que tiveram um ligeiro crescimento durante a pandemia.

O que acontece quando retiramos o ano de 2020 e utilizamos 2019 como base? Como esperado, as tendências são bastante diferentes: ao invés de subir, observa-se uma queda geral no total de crimes (-14,4%). Furtos e furtos de veículos têm quedas de 14% e os roubos de veículos – preocupação do nosso comentarista – caem nada menos do que 31%. (sim, usem este dado se a seguradora quiser aumentar o valor do seu seguro).

Os homicídios apresentam um leve aumento da ordem de 2,5% e os latrocínios uma que da -6,6%). Ao contrário do quadro anterior, todos os crimes tem queda, com a exceção de dois.

Como se observa, há uma enorme diferença na interpretação das tendências criminas, conforme adotemos 2019 ou 2020 como ano base de comparação para as variações. A comparação com 2020 é formalmente correta, mas provavelmente injusta. Creio que a melhor recomendação prática seja calcular as variações das duas maneiras e incluir uma grande nota de rodapé justificando e explicando a excepcionalidade do período da pandemia. De todo modo, é importante fornecer o quadro completo para que os agentes possam tirar suas próprias conclusões sobre a situação. E isto não apenas com as estatísticas de criminalidade, mas com as econômicas, sociais, sanitárias e todas que tendem a flutuar no curto prazo e foram afetadas pelas mudanças na rotina.

Omitir a epidemia pode induzir a erro. Pelo menos nos meus modelos, 2020 e o período mais sério da epidemia sempre serão considerados “outliers” ou pontos fora da curva que precisarão ser modelados. Se isso não foi um “outlier”, não sei o que seria, talvez um cataclismo nuclear.  Caso contrário, nossas predições (além do bolso) serão as grandes prejudicadas.

 

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Webinário “Municípios e Segurança Pública”

 Brasília, 17/11/2021 - O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) irá apresentar temas relevantes acerca da participação dos municípios como integrantes estratégicos do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). O webinário “Municípios e Segurança Pública” será transmitido pelo canal oficial do MJSP no YouTube nesta quinta-feira (18), às 20h30.

Esta é a terceira edição do seminário online “Segurança Pública em foco” promovido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério, no âmbito da Jornada Nacional de Segurança Pública e Defesa Social.

O webinário contará com a participação do pesquisador Túlio Kahn, que irá apresentar experiências exitosas para redução da violência no âmbito municipal. Além disso, a prefeita do de Pelotas (RS), Paula Mascarenhas, irá mostrar os resultados do programa "Pacto Pelotas Pela Paz", iniciativa que auxiliou na redução dos indicadores de homicídios no município. O debate será moderado pelo delegado de Polícia Civil de Minas Gerais Daniel Barcelos, gerente de projeto estratégico no Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Sobre a Jonasp

A Jornada Nacional de Segurança Pública e Defesa Social é uma iniciativa do MJSP, por meio da Senasp, que objetiva discutir novos caminhos e perspectivas para a segurança pública do país. Para tanto, estão previstos eventos presenciais e webinários até o primeiro semestre do próximo ano. O próximo evento presencial da Jonasp será o seminário “I Jornada Nacional de Policiamento Rural: Práticas e Tendências”, que ocorrerá entre os dias 23 e 25 de novembro em Sinop (MT).

Link:

https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-da-justica-e-seguranca-publica-reforca-protagonismo-dos-municipios-no-susp


quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Lawrence W. Sherman: Entrevista a Pedro Scuro Neto, Tulio Khan e Lélio B...

Recebemos Lawrence W. Sherman, criador do policiamento baseado em evidências, e da criminologia experimental focada em experimentos controlados, randomizados e aplicados ao estudo de prevenção de criminalidade. Consultor da várias polícias ao redor do mundo, professor emérito da Universidade de Cambridge, diretor do Jerry Lee Centre for Experimental Criminology, do Cambridge Centre for Evidence-Based Policing, e presidente do Cambridge Police Executive Program. Editor-chefe do Cambridge Journal of Evidence-Based Policing. Ex-presidente da Sociedade Internacional de Criminologia, Sherman é autoridade mundial em policiamento da violência doméstica e nesta oportunidade procura responder, junto com criminólogos, penalistas e políticos brasileiros, à pergunta: “em que medida os nossos registros digitais de eventos de violência doméstica ajudam a direcionar seletivamente o policiamento proativo e para prevenir ocorrências grave?”. Nossos dados são confiáveis, mas que ainda não há filtro, ação ou práticas comuns em diferentes conjunturas críticas para classificar as infrações por sua gravidade e organizar a aplicação por níveis de implementação. Assim, embora haja legislação específica e equipamento de porte para lidar com o problema, falta um instrumento específico para aferir a gravidade dos casos a partir do qual direcionar patrulhas preventivas, tratamento, terapia, abrigo, medidas restritivas. Neste dia 6 de setembro, segunda-feira, das 11 às 12:30h, Larry Sherman conversa com os professores Pedro Scuro Neto, Tulio Kahn e Lelio Braga Calhau. Lawrence W. Sheman Os interesses de pesquisa do Professor Lawrence W. Sherman estão nas áreas de prevenção ao crime, policiamento baseado em evidências, justiça restaurativa, práticas policiais e criminologia experimental. Sherman conduziu experimentos de campo, por exemplo, para encontrar maneiras mais eficazes de reduzir homicídio, violência armada, violência doméstica, roubo, roubo e outros problemas criminais, em colaboração com agências como Metropolitan, Northumbria e Thames Valley Police, London's Crown Tribunais, Prisões HM, o Crown Prosecution Service, o Youth Justice Board of England and Wales e o National Probation Service.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Discussão sobre Segurança Cidadã e Tecnologia

Neste encontro, organizado entre o CAF e a Secretaria de Segurança Pública da OEA, trocaremos experiências e aprendizados sobre o uso de sistemas de videovigilância e georreferenciamento do crime como elementos-chave para melhorar a segurança das cidades da nossa região. Hoje, os sistemas de videovigilância e o mapeamento de crimes e violência tornaram-se ferramentas fundamentais para a prevenção, dissuasão, controle e investigação, bem como para melhorar a sensação de segurança por parte da população. O uso de câmeras e o mapeamento do crime, bem como a análise que deriva delas, trazem consigo não apenas a questão do recrutamento e treinamento das equipes que são formadas para tais fins, mas também questões relacionadas ao armazenamento e proteção de imagens e dados, o direito à privacidade ou a possibilidade de medir sua eficácia ou impacto. Como parte dessa nova realidade, governos locais, observatórios, instituições policiais e centros/unidades de análise de crimes e violência emergem como atores-chave no diagnóstico de problemas, gerando evidências para orientar a elaboração e a tomada de decisões e monitorar tendências de segurança. Tecnologias são um meio, nunca um fim. Sua incorporação em políticas de segurança trouxe consigo uma série de desafios. Seu uso deve ser elaborado racionalmente, como resultado de diagnósticos baseados em informações e conhecimentos, e também com objetivos claros, respeitando os direitos dos indivíduos. A partir da apresentação de três experiências locais, essa conversa busca identificar e entender quais são algumas das vantagens e desafios dos sistemas de videovigilância e análise geoespacial, buscando banir alguns mitos, além de sistematizar algumas lições aprendidas com o uso de ambas as ferramentas. Data: terça-feira, 3 de agosto de 2021 Horário: 15h (Washington D.C.) - 16h (Buenos Aires) Agenda *La agenda esta en la zona horaria de America/Sao_Paulo día 1 03 de agosto de 2021 04:00 PM - 04:05 PM Boas-vindas Jorge Concha Diretor de Análise e Avaliação Técnica de Desenvolvimento Sustentável, CAF 04:05 PM - 04:10 PM Agenda CAF de Segurança Cidadã Guadalupe Aguirre Especialista CAF em Segurança Cidadã 04:10 PM - 04:25 PM Informação, dados e tecnologia. Entradas para políticas baseadas em evidências Tobías Schleider Consultor e especialista internacional em segurança democrática 04:25 PM - 04:40 PM Funções e limitações da vigilância por vídeo do espaço público. O caso do Tigre, Província de Bs. As., Argentina Vanesa Lio Pesquisador do CONICET, Argentina 04:40 PM - 04:55 PM Avaliação dos efeitos da instalação de câmeras de videovigilância em Medellín Santiago Tobón Economista. Diretor do Centro de Pesquisa em Economia e Finanças do CIEF da Universidade EAFIT 04:55 PM - 05:10 PM Usando a análise geoespacial para reduzir o crime e gerenciar a segurança. O caso da redução de homicídios em São Paulo, Brasil. Tulio Kahn Assessor Titular da Fundação Espacio Democrático 05:10 PM - 05:30 PM Espaço de troca 05:30 PM - 05:35 PM Cierre Karen Bozicovich Jefa de la Sección de Información y Conocimiento del Departamento de Seguridad Pública de la OEA

quinta-feira, 22 de julho de 2021

As polícias e as armas

Há várias pesquisas de opinião nas últimas décadas levantando o que as pessoas acham sobre o porte ou posse de armas de fogo. Em geral, as pessoas pensam de forma abstrata no tema e invocam argumentos filosóficos como “direito de defesa” e garantia contra governos autoritários; ou mais instrumentais como segurança do patrimônio, pessoal e da família. Mas a maioria delas não têm uma arma ou é autorizada a andar com ela todos os dias. A probabilidade de que venham utilizá-la algum dia, de fato é bastante remota. O risco de andar armado também é diferente, uma vez que a arma não está à vista de todos. Para um policial, ou operador do campo da segurança pública ou privada, a situação é bastante diferente. Portar arma é não apenas um direito, como um dever. A arma de fogo é seu instrumento de trabalho e ele a carrega diariamente, publicamente, embora sejam relativamente raras as ocasiões em que fará uso dela. Mas a mera possibilidade de ter que usá-la já altera a forma como a questão do acesso às armas pela população é percebida. O policial corre mais risco de ser vitimado numa tentativa de roubo da sua arma, tem mais chances de sofrer um acidente, vítima de violência doméstica, de suicídio, de latrocínio. Ele foi treinado sobre como armazená-la corretamente, mantê-la em condições de uso, usá-la com segurança. As armas podem tê-lo salvo de situações complicadas, mas também podem ter matado muitos de seus colegas. Operadores de segurança tendem a gostar de armas, ou pelo menos não tem resistência a elas, como muitos na população. Em resumo, a questão do armamento civil para um policial é muito mais presente e complexa do que para alguém que pensa a questão em abstrato, como uma questão de princípio ou política. As armas compradas legalmente acabam no mundo do crime e aí podem ser usadas diretamente contra eles. Por tudo isso, é importante saber o que os policiais pensam sobre a questão: os policiais apoiam mais ou menos do que a população em geral as restrições às armas de fogo? Que tipo de policial? E por quais razões? A pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) procurou explorar como os policiais veem a questão da liberação ou proibição de armas e quais os fatores associados com a maior ou menor adesão a cada posição. “Policial” é um termo muito heterogêneo e as opiniões são matizadas de acordo com a corporação, gênero, nível hierárquico e outros fatores. Outras variáveis, como experiência de ser pessoalmente vitimado ou perdido colegas de trabalho podem afetar as opiniões sobre o tema. Assim como a avaliação que o policial faz do governo Jair Bolsonaro, sabidamente defensor da flexibilização da posse e porte de armas de fogo. Muitos trabalham com segurança durante a folga e precisam de armas particulares para o exercício do bico. Assim, são muitos e diversos os potenciais fatores e os motivos subjacentes para apoiar ou rejeitar o armamento civil. Nas análises subsequentes explorarei apenas relações bivariadas e, como é sabido, tais associações podem ser espúrias, pois não estão controladas por outras variáveis relevantes. Trata-se, portanto, apenas de análise exploratória. Nas tabelas, assinalarei apenas as diferenças em relação ao esperado que se demostraram significativas¹. A intenção é destacar características que aumentam ou diminuem o apoio às armas. Posteriormente, estas variáveis podem ser testadas num modelo multivariado que estime os efeitos simultâneos do conjunto. Por hora, vamos apenas avançar conjecturas. Na amostra completa, observamos que uma minoria de policiais é favorável à posse e porte de armas para todos na população, sem limites de qualquer natureza (10,4%). Por outro lado, é também uma minoria (16%) que defende a proibição e porte de todas as armas de fogo. A grande maioria dos entrevistados (73,6%) defende uma postura condizente com a legislação atual, ou seja, que permita o porte e posse, mas com limites de quantidade de armas e munições, mecanismos de controle e rastreamento de armas, restrição a certos tipos de armamento etc. Nem liberação completa, nem restrição total. Devido a diferenças na redação das perguntas não é possível comparar a opinião dos policiais com as da população em geral. Para dar uma noção das tendências recentes entre a população, a Pesquisa CNT/MDA de fevereiro de 2021 apontou que 68,2% dos brasileiros são contrários ao decreto que flexibilizava o acesso da população à compra de armas de fogo. Em março de 2019 o IBOPE divulgou que 61% da população é contra a flexibilização da posse de armas e o DataFolha de julho de 2019 levantou que 61% da população rejeita a legalização da posse e 73% do porte de arma. (IBOPE, março de 2019; DataFolha, julho de 2019; CNT/MDA, fevereiro de 2021). Existem muitas modulações nas opiniões dos policiais e as tabelas subsequentes exploram os desvios destas porcentagens médias. Há bastante divergência entre as corporações. Polícia Rodoviária Federal, Polícia Científica, Polícia Federal e Polícia Civil apoiam significativamente mais a proibição, enquanto o Corpo de Bombeiros e a Polícia Penal apoiam a liberação incondicional. Os agentes penitenciários sempre reivindicaram o direito de portar armas, o que explica talvez a maior adesão da categoria à tese da liberalização. A Polícia Militar, por fim, adere significativamente mais à proposta da liberalização limitada. Com relação ao gênero, assim como parece ocorrer entre a população em geral², as mulheres são muito mais favoráveis à proibição (28,9%), praticamente o dobro do percentual de homens (13,7%). A diferença é provavelmente decorrência da socialização, uma vez que meninos crescem brincando com armas. Neste aspecto, vemos que a identidade de policial é permeada por outras identidades (de gênero, cor, classe, religião) e que a resultante é uma síntese de todas estas forças sociais. É digno de nota que entre os policiais que se identificaram como pretos o apoio às restrições suba para 20,3%. Enquanto negros, eles parecem ter a consciência de que o impacto da maior circulação de armas na sociedade é bem maior para os jovens negros do sexo masculino, afetando suas opiniões sobre armas. Com relação à religião, duas variações chamam a atenção. Os que se declaram sem religião demonstram um apoio muito maior que a média à proibição de armas (26,2%), sugerindo uma preocupação humanitária superior aos que dizem ter alguma religião. O segundo aspecto é que entre os evangélicos é nítido o menor apoio à proibição total e o maior apoio à liberação das armas, especialmente entre os pentecostais. Isto pode ter relação com alguma afinidade conceitual entre a ética evangélica (como diria Weber) e as teses armamentistas, ou pode ser um efeito indireto, como veremos, do apoio do presidente, que é evangélico, à flexibilização das armas. A escolaridade gerou efeitos contraditórios, com o apoio a proibição sendo maior tanto entre os que têm apenas o fundamental quanto entre os que têm pós-graduação, mas menor entre os que têm ensino médio. A análise por área aponta que os policiais nas capitais favorecem a tese da proibição enquanto os policiais do interior a liberalização. As taxas de criminalidade nas capitais são invariavelmente superiores às do interior e talvez se esperasse – uma vez que armas são consideradas como instrumentos de proteção e que taxas maiores de criminalidade implicam em maior sensação de insegurança – que o apoio às armas fosse maior nas capitais. Esse tópico precisaria ser aprofundado, pois é possível que haja uma terceira variável omitida ou que policiais da capital e do interior tenham visões diferentes sobre armas: nas capitais sendo talvez mais perceptível o impacto das armas sobre a criminalidade e os policiais do interior, menos violento, vendo armas como um direito. Os mais velhos apoiam mais a proibição (27,7%), tendência também captada na Polícia Federal (Borba, 2020). Com relação às diferenças regionais, finalmente, o Nordeste defende menos a liberação (7%) e mais a proibição (21%) enquanto Norte e Sul³ demostram menos adesão à tese proibicionista. Talvez seja digno de menção que as grandes indústrias de armas, como Taurus, estão localizadas no Sul, região de fronteira e de tradição militar, e que a região costuma se destacar como mais favorável ao armamentismo nas pesquisas de opinião com a população. No primeiro grupo de cruzamentos exploramos as variáveis sócio-demográficas clássicas. O questionário, contudo, é bem mais amplo e avança em questões como satisfação com a profissão, racismo, atividades profissionais extras, vitimização, covid e diversos outros. Assim, achamos interessante averiguar como as opiniões com relação às armas são afetadas por estas variáveis. Elas nos dão pistas interessantes sobre eventuais motivos subjacentes. Embora irregular, muitos policiais desempenham outras atividades renumeradas, em especial na esfera da segurança privada. Na segurança privada devem utilizar armas pessoais e a legislação atual impõe uma série de limites a este uso. Assim, não é de estranhar que o apoio à liberalização irrestrita cresça para 18,2% entre os que dizem ter outra atividade em segurança privada. Este apoio é ainda ligeiramente superior à média entre os que têm outra atividade renumerada qualquer e só cai entre os que não desempenham outra atividade. Há, assim, uma razão instrumental para o apoio à liberalização entre os policiais que fazem bico ou estão ligados de algum modo ao setor privado de segurança. Além das razões instrumentais, há um componente afetivo impactando as opiniões. Note-se que entre os policiais que apontaram terem sido baleados em serviço, o apoio à liberalização irrestrita sobe para 17,5%, assim como entre aqueles que disseram terem sido vitimados fisicamente por algum suspeito (12,1%) ou ameaçado de morte ou violência física (11,5%). Ao contrário, o apoio à proibição é nitidamente maior entre os que não foram baleados ou vitimados, bem como entre os que nunca presenciaram a morte de colegas (16,7%). Assim, ter sofrido ou presenciado violência por parte de criminosos parece afetar a predisposição com relação à flexibilização das armas. Parece existir uma conexão entre vitimização, discurso pró-armas e o discurso contra “bandidos” ou direitos humanos, mas infelizmente a pesquisa não permite aprofundar estas conexões4. Finalmente, o questionário traz uma bateria de questões sobre o enfrentamento à covid-19, e particularmente duas que medem indiretamente o apoio ao governo federal. A primeira perguntava ao entrevistado “O quanto você concorda que as medidas como utilização de medicamentos como cloroquina, azitromicina, ivermectina são adequadas para prevenir a covid-19?” e a segunda se o entrevistado “acredita que o Governo Federal está realizando ações para auxiliar seu trabalho na pandemia?”. Embora não sejam perguntas diretas sobre o apoio ao governo Bolsonaro, acreditamos que sejam boas medidas substitutas (proxys) deste conceito. Bolsonaro fez sua carreira política defendendo demandas das polícias e da indústria de armas e sabe-se que existem afinidades eletivas entre o ideário bolsonarista e o ideário policial. Em outras palavras, a hipótese aqui é que o apoio ao governo Bolsonaro aumenta a chance de apoio à liberação irrestrita as armas (ou vice-versa, pois o sentido da associação pode ser inverso). Com efeitos, de todas as variáveis utilizadas estas duas foram as que tiveram maior impacto sobre as opiniões sobre armas. O apoio à liberalização irrestrita sobe para 16,7% entre os policiais que acreditam no tratamento precoce para a covid-19 e para 14,6% entre os que avaliam que o governo federal está atuando para auxiliar na pandemia. Em nítido contraste, o apoio à proibição irrestrita sobe, respectivamente, para 46% e 30,2% entre os que discordam destas afirmações. Resumidamente, existem chances muito grandes de que eu seja a favor da liberalização irrestrita das armas se eu for do Corpo de Bombeiros, homem, evangélico, trabalhar no bico de segurança, ter sido alguma vez vítima de violência e ser simpático ao governo federal. Em contraste, existem chances muito maiores de apoiar a proibição irrestrita se pertencer à Polícia Rodoviária Federal ou Científica, for mulher, negro, sem religião, ter ensino fundamental ou pós, mais de 60 anos e morar no Nordeste. Além de não desempenhar atividade remunerada extra, não ter sido vitimado e discordar das medidas do governo federal. A pesquisa sugere que as opiniões dos policiais sobre armas – como de resto da população em geral – são influenciadas por diversos fatores. Questões de identidade de gênero, cor, região, religião, carreira profissional afetam estas opiniões. Assim como razões de ordem instrumental, afetivas e políticas. Todas as nossas opiniões, sobre qualquer ponto, são um balanço destes múltiplos conflitos e contextos. Como dito inicialmente, trouxemos apenas associações bivariadas e é preciso construir um modelo estatístico mais sofisticado para verificar quais destas associações se mantêm quando controladas por outros fatores. Encontramos apenas uma tese brasileira que utilizou técnicas multivariadas para analisar os fatores que influenciam a opinião dos policiais federais sobre armas de fogo (Borba, 2020). Embora calcado numa amostra de 801 casos de uma única corporação, o modelo de regressão corroborou diversas associações encontradas aqui. De acordo com Borba, percepções favoráveis às armas de fogo estão correlacionadas com o nível de experiência no manuseio, ter presenciado lesão com arma, faixa etária mais velha e grau de religiosidade. Mas diferentemente do encontrado aqui, gênero não se revelou estatisticamente significativo e evangélicos aprovavam a posse de armas numa porcentagem menor do que média (Borba, 2020). Conhecer a opinião dos policiais – que lidam diariamente com armas de fogo e seus efeitos, positivos ou negativos – é importante para refletir sobre a questão. Coisa diferente é considerar, do ponto de vista da construção de uma política pública sobre armas de fogo, que a opinião dos policiais deva pesar mais (ou menos) do que as demais. Como vimos, existem razões econômicas, afetivas e ideológicas que afetam significativamente estas percepções. E estas são péssimas conselheiras quando se trata de defender o bem coletivo. 1 Como critério, usamos o desvio padronizado entre o valor esperado e o valor observado. Mostramos apenas os desvios superiores a 2,64, o que equivale ao nível de significância de .001 2 Na pesquisa IBOPE de 16 de março de 2019, 50% dos homens se disseram a favor do afrouxamento das regras para a posse de armas, em contraste com 27% das mulheres. O mesmo ocorre com relação ao porte. Já em 2005, antes do plebiscito sobre a comercialização de armas de fogo, o Instituto Datafolha observava que as mulheres e os moradores do Nordeste eram mais favoráveis à proibição da venda enquanto homens e moradores do Sul eram proporcionalmente mais contra. https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2005/07/1226824-80-acham-que-o-comercio-de-armas-de-fogo-e-municao-deve-ser-proibido.shtml 3 Na pesquisa IBOPE de 16 de março de 2019, Norte e Sul foram também as Regiões mais favoráveis à flexibilização da posse de armas. 4 Esta associação entre vitimização e aumento da vontade de ter armas também foi observada recentemente no levantamento do Latino Barômetro de 2021 (LAPOP). Na média, 43% responderam que teriam uma arma de pudessem, porcentagem que sobe para 54% entre os que foram vítimas de algum crime nos últimos 12 meses. Referências bibliográficas: Borba, Alessandra. A Percepção de Policiais Federais sobre Armas de Fogo. Mestrado em Administração Pública, UNB, 2020. https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/06/03/ibope-maioria-dos-entrevistados-em-pesquisa-e-contra-a-flexibilizacao-das-regras-de-armas.ghtml https://www.jb.com.br/pais/2019/06/1003171-percentual-de-brasileiros-favoraveis-a-armas-dobra-em-sete-anos–mas-maioria-ainda-e-contra.html https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2005/07/1226824-80-acham-que-o-comercio-de-armas-de-fogo-e-municao-deve-ser-proibido.shtml

terça-feira, 4 de maio de 2021

Tráfico de drogas na percepção policial e os custos para a sociedade

 


 Tulio Kahn. Doutor em Ciência Política

Rodrigo Vilardi. Doutor em Direito Penal e Policial Militar do Estado de São Paulo.

 

Nos diversos programas policiais que ocupam as tardes televisivas de brasileiros, as notícias e imagens mais comuns mostram viaturas em perseguições emocionantes, transmitindo ao público a ideia de que ser policial é viver o tempo inteiro em um filme de James Bond. Embora isso faça parte do cotidiano de um pequeno grupo de policiais, a verdade é que o dia a dia da maioria dos policiais é bem menos emocionante do que a dramatização mostrada pela TV.

Diversas pesquisas criminológicas procuraram retratar o cotidiano típico das polícias, através de formulários onde os próprios policiais respondem quanto tempo do seu dia gastam em cada tipo de atividade. O retrato que emerge destas pesquisas, felizmente, é que na maior parte do tempo os policiais estão engajados em outras atividades, não tão espetaculares tal como a TV mostra. Em suma, para a grande maioria, na maior parte do tempo, as atividades são muito mais burocráticas e menos emocionantes do que parecem.

Essa frequente discrepância entre percepção e realidade recomenda cautela redobrada antes de qualquer conclusão ou abordagem sobre a atividade policial. Recentemente participamos de um projeto que teve por objetivo estimar quais são os custos da repressão ao tráfico de drogas em duas das principais capitais brasileiras: Rio de Janeiro e São Paulo (Um Tiro no PÉ, Cesec, 2021). Chama a atenção a constatação de grande discrepância na avaliação do peso da repressão as drogas, quanto contrastamos as avaliações dos policiais sobre seu cotidiano com os dados administrativos.

Resultados

Com metodologia própria, o levantamento contou com respostas de 151 policiais em ambos os estados. No Rio de Janeiro, o resultado da pesquisa de opinião indicou que, na percepção dos policiais, 58% do tempo seria dedicado ao policiamento ostensivo e 42% a operações. Durante o trabalho de policiamento ostensivo, por sua vez, 46% do tempo dos policiais seria dedicado ao combate ao uso e tráfico de drogas. Finalmente, 54% do tempo destinado a operações seria gasto em ações relacionadas à lei de drogas.

No Estado de São Paulo, por sua vez, cerca de 70% do tempo de policiamento seria dispendido no policiamento ostensivo, em suas diversas modalidades e o restante do tempo (30%) em operações especiais. O combate ao uso e tráfico de drogas, por seu turno, ocuparia, na percepção dos policiais, 35% do tempo em que estão desenvolvendo o policiamento ostensivo rotineiro e 28% do tempo dedicado a operações específicas.

Note-se que no Rio de Janeiro, na percepção dos policiais, foi maior tanto o tempo dispendido em operações, quanto o tempo gasto na repressão às drogas em geral, tanto durante o policiamento ostensivo ordinário quanto em operações, o que parece coincidir com a impressão generalizada de que as operações contra o tráfico no Rio de Janeiro – onde diversas facções disputam territórios de venda - são proporcionalmente mais intensas do que em São Paulo. A se fiar na percepção dos policiais pesquisados, a repressão às drogas comprometeria quase metade do tempo dos policiais no Rio e um terço do tempo de policiamento dos policiais em São Paulo.

Todavia, os dados administrativos levantados na mesma pesquisa trazem um cenário diferente do estimado subjetivamente pelos policiais. Tomando por base o ano de 2017, no Rio, apenas 7,1% dos Boletins de Ocorrência da PM (BOPM) indicam estar relacionados à Lei de Drogas. Em São Paulo, por sua vez, apenas 4% das ocorrências atendidas pela PM (registradas no SIOPM) tem relação com a Lei de Drogas. Nas Polícias Civis o quadro não é diferente: apenas 2,8% dos Registros de Ocorrência no Rio estão relacionados a drogas, porcentagem que cai para 2,2% em São Paulo. Levando em consideração diversos outros indicadores de atividades policiais analisados na pesquisa, em média as polícias no Rio gastariam 3,7% do seu tempo combatendo o tráfico enquanto em São Paulo a porcentagem atingiria 7,7%. Bastante longe das estimativas subjetivas feitas pelos policiais.

A divergência entre os resultados parece indicar que a percepção dos policiais superestima a participação da repressão ao uso e ao tráfico nas atividades de policiamento ou que os dados oficiais subestimam esta atividade. A tabela abaixo compara os resultados do survey de São Paulo com os dados administrativos oficiais das polícias

Repressão ao tráfico: estimativas subjetivas e dados administrativos das PMs do RJ e SP

Questão

Pesquisa PMSP

Dados administrativos SSP-SP

Tempo médio estimado em atividades de repressão ao tráfico

31,5%

7,7%

Em relação aos BOPMs preenchidos por policiais de sua unidade, que percentual desses BOPMs você estima que são referidos a ocorrências relativas a drogas?

21%

4%

Em relação aos REGISTROS DE OCORRÊNCIA (BO/PCs) apresentados nas DELEGACIAS por POLICIAIS MILITARES de sua unidade, que percentual desses BO/PCs você estima que são referidos a ocorrências relativas a drogas?

27%

2,2%

 

Em relação às PRISÕES EFETUADAS por policiais de sua unidade (sejam elas em flagrante ou em cumprimento de mandado judicial), que percentual dessas prisões você estima que são referidas a ocorrências relativas a drogas?

30,4%

16,8%*

Fonte: pesquisa Um Tiro no Pé, Cesec, 2021 * considerando estimativa feita pelo Sou da Paz de que 60% das prisões por drogas são feitas pela PM em conjunto com os números de prisões (flagrante + mandado) e ocorrências de tráfico em 2017.

Supondo que a amostra de 130 policiais seja representativa da situação estadual, a discrepância entre os dados sugere que quando se trata do universo das drogas e do tráfico, as estimativas tornam-se infladas e o componente emocional parece interferir no aspecto cognitivo. As estimativas policiais parecem coincidir mais com o cenário mostrado nos programas policiais da TV e menos com as estatísticas oficiais das instituições.

Estimativas subjetivas exageradas ou dados oficiais subestimados?

Por outro lado, não se pode descartar a possibilidade de que os dados administrativos e as estatísticas oficiais coletadas não coincidam com ou traduzam a realidade do cotidiano policial.

Constatar a inexistência ou precariedade de dados, informações, indicadores a respeito de questões simples do sistema policial ou de justiça criminal revela um cenário desolador. Se tais dados são inexistentes ou se existentes e não são trabalhados e processados, como saber se o tempo ou os recursos policiais estão sendo desperdiçados em tarefas desnecessárias, em duplicidade, em qualquer outro “gargalo” ou “ineficiência” do sistema? Nesta pesquisa, para além dos custos da repressão ao tráfico, também confirmaram-se as dificuldades e fragilidades dos dados administrativos e das estatísticas oficiais, o que pode explicar parte da discrepância constatada entre dados e percepções. 

É preciso aprofundar o fenômeno, mas nossa impressão é que policiais tendem a ser menos objetivos e mais projetivos quando se trata de avaliar a questão das drogas e do tráfico e seu impacto sobre o crime, sobre os homicídios e sobre o trabalho policial. São os criminosos mais temidos e poderosos. O crime mais lucrativo e danoso para as famílias. Quanto instados sobre o tema, os policiais podem estar projetando aquilo que julgam que a sociedade espera deles.

Para além da intrigante questão da discrepância, a estimativa dos recursos policiais efetivamente dispendidos, todos os anos, no combate e repressão às drogas, seja pela percepção dos policiais seja pelos dados administrativos e estatísticas oficiais apresentadas pela pesquisa, revela que eles são significativos. A sociedade, que paga essa conta, precisa de informações para decidir não apenas quanto, mas como os recursos devem ser aplicados.  

 

Bibliografia

Instituto Sou da Paz. APREENSÕES DE DROGAS NO ESTADO DE SÃO PAULO. Um raio-x das apreensões de drogas segundo ocorrências e massa, 2018

LEMGRUBER, Julita (coord.) et al. Um tiro no pé: Impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. Relatório da primeira etapa do projeto "Drogas: Quanto custa proibir". Rio de Janeiro: CESeC, março de 2021.

quarta-feira, 31 de março de 2021

Podcast Olhos da Rua


Neste 7º episódio do Podcast conversamos com o sociólogo Tulio Kahn. Falamos sobre a importância do uso e análise de dado e estatísticas criminais para a eficiência da política criminal, assim como dos avanços e das dificuldades que ainda existem no Brasil em relação aos dados criminais. Kahn também falou sobre as causas da queda da criminalidade no Estado de São Paulo a partir dos anos 2000 e sobre os efeitos da pandemia de coronavírus sobre os índices criminais. Link para o blog do entrevistado como diversos artigos sobre política criminal: http://tuliokahn.blogspot.com/

: https://open.spotify.com/episode/2XLKnBvnnmweqn4sNCYde2

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Contando homicídios: Datasus X Sinesp

 


No Brasil existem duas principais fontes de dados nacionais sobre homicídios, o Datasus, do Ministério da Saúde, que coleta desde os anos 80 informações dos cerificados de óbitos preenchidas pelas secretarias de saúde e, mais recentemente, o SINESP do Ministério da Justiça, que coleta dados dos Boletins de Ocorrência policiais. O SINESP existe desde 2000, mas os dados são publicados a partir de 2015. Ambos permitem desagregar os dados por Município e mês e em conjunto, dão um panorama da evolução da violência letal no país.

Os dados não coincidem em termos de magnitude (e nem deveriam) e se tomarmos o período 2015 a 2019, os dados da Saúde são em média 17% maiores do que os dados policiais, como esperado: feridos graves que morrem depois de algumas semanas no hospital nem sempre entram nas estatísticas policiais e as polícias separam os homicídios dolosos dos latrocínios e das mortes em confronto. A saúde utiliza o local de residência da vítima e a polícia o local da ocorrência. Casos duvidosos são tratados também de forma diferente pelas duas fontes. Estas diferenças conceituais explicam por que em média temos 8 mil mortes a mais no DATASUS, nos anos observados.

Não se trata de dizer que uma é superior à outra.São simplesmente duas lógicas diferentes, próprias à cada instituição. Saúde quer saber quantos e quais equipamentos e procedimentos são necessários para lidar com os corpos e a segurança em desvendar motivação e autoria das mortes. São finalidades distintas e as bases de dados procuram responder a perguntas que atendam a estas finalidades.

Essa diferença é comum a muitos países e ao contrário do que imaginam os meios de comunicação, não se trata de uma conspiração nacional das policiais e secretarias de segurança para esconder as estatísticas de mortes. Com efeito, se somarmos aos homicídios dolosos os latrocínios e as mortes em confronto e acrescentarmos um percentual de casos de feridos graves e outro percentual de mortes suspeitas, veremos que os dados das polícias ficam bastante próximos e às vezes são mesmo superiores aos da saúde.

Sabemos assim que as fontes não devem coincidir, em termos de magnitude. Em todo caso, mesmo que diferentes em magnitude, as tendências devem ser congruentes: se os homicídios são grandes num Estado em uma fonte, devem ser também na outra. Se os homicídios estão crescendo em uma fonte, devem crescer também na outra. É possível, portanto comparar as fontes para que se validem mutuamente, partindo do pressuposto de que devem ser, pelo menos, “congruentes”.

Será que esta expectativa de congruência entre as fontes, pelo menos ao nível de estados, é válida no Brasil? Para testar esta conjectura utilizamos os dados de mortes por agressão + mortes por intervenções legais do DATASUS e os homicídios dolosos do SINESP, ambos para o período 2015 a 2019, dado recém publicado pelo Ministério da Saúde.

Na tabela abaixo vemos a razão DATASUS/SINESP, para cada ano e UF. Quando o número é maior que 1 o DATASUS supera em quantidade de mortes o SINESP e o contrário, mais raro, é observado quando a razão é inferior a 1. A magnitude da razão informa de quanto é esta diferença. Assim, por exemplo, podemos dizer que no Amazonas em 2015, o DATASUS teve cerca de 12% mais casos do que o SINESP e assim por diante.



Fontes: DATASUS/SINESP

A tabela mostra que de modo geral, a razão média é mantida na maioria dos Estados e anos, sugerindo que as fontes são razoavelmente congruentes. Tomando os números absolutos, a correlação entre as fontes é superior a r .97 em todos os anos.

Note-se, contudo diversas exceções ao padrão: as diferenças entre as fontes são grandes no Paraná e Roraima, onde parecem estar diminuindo com o tempo. O contrário acontece nos outros estados do Norte (Tocantins, Amazonas, Amapá, Acre e Pará) onde as diferenças parecem estar aumentando nos últimos anos. A situação média do Rio de Janeiro é boa, mas isso ocorre porque a razão oscila bastante: ela é inferir a 1 em 2016 e 2019 mas atinge 1,32 em 2018. As distorções de magnitude entre as fontes ocorrem assim especialmente num grupo de Estados, onde o “erro” (no sentido de diferença de magnitude entre as fontes) é maior. Isto pode se dever a diferentes práticas de coleta e preenchimento dos dados, a erros de inserção, etc.. Recomendaria a ambos os Ministérios uma checagem nos dados, toda vez que estas diferenças fossem superiores a 25%, por exemplo, para cima ou para baixo. O caso do Paraná é o mais gritante, onde as estatísticas de mortes da saúde superam em 70% as mortes computadas pela segurança pública. Como o sistema é menos institucionalizado e checado, meu palpite é que os erros estejam concentrados no SINESP, que recebe o dado das secretarias estaduais de segurança.

No caso das tendências temporais, o diagnóstico é semelhante: na maior parte das vezes há uma congruência de tendências entre as fontes. Para 2019, o coeficiente de correlação entre as fontes foi de r .75.
 
Se tomarmos a variação do total de homicídios de 2019 com relação a 2018, o Datasus aponta uma queda de -21,3% e o Sinesp de -18,8. No ano anterior (2018 sobre 2017) as tendências são também parecidas: -9,2% pelo Datasus e -13,4% pelo Sinesp. Mas as diferenças são maiores nos anos anteriores.

Novamente, em alguns Estados as diferenças de tendências são gritantes. No Paraná, em 2017, o Datasus aponta uma queda de -9,5% nas mortes e o Sinesp um aumento de +43,6%. Uma diferença absoluta de 53% entre as variações. Em Roraima, para 2018, o Datasus aponta um aumento de 73,2% e o Sinesp também um aumento, mas de 107%, uma diferença de 34,3%. No Acre, em 2017, o Datasus mostra um crescimento de 43% nas mortes enquanto o Sinesp aponta uma tendência de queda de 48%, uma diferença de 91%. As células em verde e vermelho na tabela mais à direita permitem visualizar as maiores discrepâncias.
Tanto com relação à magnitude quanto com relação às tendências, notamos que um pequeno grupo de Estados tem contribuído desproporcionalmente com os “erros” (PR, RR, TO, AM, AP, AC, RJ). O normal é que ambas as fontes apontem na mesma direção e que as magnitudes das diferenças sejam “pequenas”. Com efeito, se excluirmos da análise estes estados, tanto magnitudes quanto tendências tornam-se bem mais próximas quando comparamos as fontes.

No Datasus, é preciso ficar atento ao aumento do número de mortes por causa indeterminada pois sabe-se que cerca de 20% delas podem ser reclassificadas como “agressões” (Cerqueira, 2013). Este aumento tem sido apontado como uma das causas da queda dos homicídios em 2019 (-21,3), assim como uma mudança metodológica na data de coleta de dados do Datasus. Todavia, observamos que o Sinesp aponta para uma queda muito similar (-18,8). As explicações são insuficientes para explicar a queda nos últimos dois anos, assim como mudanças demográficas, que costumam a ser lentas e graduais. Conjecturo que a queda deve ter mais relação com a dinâmica das facções criminais estaduais, ciclo econômico e “retorno à média” após o pico de 2017, fruto da recessão de 2014-2016.

Este refinamento de hipóteses é uma das utilidades de termos duas fontes independentes para medir as mortes no país. Se fosse apenas um artifício metodológico (mortes indeterminadas, mudança na coleta), o Sinesp deveria apontar em outra direção, mas ele corrobora a forte queda (alias já interrompida no final de 2019, quando tem início novo período de crescimento dos homicídios, mas este é outro tema).

É preciso aprimorar os sistemas de informações sobre crime e violência e a sociedade tem um papel importante nisso, ao coletar (como fiz por muitos anos e faz o G1, por exemplo) e analisar os dados de forma independente (como no Anuário do FSBP). Cotejando os dados dá pra ver quando informações e interpretações são frágeis ou não fazem sentido. Apontar estas fragilidades não significa diminuir o esforço que está sendo feito pelas equipes de ambos os Ministérios nas últimas décadas, até porque já estive do lado de lá, ajudando a montar estas bases. Ao contrário, é mostrar que a sociedade civil monitora os dados publicados e tem o maior interesse em que sejam cada vez mais fidedignos.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Taxa de esclarecimento de crimes em 2019 e o funil do crime

 Um dos indicadores clássicos de desempenho da polícia judiciária em todo mundo é a taxa de esclarecimento de crimes. O conceito de esclarecimento não é unívoco, mas regra geral entende-se “esclarecimento” como identificação do autor do crime, com elementos suficientemente concretos para se chegar a ele e indiciá-lo criminalmente. Não é preciso que ele seja efetivamente preso para que o caso seja “esclarecido”. Esta é apenas uma modalidade, conhecida por "clearence by arrest". https://ucr.fbi.gov/crime-in-the-u.s/2017/crime-in-the-u.s.-2017/topic-pages/clearances


Além das divergências conceituais, existem também diferentes modos de calculá-lo: quando o autor é preso em flagrante, o crime já está implicitamente esclarecido. Mesmo quando não há o flagrante, é frequente que casos cheguem ao Distrito Policial com a autoria praticamente esclarecida, como no caso dos homicídios domésticos ou cometidos entre pessoas que se conhecem. Nestes casos, inexiste na prática o esforço investigativo em busca da autoria do crime. Devemos incluir ou excluir estes flagrantes ou crimes semi-esclarecidos do indicador de desempenho?


Como quer que seja definido ou operacionalizado, ocorre que no Brasil é raro que as policias estaduais divulguem publicamente este indicador. Algumas o omitem porque são vergonhosos. Outras sequer o calculam internamente, pois nossas polícias não estão habituadas a serem monitoradas através de indicadores e remuneradas pelo atingimento de metas. O fato é que não se sabe ao certo qual é a taxa de esclarecimento de crimes no Brasil, exceto que ela tende a ser baixa e que varia bastante de crime para crime.


Esta percepção de que é importante para as próprias instituições acompanharem seu desempenho no tempo e avaliarem como se posicionam com relação ao benchmark é relativamente recente. O Instituto Sou da Paz realiza um levantamento há três anos sobre a taxa de esclarecimento de homicídios no Brasil. Apenas 11 dos 27 Estados forneceram dados que permitem calcular esta taxa na edição de 2020, para um dos crimes de maior gravidade para a sociedade. A taxa média de esclarecimento de homicídios para este grupo de Estados é de 33%, enquanto na Europa este índice é de aproximadamente 92% e nas Américas 43%. (Os Estados, por ordem de esclarecimento, são DF, MS, SC, RO, SP, ES, MT, PB, AC, PE e RJ). Assim mesmo, os dados foram obtidos através de consulta aos tribunais estaduais e raramente são publicados pelas próprias polícias. http://soudapaz.org/o-que-fazemos/conhecer/pesquisas/politicas-de-seguranca-publica/controle-de-homicidios/?show=documentos#3969.


Estamos falando de um crime onde é comum que vítimas e autores tenham algum tipo de relação, cuja elucidação é cobrada pela opinião pública, privilegiado pelas polícias em todo o mundo como o “filet” da atuação policial e onde frequentemente existe um departamento especializado e mais recursos para a investigação. Assim mesmo, o esclarecimento dos homicídios no Brasil chega apenas a 1/3 dos casos. A taxa de esclarecimento tende a ser maior nos crime graves, como chacinas, sequestros, latrocínios, roubos a banco e menor nos crimes patrimoniais de menor valor e onde não houve contato entre autor e vítima. Assim, a taxa média de esclarecimento de crimes é provavelmente menor do que a encontrada para os homicídios.


Mas de quanto será esta taxa?


Já mencionamos aqui a Pesquisa Perfil das Polícias, organizada pelo Ministério da Justiça desde 2002 e que coleta centenas de informações anuais para a PM, PC e Bombeiros. Analisamos em outro artigo os níveis hierárquicos da PM com base na pesquisa, mostrando algumas inconsistências nas quantidades de efetivo em cada patente. Nas últimas edições da Pesquisa Perfil das Polícias, diversas instituições passaram a responder ao questionário do MJ, que pergunta para as Polícias Civis, entre outros dados, o total de BOs registrados no ano, total de Inquéritos instaurados por portaria, por flagrante e inquéritos remetidos com indiciamento. Tivemos que estimar alguns valores para o Acre, São Paulo e Maranhão, mas feitas estas estimativas e partindo do pressuposto de que o indiciamento significa que a autoria foi razoavelmente estabelecida, é possível dar alguma dimensão ao problema.


Como se vê na última coluna da tabela, a taxa de esclarecimento média de todos os crimes ficou em 2019 em 6,29%, variando entre 1,15% e 11,95%. É claro que o indiciamento pode ter relação com os casos ocorridos em anos anteriores, mas de modo geral supomos que na maioria dos casos os inquéritos relatados e remetidos tem relação com casos ocorridos no mesmo ano e que os estoque anuais são razoavelmente constantes.


Ao todo, tivemos em 2019, algo em torno de 14 milhões e 700 mil ocorrências policiais. A se fiar nas pesquisas de vitimização, os crimes registrados refletem em média apenas 1/3 dos crimes ocorridos, de modo que podemos considerar para efeitos ilustrativos que 44 milhões de crimes são uma cifra mais próxima da realidade. Isto é quase um crime para cada cinco pessoas num ano.





Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

Fonte: Pesquisa Perfil das Polícias, 2019 – SENASP, MJ


*AC – usamos o número de flagrantes declarado na pesquisa de 2017 ** PR, MS e AP – estimamos o número de Inquéritos com indiciamento a partir da média nacional, equivalente a 63% da soma dos Inquéritos relatados por portaria + flagrantes *** SP – na ausência dos Inquéritos em Flagrante usamos o número de prisões em flagrante de 2019 para estima-lo, supondo que toda prisão em flagrante gera um inquérito **** MA – estimamos os Inquéritos por portaria e em Flagrante a partir das porcentagens médias nacionais.




Destes 14,7 milhões de registros, apenas 929 mil converteram-se em indiciamentos pela PC (6,29%). E como discutido, isto não significa que todos os autores identificados foram presos, seja porque não foram capturados ou porque o tipo de delito e de réu não implicava em condenação ao regime fechado. Destes indiciados, “apenas” cerca de 28 mil entram para o sistema prisional anualmente, que conta com 812 mil condenados em 2020. Trata-se de um funil punitivo gigantesco (chamamos isso de taxa de atrito), que tem na boca 44 milhões de crimes e na ponta 28 mil presos por ano, usando as estimativas para 2019 (taxa de atrito de 0,06%). Este é um dos motivos pelos quais não podemos contar apenas com o sistema de justiça criminal para conter a criminalidade, uma vez que a expectativa de punição no Brasil é baixa. Faz sentido pensar exclusivamente em aumentar penas, como fazem nossos congressistas, quando a expectativa de punição é tão baixa? Qual o efeito intimidação do aumento das penas com uma taxa de atrito de 0.06% ? Os cálculos são apenas aproximados, mas servem para dar uma ordem de grandeza ao problema: é muita gente sendo presa, mas assim mesmo o percentual é ínfimo diante da quantidade de crimes perpetrados.


Voltando à tabela e às taxas de esclarecimento por Estado, não parece existir um padrão geográfico nas taxas de esclarecimento. Vemos estados do Norte no topo (AC, AM, AP) e na base da lista (TO, RR). Do Sul, PR aparece no topo e SC na base. Chama a atenção talvez a presença de três estados do Centro Oeste no topo (GO, MT e MS) e a relativa ausência de UFs do Nordeste, com exceção do PE. Tampouco parece haver uma relação com a quantidade absoluta de Boletins de Ocorrência, pois encontramos estados com poucos registros nos dois extremos. DF, que tem a polícia mais bem paga do país, tem taxa de esclarecimento geral abaixo da média. A pesquisa Perfil da Polícia permite calcular as taxas de esclarecimento específicas para alguns tipos de crime e em algum momento, com tempo e recursos, pretendo voltar ao tema. Trata-se de uma fonte subutilizada pelos pesquisadores brasileiros e pode render muitas análises frutíferas.


Não é caso de nos estendermos aqui nos fatores que explicam a maior ou menor taxa de esclarecimento em cada polícia. Até porque, como discutido, é preciso chegar a uma definição consensual do que seja esclarecimento e calculá-lo de modo uniforme. As taxas de notificação de crimes por Estado também precisariam ser conhecidas bem como o perfil de crimes em cada local, que afeta esta taxa média. O ponto é que é preciso com urgência produzir estes indicadores, monitorar, incentivar e premiar as unidades que conseguem um bom desempenho, ajudando com recursos humanos e materiais aquelas em dificuldade. A ideia não é punir, mas aumentar a eficiência da investigação.


O baixo índice de esclarecimento de crimes é um entre os muitos elementos que ajudam a entender os níveis de violência e criminalidade no país. Melhorar a taxa de esclarecimento não é a panaceia para todos os males, mas é um dos muitos elementos que devem ser aperfeiçoados. Os dados sugerem que para ser preso no Brasil é preciso algum esforço, ser muito burro ou muito azarado. Impunidade ainda é a regra.


sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Impacto da retomada das atividades sociais nas dinâmicas criminais

Diversos indicadores sugerem que a recuperação econômica pós-pandemia (ou pós primeira onda da pandemia, uma vez que ela não só não acabou como se agravou) vem seguindo um padrão em forma de “V”. Queda iniciando abruptamente em março e aprofundando-se em abril e maio, seguida de rápida recuperação nos meses subsequentes. Alguns indicadores econômicos retornaram rapidamente aos patamares anteriores e outros ainda continuam em níveis inferiores aos observados em março de 2019.

Com os indicadores criminais observamos um processo semelhante. Tanto as ações criminais quanto as econômicas são sociais por natureza e ambas são afetadas pelo grau de interação social entre os membros da comunidade. Quanto maiores as interações sociais, maiores também as trocas nos mercados legais e ilegais e maiores as oportunidades para o cometimento de crimes. A criminalidade, além disso, tem a particularidade de ser afetada também, indiretamente, pelo nível das atividades econômicas.

Crimes definem atos bastante diversos em suas naturezas, modo de atuação e motivações. Assim como as atividades econômicas, alguns foram pouco afetados durante a pandemia, outros seguiram o padrão em “V” enquanto outros ainda se mantem em patamares baixos (“L”), em relação ao contexto pré-epidemia.
É interessante observar estas distintas trajetórias dos indicadores durante este período de mudanças bruscas, pois eles ajudam a entender como as dinâmicas sociais influenciam os diferentes tipos de crime.




Crimes “organizados” tendem a ser menos afetados pelas interações sociais: bancos permaneceram abertos e diversos tipos de cargas continuaram a circular durante o isolamento social, de modo que não houve redução drástica dos alvos disponíveis.

Pelos dados do SINESP, os roubos às instituições financeiras mantiveram-se nos mesmos patamares de 2019, ao redor de 40 casos por mês. Os roubos de carga caem em 2020 com relação a 2019. Mas não se notam nem uma queda brusca entre fevereiro e abril de 2020, típica dos demais crimes, nem uma retomada posterior. Na verdade, parece ter havido aqui uma continuidade da tendência de queda dos anos anteriores, iniciada em 2017. Não é possível dizer que a epidemia foi a responsável pela queda observada nos roubos de carga entre 2020 e 2019.

O mesmo não ocorreu, em contrapartida, com o tráfico de drogas, que é fortemente afetado pela variação na demanda. Medo e redução de renda podem ter afastado temporariamente consumidores eventuais dos pontos de venda. Supondo que as apreensões de droga sejam um indicador do volume de drogas em circulação, dados do ISP do RJ mostram claramente o padrão em “V” com queda súbita das apreensões em março de 2020 e a retomada aos níveis anteriores, a partir de agosto. Em São Paulo, as ocorrências de porte e tráfico caem entre março e abril e rapidamente retomam ao nível anterior.

Estas mudanças temporárias na renda do tráfico - além de outras como redução da vigilância natural, do policiamento e disputas com facções rivais – ajudam a entender em parte a dinâmica dos homicídios dolosos, muitos dos quais tem relação com o universo criminal: como já é sabido, não apenas os homicídios não caíram como tiveram mesmo um ligeiro crescimento durante a epidemia, apesar da redução drástica de pessoas circulando pelas ruas. Esta tendência de crescimento teve início antes da epidemia, já no segundo semestre de 2019.

Pelos dados do SINESP, em fevereiro de 2020, pouco antes do início da epidemia, tivemos nacionalmente 3654 homicídios (mais do que os 2967 observados em fevereiro de 2019). De março a julho de 2020, em todos os meses tivemos mais homicídios do que em 2019 e apenas em agosto eles parecem arrefecer e voltar ao patamar anterior. Neste período tivemos uma continuidade da tendência anterior de aumento e nem mesmo a epidemia, que tirou nos momentos mais intensos metade da população das ruas, foi capaz de derrubar os homicídios. Estudos mais robustos sugerem que a epidemia teve um impacto significativo no aumento dos homicídios, mesmo levando em conta as tendências da série histórica (Justos, Kahn e Conti, em estudo para o BID, não publicado).

Isto nos induz a crer que os homicídios neste período decorreram especialmente da dinâmica criminal e menos de dinâmica interpessoal. Evidência adicional é que se mantiveram em alta, não obstante a queda na apreensão de armas, que é um indicador indireto do número de armas em circulação. Normalmente estes indicadores andam colados, mas neste período observamos trajetórias diferentes. Deve se levar em conta também a probabilidade de aumento dos homicídios de natureza doméstica, como os feminicídios, que podem ter aumentado em decorrência da convivência social forçada e estresse resultante do isolamento prolongado e perda de empregos.

É interessante comparar os homicídios dolosos com a dinâmica das tentativas de homicídio, que se assemelham em geral aos homicídios de “fraca intencionalidade” e que estão mais vinculados às dinâmicas interpessoais: consumo de álcool, uso de instrumentos menos letais, atingindo órgãos menos letais do corpo, maior porcentagem de vítimas do sexo feminino, não planejados, etc. (em contraste, os homicídios com “forte intencionalidade” são caracterizados por uso predominante de arma de fogo, disparos múltiplos, atingindo partes letais do corpo, planejamento antecipado, etc.). As tentativas de homicídio, diferente dos homicídios, caem de 2979 casos em fevereiro para 2604 em abril, voltando a crescer apenas em agosto (2571 casos),quando retoma os níveis pré-pandemia. Seguiram assim o padrão em “V”, diferente dos homicídios.

Sendo corretas estas observações, podemos conjecturar que as tentativas de homicídio foram afetadas diferentemente dos homicídios dolosos com as mudanças de rotina impostas pelo isolamento social. Como no caso do roubo a banco e roubo de carga, parte dos homicídios dolosos seguiu uma dinâmica criminal própria, independente das interações sociais cotidianas. Saliente-se que nos dois indicadores o problema de subnotificação é praticamente inexistente, ao contrário de outros crimes como lesões corporais, estupros e furtos.

Os estupros parecem ter seguido também o padrão em “V”, com quedas e recuperações rápidas aos patamares anteriores. Segundo os dados do SINESP, depois de caírem de 3.761 em fevereiro de 2020 para 2.632 em abril, os estupros voltam ao patamar de 3.997 em agosto, pouco abaixo dos anos anteriores. Este padrão me parece de certo modo pouco compreensível, uma vez que a maioria dos estupros é cometida por pessoas conhecidas das vítimas e em ambientes domésticos. O fato das pessoas estarem convivendo forçadamente próximas, isoladas em suas casas, deveria ter o efeito contrário, de “V” invertido. O esperado seriam mais estupros e não menos. O mesmo, alias, vale para os indicadores de lesão corporal dolosa, que apresentam o mesmo perfil dos crimes sexuais. Segundo o ISP, as lesões corporais dolosas despencam no Rio de 5.408 casos em fevereiro para 2.429 em maio e a partir daí, voltam praticamente ao patamar anterior em setembro (ligeiramente abaixo). O mesmo movimento em São Paulo, onde caem de 10.510 em fevereiro para 7.132 em abril de 2020 e voltam a crescer a partir de setembro. Aqui também o esperado seria um padrão inverso e podemos estar diante de um problema de notificação.

Uma explicação plausível é o aumento da subnotificação durante a epidemia, seja por receio da contaminação, vigilância próxima do autor ou diminuição da identificação externa por profissionais de saúde e educação, que frequentemente identificam e reportam os casos de violência física ou sexual. Em outras palavras, pode ter ocorrido redução do registro de casos e não do fenômeno. Esta hipótese só pode ser confirmada futuramente, através de pesquisas de vitimização que investiguem o fenômeno neste período.

Roubo e furto de veículos, diferentemente, não sofrem praticamente com o problema da notificação. Ambos apresentam um curioso padrão em “L”, isto é, mantiveram-se em patamares baixos após a queda inicial, mesmo com a retomada progressiva das atividades econômicas e sociais. Segundo o SINESP, os furtos de veículos estavam em 18.105 casos em fevereiro, caíram abruptamente para 12.114 em abril e mantem-se em 12898 em agosto. Os roubos de veículos, por sua vez, eram 14.667 em fevereiro de 2020, caíram para 12.130 em abril e caíram ainda mais para 9.193 agora em agosto. Por algum motivo, a retomada da economia e da circulação de veículos, confirmada pelos indicadores de trânsito, não impactou na retomada dos furtos e roubos de veículos. Há diversas hipóteses: nem todas as atividades retornaram, como as escolares. Universidades costumam ser hot spots de roubo de veículos. É possível que o mercado de peças usadas tenha diminuído, com a paralização dos meses anteriores? Migração para novos alvos? Diminuição das fraudes contra as seguradoras?

Como já discutimos anteriormente, crimes são fenômenos diversificados em termos de natureza, motivações e suas tendências são afetadas de forma desigual pelos fatores sociais. A resultante, em cada caso, virá do confronto entre variáveis “de proteção” e variáveis “de risco”.

Do lado da proteção temos a intensificação do trabalho e do estudo em casa, que reduzira permanentemente o fluxo de pessoas nas ruas, diminuindo as oportunidades criminais. Temos também os efeitos positivos dos programas sociais na manutenção da renda dos setores mais pobres da população, diminuindo a oferta de ofensores. Por outro lado, os aumentos do desemprego e da evasão escolar, pelo que se conhece de pesquisas sobre outros períodos, tenderão a aumentar o risco de entrada no mundo do crime de parcelas da população que tiveram as opções no mercado legal diminuídas. A resultante destas forças sobre cada tipo de crime é ainda desconhecida.

O que já se observa e pode especular com algum grau de confiança é que veremos uma “migração” de alvos, locais e modus operandi. As pessoas ficarão mais em casa, aumentando a vigilância natural e irão menos aos bancos. O crescimento dos serviços de entrega domiciliar representam novas oportunidades para golpes e roubos. O aumento do tempo na internet e a digitalização dos serviços implicarão em novos golpes e crimes cibernéticos. A estrutura da polícia precisará se adaptar a estas novas dinâmicas e isso tende a ser feito lentamente. Uma destas mudanças certamente deverá ser a atenção aos crimes cibernéticos. Outra deve ser na forma de identificação dos crimes que ocorrem entre quatro paredes e não chegam ao conhecimento das autoridades. E estas mudanças deverão ser feitas num contexto de contenção dos orçamentos, afetados pela redução da arrecadação e aumento dos gastos sociais e em saúde resultantes da epidemia. Tudo isso sob a égide de um governo federal inoperante, que agrava o quadro geral de violência com uma política irresponsável de liberação de armas.

Com ou sem epidemia, o melhor, por enquanto, é ficar em casa...Aos que comemoraram antecipadamente a "queda da criminalidade" em 2020, lembro que não se trataou de uma queda sustentada, fruto de uma política planejada de segurança e que este "V" tem mais conotação de Vergonha que de Vitória.

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