quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Ladrões e vítimas no ciberespaço: internet, mudança de estilos de vida e queda dos roubos



Nos últimos 20 anos a criminalidade tem caído sistematicamente nos países desenvolvidos: homicídios, arrombamentos, roubo de veículos diminuíram intensamente na Europa Ocidental, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, Japão e diversos outros em todo o mundo. A exceção são os crimes digitais e os roubos/furtos de celulares, que cresceram em muitos países. Estas tendências são corroboradas não apenas pelos dados oficiais, mas também por pesquisas de vitimização e fontes paralelas ao sistema de justiça. (Farrel, 2014; Farrel, 2018; Sidebotton, 2018; Matews, 2018).

Existem diversas hipóteses sobre o que pode estar causando esta queda, que ocorreu logo após um período de intenso crescimento da criminalidade até os anos 90. As explicações, portanto, tem que levar em conta esta caráter geral de queda internacional – o que já exclui as variáveis demasiado locais como pena de morte ou legalização do aborto- e este padrão de crescimento e queda, com o ponto de inflexão ao redor dos anos 90.

Farrell lista pelo menos 17 hipóteses que a literatura criminológica tem explorado para entender o fenômeno, embora  nem todas elas se encaixem nestas características observadas. Replico-as aqui, pois é interessante notar que diversas delas também ajudariam a explicar a queda da criminalidade no Sudeste, a partir de 2000 e mesmo o movimento generalizado de queda mais recente no Brasil, pós 2017.

Resumo das hipóteses

Hipóteses
Aplica-se ao Brasil?
1. Economia forte: melhora econômica geral reduz a criminalidade.
Parcialmente: melhora da economia após a recessão de 2014-2016
2. Legislação flexível sobre armas: mais armas aumentam o efeito intimidação sobre os criminosos.
Não: legislação sobre armas ficou mais rigorosa
3. Pena de morte: aumento no uso da pena de morte induz a maior intimidação.
Não existe no Brasil formalmente. Esta hipótese no Brasil poderia ser substituída pela hipóteses da elevada letalidade policial.
4. Lei de controle de armas: legislação mais rígida sobre armas reduz crimes.
Sim, Estatuto do Desarmamento de 2003 reduziu armas em circulação.
5. Prisões: aumento do encarceramento reduz crime através da incapacitação e intimidação.
Sim, taxa de encarceramento aumentou em todas as regiões.
6. Estratégias policiais: melhor policiamento preventivo reduz crime. Por exemplo: Compstat
Sim, adoção do Infocrim em São Paulo e de mapeamento de hots spots em quase todas as polícias estaduais.
7. Mais polícia: aumento do efetivo provoca queda da criminalidade.
Varia por Estado. Criação das Guardas Municipais fez efetivo aumentar.
8. Legalização do aborto: legalização do aborto nos anos 70 significou menos adolescentes em risco nos anos 90.
Não existe no Brasil. Mas temos redução no número de filhos por mulheres
9. Imigração: imigrantes cometem menos crimes e promovem controle social.
Não, imigração é pequena e recente, com exceção dos venezuelanos no Norte.
10. Confiança do consumidor: economia mais forte desvia o consumidor do mercado paralelo de produtos roubados.

Sim, confiança do consumidor aumentou depois da recessão de 2014-2016.
11. Declínio no Mercado de drogas pesadas: declínio neste mercado reduz violência relacionada e crimes contra a propriedade.
Não há evidência empírica de declínio. Disputa por mercado de drogas no Norte e Nordeste elevou os homicídios nestas regiões.
12. Envenenamento por chumbo: gerou danos cerebrais nas crianças nos anos 50, causando a onda de criminalidade nos anos 60, quando elas atingiram a adolescência. A partir de então, ambiente mais limpo dos anos 70 provocou a queda de criminalidade nos anos 90.
Não há evidência para o Brasil.
13. Mudanças demográficas: envelhecimento da população significa proporcionalmente menos jovens agressores e menos vítimas, provocando a queda na criminalidade.
Sim, população brasileira está envelhecendo e ritmo, embora lento, é maior no Sudeste e menor no Norte/Nordeste.
14. Processo civilizatório. Controle institucional enfraqueceu nos anos 60, provocando aumento da criminalidade, depois se fortaleceu nos anos 90, causando a queda do crime.
Não há evidência para o Brasil
15. Medidas de segurança reforçadas. Aumento das medidas de segurança aumentou a qualidade e quantidade de segurança, reduzindo as oportunidades criminais.
Sim, adoção de equipamentos de proteção, como câmeras, travas e alarmes cresceu no Brasil, em especial nos locais e entre famílias de maior renda.
16. A Internet: deslocamento dos criminosos para crimes digitais e mudança no estilo de vida das vítimas.
Sim, acesso a internet e tempo dispendido na internet pelos jovens cresceu rapidamente.
17. Proteção pelos celulares: os telefones portáteis se expandiram rapidamente nos anos 90, aumentando a proteção dos usuários.
Sim, acesso a celulares cresceu no Brasil e também se tornaram um dos objetos mais visados nos furtos e roubos.

Como é possível verificar, diversas destas hipóteses poderiam se aplicar ao Brasil recente ou pelo menos ao caso da Região Sudeste, cuja queda da criminalidade é anterior: a economia melhorou ligeiramente depois da crise de 2014 (estudo recente do Ipea mostra como o emprego diminui os homicídios, Cerqueira, 2019), o Estatuto do Desarmamento diminuiu a quantidade de armas em circulação, tivemos aumento da população prisional, vários Estados adotaram a gestão baseada em mapas de hot spots, como o Infocrim, a confiança do consumidor melhorou depois da recessão, a população envelheceu, a sociedade adota cada vez mais mecanismos de proteção individual como alarmes e câmeras, temos cada vez mais pessoas acessando a internet e dispendendo mais tempo na internet. Diversos estudos realizados no Brasil já corroboraram algumas destas hipóteses para a queda dos homicídios em São Paulo.

Neste artigo, gostaria de trazer algumas evidências que podem corroborar a hipótese de que o crescimento da internet pode estar gerando um efeito positivo para a queda da criminalidade no Brasil, ainda não testada por nenhum estudo acadêmico.

De acordo com os dados da pesquisa TIC do IBGE de 2018, em 2008 apenas 34% da população brasileira tinha acesso à internet.  Dez anos depois, este número dobrou. Em 2018, 69,8% da população tem acesso a internet. Nas classes A e B esta porcentagem supera os 90%. Isto representa 127 milhões de pessoas ou 46,5 milhões de domicílios com acesso a internet. Proporcionalmente, o crescimento foi maior nas classes C,D e E, embora a penetração absoluta ainda seja menor nos grupos de renda mais baixos.

Entre os jovens de 20 a 24 anos 88,4% tem acesso à internet e a grande maioria, 97%, acessa a internet pelo smartphone. No sudeste, 76,5% utilizam a internet, em comparação com 60,1% no Norte e 58,4% no Nordeste. Esta distribuição se encaixa no fato da criminalidade ter caído mais no Sudeste e menos no Norte e Nordeste.

Não só o acesso à internet cresceu como também o tempo que as pessoas passam conectadas na rede, especialmente os jovens. Segundo a pesquisa We are social de 2019, o brasileiro passa em média 9 horas e vinte minutos conectados a internet, por dia. Deste tempo, 3:30 minutos são gastos acessando as redes sociais. Somos o segundo país no ranking mundial de tempo gasto na internet. Regra geral, nações em desenvolvimento passam mais tempo na internet do que nações desenvolvidas. Isso ocorre porque eles têm população mais jovem, cuja permanência diária na internet é maior do que a média da população.

O elevado nível de acesso e o tempo gasto na internet explicam porque o Brasil está nos primeiros lugares do ranking de crimes cibernéticos do mundo (somo 2,8% da população mundial mas cerca de 5% da origem dos ataques cibernéticos no mundo)  e ajuda a entender também a predileção dos criminosos, em geral jovens, pelos smartphones.

A hipótese é de que este aumento dos celulares, do acesso à internet e tempo gasto na internet, deslocou parte dos criminosos para os crimes digitais. Ao contrário do que se imagina, muitos deles, como as fraudes por e-mail ou roubos de dados de cartão, não exigem muitos conhecimentos tecnológicos. Mais importante do que este eventual deslocamento de criminosos, é o impacto da internet sobre o estilo de vida das pessoas. A teoria do crime como atividade de rotina estipula que para que um crime (de contato) aconteça, é preciso no mínimo um agressor, uma vítima e um local físico de encontro. (Cohen e Felson, 1979)

A mudança no estilo de vida dos jovens, cada vez mais enfurnados dentro de casa assistindo vídeos no Youtube, acessando as redes sociais ou jogando on-line – diminui provavelmente as oportunidades de encontro físico entre vítimas e agressores. Além disso, as casas, ocupadas pelos moradores, ficam mais protegidas. Entre os mais velhos, há cada vez mais gente trabalhando em casa. É uma mudança de estilo de vida que ocorre num ambiente onde ficou cada vez mais difícil roubar um carro ou uma casa, em razão do aumento dos equipamentos de proteção.

Tais fenômenos estariam contribuindo para a diminuição dos crimes de contato. Existem evidências empíricas que sustentem esta argumentação?

No gráfico de dispersão abaixo vemos no eixo vertical a variação na quantidade de roubo de veículos, por Estado, entre 2001 e 2018. No eixo horizontal temos a quantidade de jovens de 20 a 24 anos com acesso a internet, segundo a pesquisa IBGE - TIC




Como é possível observar, a correlação bivariada entre as duas variáveis é bastante forte (r = .71). Significa dizer que os Estados com mais acesso a internet, como SP, RJ, MS, RS tiveram decréscimo ou crescimento pequeno nos roubos de veículos, enquanto Estados com pouco acesso à Internet, como MA, AM, AC e AL, tiveram grande crescimento de roubo de veículos.

Esta correlação dá sustentação à hipótese da internet, mas é claro que existem variáveis que precisam ser levadas em conta (controladas), pois como vimos o acesso à internet é maior em alguns grupos etários e sobe com a renda. Em outras palavras, é possível que a correlação seja espúria e é preciso um modelo mais rigoroso para testar a hipótese. [1]

O Brasil pode ser um caso interessante para testar a hipótese dos efeitos da internet sobre o crime, pois como vimos somos um dos países onde os jovens mais ficam conectados na rede. Supostamente (não vi dados rigorosos sobre isso), somos também um dos países que mais cometem crimes digitais no mundo. Isto significa que tanto a hipótese do “deslocamento” dos criminosos para o crime digital quanto à de “mudanças de estilo de vida” se manifestariam aqui mais intensamente do que em outros países.

Há uma geração de jovens Zumbis no país, vidrados com as caras em seus smartphones, assistindo a vídeos idiotas no Youtube, durante horas por dia. Basta sair às ruas para ver esta mudança de comportamento. Isto pode gerar efeitos negativos, como o aumento dos roubos e furtos de celulares e dos crimes digitais, ao mesmo tempo em que pode gerar externalidades positivas, como reduzir, eventualmente, os crimes de contato.

Pessoalmente, acho que seria melhor se estivessem na escola, trabalhando, ou mesmo jogando bola ou conversando nas ruas. Mas, como diziam os jovens pedintes no semáforo, “pelo menos não estamos roubando”.


Referências

Farrell, Graham, and Daniel Birks. "Did cybercrime cause the crime drop?." Crime science 7.1 (2018): 8.
Farrell, Graham, Nick Tilley, and Andromachi Tseloni. "Why the crime drop?." Crime and justice 43.1 (2014): 421-490.
Sidebottom, Aiden, et al. "The East Asian crime drop?." Crime Science 7.1 (2018): 6.
Matthews, Ben, and Jon Minton. "Rethinking one of criminology’s ‘brute facts’: The age–crime curve and the crime drop in Scotland." European journal of criminology 15.3 (2018): 296-320.



[1] Fiz apenas alguns testes até o momento. A correlação parcial entre variação nos roubos e acesso a internet continua elevada, mesmo controlando pela renda média do estado e pela média de jovens na população. A variável acesso a internet pelos jovens de 20 a 24 anos foi a mais frequentemente selecionada como significativa em diversos modelos de regressão que gerei, controlando por diversos fatores. Foi também a variável como maior coeficiente Beta e significância, superando dezenas de outras variáveis. Em resumo, é uma boa candidata a explicar a variação nos roubos nos estados nas últimas décadas.

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