terça-feira, 7 de outubro de 2025

Chain Analysis e a investigação de crimes financeiros com Criptomoedas

 


Tulio Kahn

Na imagem abaixo, observamos o grafo de um conjunto de transações (arestas) realizadas com a criptomoeda Zcash entre endereços (nós) de carteiras que detêm a moeda, no dia 29 de setembro último. Estas transações podem ser acompanhadas on-line e é bastante provável que algumas delas envolvam movimentação de recursos oriundos do crime. Muitos crimes digitais exigem valores diretamente em cripto (ransomware, esquemas de pirâmides, golpe do romance, venda de NFTs falsas, pornografia na dark web etc.) ou convertem em cripto os recursos obtidos com a atividade criminal (como tráfico de drogas). Criptomoedas também tem sido utilizadas para financiar o terrorismo e programas governamentais secretos.(Elliptic Typologies, relatório 2024)

 

Rede parcial de transações em Zcash em 29 de setembro



O paradoxal é que estas informações sobre as transações são públicas e podem ser extraídas da blockchain, que mantém os registros públicos de todas as transações já feita em cripto, desde seu início em 2010, quando duas pizzas foram compradas por 10 mil Bitcoins, cujo valor unitário atual é de cerca de 113 mil dólares.

As transações são em verdade pseudoanônimas: não sabemos quem são os detentores das carteiras, mas conseguimos saber de onde a transação se originou e qual seu destino, a trajetória entre origem e destino, o valor transacionado, o volume de transações entre os nós, data e hora da transação, valor da corretagem e uma série de medidas típicas de nós específicos e de redes como um todo: densidade, número de conexões, centralidade, influência, etc. Contas que são abertas e fechadas rapidamente e por onde circulam grande quantidade de criptos, contas de países “suspeitos”, transações que passaram por mixers, moedas que foram trocadas sucessivamente por outras (cross-chain), valores que retornam ao mesmo grupo de carteiras depois desta trajetória confusa, passagens por carteiras já identificadas como suspeitas, etc. etc., despertam um sinal vermelho para os analistas.

 

Com base nas características estruturais da rede e em informações externas complementares, é possível identificar transações suspeitas e agrupamentos de carteiras potencialmente ilícitas — uma abordagem conhecida como blockchain forensics ou chain analysis, que utiliza o blockchain como fonte primária de dados transacionais. O desafio está em usar a morfologia da rede para identificar padrões associados a transações criminosas.

Os criminosos, como na versão analógica, tentam evitar a detecção das transações, valendo-se de uma série de recursos: fracionamento de valores para permanecer abaixo dos limites de alerta, uso de mixers ou tumblers que embaralham transações entre múltiplas carteiras, conversão entre criptomoedas (por exemplo, trocando Bitcoin por Monero, stablecoins ou outros ativos mais opacos), e a utilização de cross-chain bridges e serviços de troca descentralizada (DEX) para ocultar a origem dos fundos. O objetivo é embaralhar os fluxos e permitir o resgate em moeda fiduciária aparentemente “limpa”.

Não é fácil “seguir o dinheiro” neste novo cenário, complicado pela possibilidade de usar criptos menos transparente (Moreno), Exchanges que não seguem as regras de KYC (Conheça seu cliente) e AML. (leis anti máfia), transações “de balcão” usando OCT, transações P2P, depósitos e saques em ATMs cripto e vários outros expedientes. No meio do caminho, estes recursos ilícitos em cripto podem ser lavados através de bets, gift cards, NFTs, skins de games, propriedades digitais no metaverso e diversos ativos digitais cujo comércio é opaco e que podem ser comprados e vendidos em Bitcoin, Etherium, Stablecoins, etc. A passagem por estes ativos no meio do caminho é uma evidência adicional para ser levada em consideração na análise.

A Chain Analysis fornece indicações probabilísticas de possíveis problemas em carteiras, que mereceriam um escrutínio mais detalhado, verificando as justificativas para as transações, a compatibilidade entre os valores transacionados e as atividades no mundo real, IPs das máquinas utilizadas, endereço físico das empresas e dezenas de outros procedimentos investigatórios. Existem sistemas de mercado, como o Ellipitic, que ajudam na identificação destas tipologias e comportamento suspeitos, pois trata-se de uma tarefa hercúlea, proporcional ao volume de recursos ilícitos que transitam na rede.

A verdade é que este tipo de análise dificilmente pode ser executado por departamentos locais de polícia. As bases de dados das transações em cripto são gigantescas, é preciso relacioná-las com listas de endereços de carteiras suspeitas, entender o modus operandi dos criminosos, definir e programar quais são os comportamentos suspeitos, entre outras dificuldades operacionais. É preciso um grande conhecimento sobre finanças, mercado cripto, contabilidade, tecnologia e crime. Mesmo grandes bancos têm dificuldade em monitorar estas transações suspeitas e preferem terceirizar o trabalho de análise para empresas especializadas.

É difícil acreditar que milhares de pequenas fintechs que vem sendo criadas, que mal seguem as regras do KYC (know your customer) e AML (leis anti máfia), consigam monitorar e denunciar atividades suspeitas aos órgãos de inteligência, algo que são obrigadas a fazer apenas recentemente, como os grandes bancos. Mas com acesso a computador e internet, usuários brasileiros podem simplesmente operar através de exchanges internacionais onde a regulação seja ainda menor.

Iniciativas como o Pix, Defy (finanças descentralizadas), bancos digitais, criptomoedas e blockchain abrem as portas para que parcelas da população antes excluídas do sistema financeiro possam ter contas e manipular recursos digitalmente. No caso de países autoritários ou com viés confiscatório, elas permitem transações entre as partes sem a anuência do estado e do sistema financeiro oficial. Mas oferecem também muito mais oportunidades para o crime organizado, evasão fiscal e outros ilícitos.

O grosso da lavagem de dinheiro no Brasil aparentemente ainda é feito de maneira tradicional, através de postos de gasolina, revendedoras de veículos, compra de imóveis, empresas de ônibus, etc. Mas operações recentes como a Carbono Oculto revelaram que o crime organizado já se utiliza de fintechs e de fundos de investimento no sistema financeiro oficial.

Desconfio que ninguém no Brasil saiba estimar quanto destes recursos ilícitos circulam na nossa cara através de criptomoedas. Existem dificuldades intrínsecas ao rastreamento dessas atividades, falta de know how sobre como investigar estas transações, faltam dados e integração entre os diversos atores do poder público e do mercado. Temos uma legislação bastante frouxa ainda sobre fintechs, exchanges estrangeiras que operam no Brasil, bets e demais prestadores de serviços de ativos virtuais (VASPs). Apenas esta semana o Banco Central passou a listar e bloquear endereços PIX envolvidos em fraudes, depois de anos e milhões de reais perdidos em desfalques!!! Temos também ampla utilização de identidades fraudulentas e empresas de fachada. Por outro lado, temos bilhões de origem ilícita que precisam ser lavados.

O relatório da FATF de 2023 reconhece que o Brasil criou um marco legal para ativos virtuais, mas que a implementação e supervisão ainda são incipientes. As autoridades brasileiras admitem o uso crescente de criptoativos por criminosos para ocultar a origem de recursos ilícitos, embora ainda haja carência de dados sistematizados sobre a escala desse fenômeno.(FATF, 2023)[1]

Se os mecanismos preventivos – legais e institucionais - não forem aperfeiçoados, é questão de tempo para o Brasil se tornar o paraíso da cripto criminalidade.

Referências

FINANCIAL ACTION TASK FORCE (FATF). Mutual Evaluation Report – Brazil. Paris: FATF, 2023. p. 180-183.

Preventing Finacial Crimes in Cryptoaasets. Elliptic Tipologies Report, 2024

SCHNOERING, Hugo; VAZIRGIANNIS, Michalis. Bitcoin research with a transaction graph dataset. Scientific Data, v. 12, n. 1, p. 404, 2025.

 



[1] “Brazil has recently introduced legislation establishing a legal framework for Virtual Assets and VASPs. However, implementation and supervision are still developing, and authorities are in the early stages of understanding the ML/TF risks related to virtual assets.” “Authorities acknowledge that criminals increasingly use virtual assets to obscure the origin of illicit funds, but there is limited data and analysis on the extent of such use in Brazil.”

 

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