quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Fintecs: Brechas, Regulação e o Desafio do Combate ao Crime Organizado


Nos últimos anos, as fintechs se consolidaram como uma das maiores inovações no setor financeiro brasileiro. Plataformas digitais de serviços bancários e de crédito ampliaram o acesso da população ao sistema financeiro, reduziram custos de transação e democratizaram produtos antes restritos aos grandes bancos. Essa revolução trouxe inegáveis benefícios à inclusão financeira, mas também abriu novas vulnerabilidades que vêm sendo exploradas por organizações criminosas. No centro dessa discussão está a necessidade de compatibilizar inovação com segurança regulatória, de modo a impedir que a agilidade das fintechs se torne um instrumento para o crime organizado.

O Brasil dispõe de uma das legislações mais avançadas do mundo em prevenção e combate à lavagem de dinheiro. A Lei nº 9.613, de 1998, inaugurou o marco normativo, criando mecanismos de identificação de clientes, manutenção de registros, comunicação de operações suspeitas e estabelecendo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) como órgão central de inteligência financeira. Desde então, uma série de normas complementares foram editadas pelo Banco Central e pelo Conselho Monetário Nacional, como a Resolução CMN nº 4.595/2017 e a Circular Bacen nº 3.978/2020, que detalham os procedimentos obrigatórios de compliance, auditoria e reporte de operações atípicas.

Os bancos tradicionais, submetidos a esse arcabouço regulatório há décadas, desenvolveram estruturas robustas de prevenção. Departamentos inteiros de compliance monitoram diariamente milhões de transações, apoiados por sistemas automatizados que cruzam informações de clientes com bases de dados públicas e privadas. Cada operação é analisada à luz do perfil econômico declarado: depósitos elevados feitos por um estudante sem renda formal, ou remessas sucessivas para países considerados de alto risco, acendem alertas automáticos. As instituições são obrigadas a manter registros por pelo menos cinco anos, comunicar ao COAF operações acima de determinados limites em espécie, além de reportar movimentações consideradas suspeitas, ainda que inferiores a esses valores. Auditorias periódicas do Banco Central e a possibilidade de multas milionárias reforçam o compromisso de que os bancos não sejam usados como canais de ocultação de recursos ilícitos.

Nas fintechs, entretanto, a realidade ainda é diferente. Apesar de também estarem formalmente submetidas à Lei nº 9.613/1998 e às normas do Banco Central, muitas dessas empresas cresceram em velocidade superior à sua capacidade de estruturar mecanismos sofisticados de prevenção. Seu modelo de negócios, baseado em simplicidade de cadastro, baixo custo e facilidade de uso, reduz a fricção para novos clientes, mas também fragiliza os procedimentos de “conheça seu cliente” (KYC). Em muitos casos, bastam documentos básicos para abertura de conta e a checagem é menos rigorosa do que a feita por bancos. Além disso, nem todas dispõem de sistemas avançados de monitoramento automatizado, e a integração com o COAF é irregular e pouco padronizada. O resultado é que criminosos encontram nas fintechs um terreno fértil para movimentar valores de forma pulverizada, aproveitando-se de lacunas tecnológicas e da ausência de fiscalização sistemática.

As operações atípicas que precisam ser detectadas por bancos e fintechs incluem um leque amplo de comportamentos suspeitos. Entre os exemplos mais recorrentes estão o fracionamento de depósitos ou transferências, quando valores elevados são divididos em múltiplas operações menores para escapar de limites de reporte automático. Outra prática é a movimentação incompatível com a renda declarada, como a de um beneficiário de programas sociais que, de repente, passa a realizar transações de centenas de milhares de reais. Também chamam atenção as chamadas contas de “laranjas”, em nome de idosos, desempregados ou pessoas sem perfil econômico, mas que movimentam grandes quantias. Transações internacionais, sobretudo com países considerados paraísos fiscais ou com baixa cooperação internacional, representam outro foco de risco. Há ainda operações circulares, em que valores transitam rapidamente entre várias contas antes de retornar à origem, sem justificativa comercial aparente. E, mais recentemente, a aquisição recorrente de criptoativos sem lastro econômico tornou-se uma forma comum de transformar dinheiro em ativo digital de difícil rastreamento.

Enquanto os bancos já desenvolveram protocolos e tecnologia capazes de identificar a maioria desses padrões, as fintechs ainda caminham para atingir esse nível de sofisticação. Algumas grandes empresas do setor já avançam na implementação de inteligência artificial para detectar padrões atípicos, mas a adoção não é uniforme. Pequenas fintechs, em particular, podem se tornar canais desprotegidos diante de organizações criminosas que atuam de forma cada vez mais globalizada e digitalizada.

Essa vulnerabilidade não é apenas um problema setorial, mas uma ameaça à integridade do sistema financeiro brasileiro. O uso das fintechs pelo crime organizado não só dificulta investigações, como também compromete a credibilidade do ecossistema de inovação. O risco é que, sem uma resposta adequada, o mesmo instrumento que promove inclusão financeira acabe servindo de ferramenta para o fortalecimento de organizações criminosas que exploram lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, contrabando e corrupção.

Por isso, cresce a percepção entre especialistas de que seria necessário avançar em uma regulação mais específica para as fintechs, capaz de equilibrar inovação com controle. Tal regulação deveria aproximar as exigências dessas empresas às já impostas aos bancos tradicionais, garantindo padronização mínima em KYC, monitoramento transacional e reporte automático ao COAF. Além disso, é crucial criar incentivos para a adoção de tecnologias de detecção de anomalias e mecanismos de auditoria independente, que reforcem a transparência e a responsabilidade do setor.

A experiência internacional demonstra que a prevenção à lavagem de dinheiro precisa ser constantemente atualizada. Grupos criminosos são criativos e rapidamente exploram lacunas em novos mercados financeiros, como já ocorreu com moedas virtuais e plataformas digitais em outras jurisdições. No Brasil, não será diferente: quanto mais rápido crescerem as fintechs, mais urgente será a criação de um marco regulatório específico que proteja o sistema financeiro sem inibir a inovação.

Em suma, os bancos tradicionais já operam com padrões elevados de compliance, fruto de décadas de regulação e experiência, enquanto as fintechs ainda apresentam fragilidades que podem ser exploradas pelo crime organizado. As operações suspeitas já são conhecidas e bem mapeadas, mas é necessário garantir que todas as instituições financeiras digitais tenham meios efetivos para detectá-las e reportá-las. O futuro do setor dependerá da capacidade de alinhar modernidade e segurança, evitando que a inovação seja sequestrada pela criminalidade organizada. O desafio está posto: reforçar os mecanismos de controle no ambiente digital é indispensável para blindar o sistema financeiro brasileiro e assegurar que as fintechs cumpram seu papel de inclusão sem se converter em um elo frágil da luta contra a lavagem de dinheiro.


terça-feira, 23 de setembro de 2025

Uma nova agência para reagir ao crime organizado

 


Tulio Kahn

O crime organizado já não é mais uma ameaça difusa no Brasil: é uma realidade concreta que ocupa territórios, controla economias ilícitas, infiltra-se no Estado e há anos comanda crimes de dentro dos presídios. Facções como o PCC, o Comando Vermelho e dezenas de grupos regionais movimentam bilhões por ano, corrompem agentes públicos e desafiam a autoridade do Estado. O recente assassinato do ex-delegado Rui Ferraz Fontes, com quem convivi na SSP/SP, revela a fragilidade da nossa estrutura de combate ao crime organizado.

O modelo atual é insuficiente. A Polícia Federal cumpre um papel essencial, mas está sobrecarregada. A PEC da Segurança em discussão no Congresso pode piorar ainda mais esta situação. A PF precisa cuidar de imigração, emissão de passaportes, crimes ambientais, fraudes cibernéticas, tráfico de drogas, corrupção e uma infinidade de outras atribuições. Falta foco exclusivo nas organizações criminosas. É generalista e padece do mesmo problema que o Ministério da Justiça. A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) coleta informações, mas não tem poder investigativo. A Secretaria Nacional de Políticas Penais administra os presídios federais, mas não consegue evitar que líderes sigam mandando de dentro das celas. A SENAD cuida da gestão de bens apreendidos, mas sem ligação direta com operações. A Receita Federal, o COAF e o Banco Central sabem onde circula o dinheiro sujo, mas não atuam de forma integrada com as forças policiais. Faltam bancos de dados sobre organizações, membros, faturamento, modus operandi, território de atuação e outras informações necessárias para planejar o combate ao crime organizado.

O crime, em contrapartida, opera em rede. Conecta doleiros, empresários, traficantes e criminosos de colarinho branco em uma teia que cruza fronteiras. O Estado brasileiro, fragmentado, reage sempre um passo atrás. Recentemente o Ministério da Justiça aventou a possibilidade de criar uma agência nacional anti máfia mas a iniciativa, apoiada por muitos especialistas, não seguiu em frente.

Outros países enfrentaram dilemas semelhantes e decidiram criar agências nacionais especializadas. No Reino Unido, a National Crime Agency (NCA) funciona como um “FBI britânico”, reunindo policiais e especialistas civis em tecnologia e finanças. Na Itália, a Direzione Investigativa Antimafia (DIA), com pouco mais de 1.300 agentes, mostrou que não é preciso uma força gigante, mas sim foco e poderes claros. Sua arma mais eficaz foi o confisco patrimonial, retirando das máfias os bens e o prestígio que sustentavam sua influência. Na Alemanha, o Bundeskriminalamt investe em inteligência e cooperação internacional. A Austrália criou task forces permanentes com policiais, militares e auditores. Há lições claras: agências especializadas devem ser autônomas, ter foco exclusivo no crime organizado, integrar diferentes órgãos e sufocar financeiramente as facções. A operação carbono oculto seguiu em parte este modelo de atuação interinstitucional, mas como ação pontual e voluntarista, não by design, como deveria ser.

É nesse espírito que defendemos a proposta de criação de uma Agência Nacional de Combate ao Crime Organizado (ANCCO), com as seguintes linhas gerais. Seria uma autarquia de regime especial, vinculada ao Ministério da Justiça (melhor ainda se dentro de um ministério exclusivo para segurança), mas dotada de autonomia administrativa, orçamentária e técnica. Sua missão seria coordenar e centralizar o combate às organizações criminosas, com foco em inteligência, finanças e integração institucional.

A Agência teria que contar com um número suficiente de servidores próprios e emprestados para formar equipes de investigadores, analistas técnicos e gestores administrativos. Estamos falando em alguns milhares de servidores e não de meia dúzia de gatos pingados que existem hoje em órgão importantíssimos, mas subdimensionado, como o COAF. Sua lógica não é ser mais uma polícia ostensiva, mas sim um centro estratégico capaz de acionar, quando necessário, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Força Nacional e as Polícias estaduais.

A agência reuniria em sua estrutura departamentos de Investigação e Operações Especiais, Inteligência e Tecnologia, Recuperação de Ativos e Gestão Patrimonial, Inteligência Prisional, Cooperação Internacional, Prevenção e Prospectiva Criminal, além da área de Administração e Finanças. ABIN, SENAPPEN, SENAD, Receita Federal, COAF, Banco Central, CGU e Ministério Público Federal teriam assento em um Conselho Inter forças e Interagências, garantindo integração e transparência.

Seus poderes seriam específicos e controlados: interceptar comunicações, infiltrar agentes, conduzir operações controladas, acessar dados bancários e fiscais, rastrear criptomoedas e propor confisco alargado de bens. Sempre mediante ordem judicial, em respeito às garantias constitucionais.

Para evitar abusos, a Agência teria mecanismos de controle democrático. Relatórios anuais públicos de resultados, relatórios sigilosos a Comissão de Segurança do Congresso, auditoria do TCU e da CGU, supervisão do Ministério Público Federal e uma Ouvidoria independente para receber denúncias.

A inovação é reunir em uma única agência o que hoje está disperso, seguindo as boas práticas internacionais. A inteligência estratégica da ABIN, o monitoramento prisional da SENAPPEN, a gestão patrimonial da SENAD, o braço financeiro da Receita, COAF e Banco Central, a força policial da PF, PRF e FNSP, e o controle da CGU, MPF e do TCU.

O Brasil precisa parar de combater o crime organizado com um mosaico de instituições que não se falam. Precisamos de um Estado em rede para enfrentar o crime em rede. A ANCCO, enxuta, eficiente e parcialmente blindada contra pressões políticas, pode ser o primeiro passo para reverter o atual jogo em que o crime está sempre à frente. O crime organizado já mostrou sua força. Passou a hora de o Estado brasileiro mostrar a sua.

 

keepinhouse

Arquivo do blog

Seguidores