sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Nos Rastros do Crime: Como o Brasil Muda e Como o Crime Muda com Ele

 O conjunto de artigos reunidos neste volume examina, sob diferentes ângulos, a complexa e mutável relação entre crime, sociedade e instituições no Brasil contemporâneo. Ao longo das últimas duas décadas, o país vivenciou transformações profundas no campo econômico, demográfico e tecnológico, ao mesmo tempo em que assistiu a mudanças igualmente significativas nos padrões de criminalidade e na atuação dos sistemas de justiça e segurança pública. Os textos aqui apresentados procuram lançar luz sobre essas mudanças a partir de análises empíricas, comparações internacionais e reflexões críticas sobre políticas públicas.

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A obra percorre temas variados, mas integrados por uma lógica comum: compreender o crime como fenômeno social multifacetado, cujas variações dependem tanto de fatores estruturais — como ciclos econômicos, transições demográficas e transformações culturais — quanto de dinâmicas institucionais e tecnológicas. Assim, ao analisar desde o impacto das operações na Cracolândia até as flutuações da confiança do consumidor e seu efeito sobre os roubos, os textos ilustram como a criminalidade responde a incentivos econômicos, regulações jurídicas, práticas policiais e formas de sociabilidade.

Diversos capítulos buscam justamente desafiar interpretações intuitivas ou simplistas. O declínio das internações juvenis, por exemplo, é aqui examinado como parte de uma tendência global de queda da delinquência juvenil, associada a mudanças geracionais no comportamento, digitalização da vida cotidiana, ampliação de políticas socioeducativas e envelhecimento populacional. Da mesma forma, a aparente super-representação de vítimas jovens nos registros de estupro é reinterpretada à luz de vieses de notificação e das transformações legislativas ocorridas desde 2009, revelando como as estatísticas podem espelhar não apenas o crime em si, mas também a forma como o Estado mede, classifica e reage a ele.

Outro eixo recorrente nos ensaios é a importância crescente da economia do crime, da tecnologia e dos mercados ilícitos. A expansão dos golpes digitais, a adoção de criptoativos em esquemas de lavagem de dinheiro e a crescente sofisticação das fraudes evidenciam que o crime se adapta às oportunidades econômicas e à infraestrutura tecnológica disponível. Textos sobre o USDT, sobre a cadeia financeira dos crimes com criptomoedas e sobre o rendimento típico de roubos, furtos e estelionatos demonstram como a criminalidade contemporânea opera em escalas antes impensáveis.

O livro também dedica atenção às instituições: o papel do Judiciário na formulação de políticas públicas, a heterogeneidade das respostas estaduais à criminalidade, o impacto de programas como o Muralha Paulista, e a persistência de desafios ligados à violência policial e às mortes em confronto. Esses temas reforçam que a segurança pública não é apenas uma questão de policiamento, mas de coordenação interinstitucional, boa gestão e capacidade analítica.

Por fim, os ensaios abordam questões estruturais, como o crime organizado territorial, a governança de mercados ilícitos e as limitações da legislação penal atual. Ao discutir essas dimensões, a obra oferece insumos concretos para o debate público e para o desenho de políticas baseadas em evidências — algo cada vez mais necessário em um campo marcado por paixões, ideologias e diagnósticos superficiais.

Este livro é, acima de tudo, um convite à análise crítica. Em tempos de discursos simplificados, ele reafirma a importância dos dados, do rigor metodológico e da reflexão informada. Ao integrar estatísticas oficiais, pesquisas de vitimização, literatura acadêmica e experiências comparadas, os ensaios aqui reunidos ajudam a desenhar um retrato mais preciso — e mais útil — do crime e da segurança pública no Brasil.


Tulio Kahn

São Paulo, novembro de 25


quarta-feira, 26 de novembro de 2025

A definição de organização criminosa ultraviolenta: acertos e problemas

 A discussão sobre o aprimoramento das definições legais de criminalidade organizada volta a ganhar centralidade no debate público, especialmente diante da crescente capacidade de facções brasileiras de exercer controle territorial, impor normas próprias e desafiar a presença do Estado em áreas urbanas e periféricas. A proposta aprovada estes dias  pela Camara dos Deputados de criação de uma categoria específica de “organização criminosa ultraviolenta”, popularmente denominada facção criminosa, insere-se nesse esforço de atualizar o marco jurídico a um fenômeno que evoluiu de maneira acelerada nas últimas três décadas. No entanto, como ocorre em outros momentos da história legislativa, a decisão foi tomada apressadamente após a letal operação da polícia no Rio de Janeiro, enquanto o sucesso da iniciativa depende de precisão técnica e alinhamento com o que a literatura especializada já consolidou sobre grupos criminais de alta complexidade.

A Lei 12.850/2013, atualmente responsável por regular o conceito de organização criminosa no país, define essas entidades como associações de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenadas, com divisão de tarefas, permanência e finalidade de obter vantagem mediante crimes de maior gravidade ou transnacionais. Essa estrutura mínima, inspirada em experiências estrangeiras e em recomendações internacionais de combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado, cumpriu um papel importante ao estabelecer um padrão jurídico relativamente claro. Mas o avanço das facções brasileiras deslocou o debate para outra dimensão: não se trata apenas de combater redes criminosas, mas de enfrentar grupos com capacidade de governança coercitiva e influência territorial, um traço observado também na Itália das organizações mafiosas e na Colômbia dos grupos armados organizados.

É nesse ponto que a nova proposta legislativa tenta avançar ao destacar elementos ausentes da definição de 2013. A ênfase na violência como mecanismo central de atuação, no controle territorial ou social, e nos ataques a serviços e infraestrutura essenciais aproxima a legislação da realidade empírica documentada por pesquisadores brasileiros e internacionais. Facções consolidadas como o CV utilizam coerção sistemática, mecanismos de regulação comunitária e ações estratégicas para influenciar populações e autoridades, criando uma zona cinzenta entre criminalidade e exercício informal de poder. 

Por outro lado, a redação original do novo dispositivo incorre em problemas que, se não forem corrigidos, podem gerar efeitos contrários ao desejado. A redução do número mínimo de integrantes para três pessoas, a ausência de referência a estrutura organizada ou divisão de tarefas e a possibilidade de enquadramento mesmo em condutas ocasionais elevam significativamente o risco de hiperpenalização. Na prática, embora as facções visadas pela lei cheguem a agregar milhares de membros,  pequenos grupos que cometem crimes violentos — mas que não possuem permanência, cadeia de comando ou capacidade de governança — poderiam ser tratados como facções ultraviolentas. Esse alargamento conceitual esvazia o próprio sentido da categoria que se pretende criar.

Não é coincidência que países com experiências duras no enfrentamento a grupos territorializados optaram por definições rigorosas. A legislação italiana exige capacidade de intimidação duradoura e domínio territorial; a colombiana diferencia grupos armados organizados de quadrilhas eventuais justamente pela permanência, pelo comando hierárquico e pela capacidade de controle populacional. Esses elementos estruturais são essenciais para evitar confundir um arranjo criminoso eventual com organizações dotadas de racionalidade coletiva, logística própria, fontes regulares de financiamento e poder de coerção sobre comunidades inteiras.

Ao harmonizar as contribuições da literatura criminológica com as exigências jurídicas já estabelecidas no Brasil, uma definição mais precisa de facção criminosa deveria preservar os critérios estruturais da Lei 12.850 — número mínimo de quatro integrantes, divisão de tarefas e permanência — e incorporar elementos que caracterizam grupos territorializados, como a intimidação sistemática, a imposição de normas às populações locais, os ataques estratégicos à infraestrutura estatal e a capacidade de restringir a atuação do Poder Público. Poderia haver menção ao uso de armamento de uso restrito, outra característica distintiva das facções. Essa combinação permitiria distinguir de forma clara facções consolidadas de grupos episódicos, fortalecendo o arcabouço legal sem criar efeitos colaterais indesejados.

Com base numa definição precisa baseada em características e modus operandi típicos, é desnecessária a listagem de condutas criminosas, cuja lista jamais será exaustiva. A Lei 12.850/2013 evitou esta armadilha, ao filtrar genericamente crimes puníveis com 4 ou mais anos de prisão. O novo projeto do Marco Legal, volta a incorrer no erro de tentar listar condutas específicas.

A atualização da legislação é necessária e urgente e o texto avança em inúmeros pontos. Mas, como reconhece a  experiência internacional, a precisão conceitual é condição fundamental para qualquer avanço. Definir mal é punir mal. E, diante de organizações que aprenderam a combinar violência instrumental, governança informal e economia criminosa de larga escala, o Brasil precisa de uma definição que esteja à altura do desafio, sem cair em definições ambíguas que confundem mais do que esclareçem.

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