Tulio Kahn
O crime organizado já não é mais
uma ameaça difusa no Brasil: é uma realidade concreta que ocupa territórios,
controla economias ilícitas, infiltra-se no Estado e há anos comanda crimes de
dentro dos presídios. Facções como o PCC, o Comando Vermelho e dezenas de
grupos regionais movimentam bilhões por ano, corrompem agentes públicos e desafiam
a autoridade do Estado. O recente assassinato do ex-delegado Rui Ferraz Fontes,
com quem convivi na SSP/SP, revela a fragilidade da nossa estrutura de combate
ao crime organizado.
O modelo atual é insuficiente. A
Polícia Federal cumpre um papel essencial, mas está sobrecarregada. A PEC da
Segurança em discussão no Congresso pode piorar ainda mais esta situação. A PF
precisa cuidar de imigração, emissão de passaportes, crimes ambientais, fraudes
cibernéticas, tráfico de drogas, corrupção e uma infinidade de outras
atribuições. Falta foco exclusivo nas organizações criminosas. É generalista e
padece do mesmo problema que o Ministério da Justiça. A Agência Brasileira de
Inteligência (ABIN) coleta informações, mas não tem poder investigativo. A
Secretaria Nacional de Políticas Penais administra os presídios federais, mas
não consegue evitar que líderes sigam mandando de dentro das celas. A SENAD
cuida da gestão de bens apreendidos, mas sem ligação direta com operações. A
Receita Federal, o COAF e o Banco Central sabem onde circula o dinheiro sujo,
mas não atuam de forma integrada com as forças policiais. Faltam bancos de
dados sobre organizações, membros, faturamento, modus operandi, território de
atuação e outras informações necessárias para planejar o combate ao crime
organizado.
O crime, em contrapartida, opera
em rede. Conecta doleiros, empresários, traficantes e criminosos de colarinho
branco em uma teia que cruza fronteiras. O Estado brasileiro, fragmentado,
reage sempre um passo atrás. Recentemente o Ministério da Justiça aventou a
possibilidade de criar uma agência nacional anti máfia mas a iniciativa,
apoiada por muitos especialistas, não seguiu em frente.
Outros países enfrentaram dilemas
semelhantes e decidiram criar agências nacionais especializadas. No Reino
Unido, a National Crime Agency (NCA) funciona como um “FBI britânico”, reunindo
policiais e especialistas civis em tecnologia e finanças. Na Itália, a
Direzione Investigativa Antimafia (DIA), com pouco mais de 1.300 agentes,
mostrou que não é preciso uma força gigante, mas sim foco e poderes claros. Sua
arma mais eficaz foi o confisco patrimonial, retirando das máfias os bens e o
prestígio que sustentavam sua influência. Na Alemanha, o Bundeskriminalamt
investe em inteligência e cooperação internacional. A Austrália criou task
forces permanentes com policiais, militares e auditores. Há lições claras:
agências especializadas devem ser autônomas, ter foco exclusivo no crime
organizado, integrar diferentes órgãos e sufocar financeiramente as facções. A
operação carbono oculto seguiu em parte este modelo de atuação
interinstitucional, mas como ação pontual e voluntarista, não by design, como
deveria ser.
É nesse espírito que defendemos a
proposta de criação de uma Agência Nacional de Combate ao Crime Organizado
(ANCCO), com as seguintes linhas gerais. Seria uma autarquia de regime
especial, vinculada ao Ministério da Justiça (melhor ainda se dentro de um
ministério exclusivo para segurança), mas dotada de autonomia administrativa,
orçamentária e técnica. Sua missão seria coordenar e centralizar o combate às
organizações criminosas, com foco em inteligência, finanças e integração
institucional.
A Agência teria que contar com um
número suficiente de servidores próprios e emprestados para formar equipes de
investigadores, analistas técnicos e gestores administrativos. Estamos falando
em alguns milhares de servidores e não de meia dúzia de gatos pingados que existem
hoje em órgão importantíssimos, mas subdimensionado, como o COAF. Sua lógica
não é ser mais uma polícia ostensiva, mas sim um centro estratégico capaz de
acionar, quando necessário, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a
Força Nacional e as Polícias estaduais.
A agência reuniria em sua
estrutura departamentos de Investigação e Operações Especiais, Inteligência e
Tecnologia, Recuperação de Ativos e Gestão Patrimonial, Inteligência Prisional,
Cooperação Internacional, Prevenção e Prospectiva Criminal, além da área de
Administração e Finanças. ABIN, SENAPPEN, SENAD, Receita Federal, COAF, Banco
Central, CGU e Ministério Público Federal teriam assento em um Conselho Inter forças
e Interagências, garantindo integração e transparência.
Seus poderes seriam específicos e
controlados: interceptar comunicações, infiltrar agentes, conduzir operações
controladas, acessar dados bancários e fiscais, rastrear criptomoedas e propor
confisco alargado de bens. Sempre mediante ordem judicial, em respeito às
garantias constitucionais.
Para evitar abusos, a Agência
teria mecanismos de controle democrático. Relatórios anuais públicos de resultados,
relatórios sigilosos a Comissão de Segurança do Congresso, auditoria do TCU e
da CGU, supervisão do Ministério Público Federal e uma Ouvidoria independente
para receber denúncias.
A inovação é reunir em uma única
agência o que hoje está disperso, seguindo as boas práticas internacionais. A
inteligência estratégica da ABIN, o monitoramento prisional da SENAPPEN, a
gestão patrimonial da SENAD, o braço financeiro da Receita, COAF e Banco
Central, a força policial da PF, PRF e FNSP, e o controle da CGU, MPF e do TCU.
O Brasil precisa parar de
combater o crime organizado com um mosaico de instituições que não se falam.
Precisamos de um Estado em rede para enfrentar o crime em rede. A ANCCO,
enxuta, eficiente e parcialmente blindada contra pressões políticas, pode ser o
primeiro passo para reverter o atual jogo em que o crime está sempre à frente. O
crime organizado já mostrou sua força. Passou a hora de o Estado brasileiro
mostrar a sua.