quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Explosão da criminalidade ou ano base atípico?

 

Explosão da criminalidade ou ano base atípico?

 

Ouvi recentemente um conceituado comentarista no rádio alarmado com as taxas de crescimento criminal em São Paulo em outubro, comparando com o ano anterior. Especialista em seguros, o comentarista alertava que se a Secretaria de Segurança Pública não fizesse nada, as seguradoras seriam obrigadas a aumentar o valor dos seguros de veículos, diante da explosão da criminalidade.

Não tenho mandato para defender a SSP – embora ainda faça parte do Conselho Estadual de Segurança – mas o alarde é parcialmente injusto. Tecnicamente, a variação explosiva dos índices de 2002 para 2021 pode ser constatada e não há erro formal no cálculo do comentarista.

Mas os manuais de estatísticas nos ensinam -  inclusive o que publiquei quando coordenador de análise da secretaria – que ao comparar períodos não devemos usar como período base um momento que seja atípico, tanto para cima quando para baixo.

E, como todos sabemos, o ano de 2020 esteve longe de ser típico, pelo menos desde os meados de fevereiro. A epidemia provocou mudanças bruscas e repentinas na rotina e diversos fenômenos sociais e econômicos foram fortemente afetados por essa mudança de rotina. Como eu e dezenas de outros tivemos a oportunidade de mostrar, a epidemia produziu alterações significativas em boa parte dos crimes, em geral, atuando para reduzi-los drasticamente. Crimes são “atividades de rotina“ e estão altamente correlacionados às oportunidades, como a disponibilidade de alvos.  Antes mesmos das avaliações de impacto, já antecipávamos que este enorme experimento natural fosse produzir grandes impactos nas séries criminais. (assim como já sabemos que a evasão escolar, desemprego e aumento de armas em circulação cobrarão seu preço no futuro).

Igualmente, antecipávamos que mais cedo ou mais tarde, parte da tendência anterior retornaria à média, uma vez que a rotina se reestabelecesse. Muitos crimes, assim, se movimentariam na forma de “V” ou “U’, conforme o retorno fosse mais rápido ou vagaroso. Alguns ainda apresentam forma de “L” e não retornaram ao patamar anterior.  A sucessão de ondas e de aberturas e fechamentos da economia e das atividades sociais poderia provocar movimentos em “W” e assim por diante.  Qualquer que fosse o movimento, ficou claro que as séries históricas de crimes ficariam bastante prejudicadas para fins de análise. Para garantir alguma comparabilidade, sugeri que as taxas fossem calculadas a partir da população em circulação nas ruas e não com base na população residente: calculadas desta forma, algumas taxas que pareciam ter baixado na verdade tiveram risco relativo aumentado.

O fato é que os analistas precisarão decidir daqui por diante – e não apenas os analistas criminais, mas também as demais áreas mais afetadas pelo COVID – como farão para garantir um mínimo de comparabilidade nas séries históricas. A alternativa mais simples talvez seja apenas ignorar os dados coletados durante a epidemia (quando começa e quando termina é algo que precisaria ser analisado localmente). Em suma, adotar como período base o ano de 2019.

No exemplo abaixo tomamos as estatísticas criminais de São Paulo, de janeiro a outubro de cada ano, e analisamos as variações em 2021, primeiro tomando o ano de 2020 como base e depois adotando o ano de 2019 como base. As tendências, como esperado, são bastante distintas em alguns casos.

 

Comparando como fez o comentarista os dados de 2021 com 2020, vemos um aumento de 9,4% no total de crimes, depois de uma queda abrupta de 21,7% no ano anterior. Furtos outros e furto de veículos – que foram bastante afetados durante a epidemia – mostram crescimento entre 17 e 20% neste ano. Roubo de veículos crescem 3,1% e roubos outros 2,7%. Em queda digna de nota em 2021, apenas os homicídios dolosos (-3,2%) e os latrocínios (-9,5%). Curiosamente, os dois crimes que tiveram um ligeiro crescimento durante a pandemia.

O que acontece quando retiramos o ano de 2020 e utilizamos 2019 como base? Como esperado, as tendências são bastante diferentes: ao invés de subir, observa-se uma queda geral no total de crimes (-14,4%). Furtos e furtos de veículos têm quedas de 14% e os roubos de veículos – preocupação do nosso comentarista – caem nada menos do que 31%. (sim, usem este dado se a seguradora quiser aumentar o valor do seu seguro).

Os homicídios apresentam um leve aumento da ordem de 2,5% e os latrocínios uma que da -6,6%). Ao contrário do quadro anterior, todos os crimes tem queda, com a exceção de dois.

Como se observa, há uma enorme diferença na interpretação das tendências criminas, conforme adotemos 2019 ou 2020 como ano base de comparação para as variações. A comparação com 2020 é formalmente correta, mas provavelmente injusta. Creio que a melhor recomendação prática seja calcular as variações das duas maneiras e incluir uma grande nota de rodapé justificando e explicando a excepcionalidade do período da pandemia. De todo modo, é importante fornecer o quadro completo para que os agentes possam tirar suas próprias conclusões sobre a situação. E isto não apenas com as estatísticas de criminalidade, mas com as econômicas, sociais, sanitárias e todas que tendem a flutuar no curto prazo e foram afetadas pelas mudanças na rotina.

Omitir a epidemia pode induzir a erro. Pelo menos nos meus modelos, 2020 e o período mais sério da epidemia sempre serão considerados “outliers” ou pontos fora da curva que precisarão ser modelados. Se isso não foi um “outlier”, não sei o que seria, talvez um cataclismo nuclear.  Caso contrário, nossas predições (além do bolso) serão as grandes prejudicadas.

 

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