terça-feira, 23 de setembro de 2025

Uma nova agência para reagir ao crime organizado

 


Tulio Kahn

O crime organizado já não é mais uma ameaça difusa no Brasil: é uma realidade concreta que ocupa territórios, controla economias ilícitas, infiltra-se no Estado e há anos comanda crimes de dentro dos presídios. Facções como o PCC, o Comando Vermelho e dezenas de grupos regionais movimentam bilhões por ano, corrompem agentes públicos e desafiam a autoridade do Estado. O recente assassinato do ex-delegado Rui Ferraz Fontes, com quem convivi na SSP/SP, revela a fragilidade da nossa estrutura de combate ao crime organizado.

O modelo atual é insuficiente. A Polícia Federal cumpre um papel essencial, mas está sobrecarregada. A PEC da Segurança em discussão no Congresso pode piorar ainda mais esta situação. A PF precisa cuidar de imigração, emissão de passaportes, crimes ambientais, fraudes cibernéticas, tráfico de drogas, corrupção e uma infinidade de outras atribuições. Falta foco exclusivo nas organizações criminosas. É generalista e padece do mesmo problema que o Ministério da Justiça. A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) coleta informações, mas não tem poder investigativo. A Secretaria Nacional de Políticas Penais administra os presídios federais, mas não consegue evitar que líderes sigam mandando de dentro das celas. A SENAD cuida da gestão de bens apreendidos, mas sem ligação direta com operações. A Receita Federal, o COAF e o Banco Central sabem onde circula o dinheiro sujo, mas não atuam de forma integrada com as forças policiais. Faltam bancos de dados sobre organizações, membros, faturamento, modus operandi, território de atuação e outras informações necessárias para planejar o combate ao crime organizado.

O crime, em contrapartida, opera em rede. Conecta doleiros, empresários, traficantes e criminosos de colarinho branco em uma teia que cruza fronteiras. O Estado brasileiro, fragmentado, reage sempre um passo atrás. Recentemente o Ministério da Justiça aventou a possibilidade de criar uma agência nacional anti máfia mas a iniciativa, apoiada por muitos especialistas, não seguiu em frente.

Outros países enfrentaram dilemas semelhantes e decidiram criar agências nacionais especializadas. No Reino Unido, a National Crime Agency (NCA) funciona como um “FBI britânico”, reunindo policiais e especialistas civis em tecnologia e finanças. Na Itália, a Direzione Investigativa Antimafia (DIA), com pouco mais de 1.300 agentes, mostrou que não é preciso uma força gigante, mas sim foco e poderes claros. Sua arma mais eficaz foi o confisco patrimonial, retirando das máfias os bens e o prestígio que sustentavam sua influência. Na Alemanha, o Bundeskriminalamt investe em inteligência e cooperação internacional. A Austrália criou task forces permanentes com policiais, militares e auditores. Há lições claras: agências especializadas devem ser autônomas, ter foco exclusivo no crime organizado, integrar diferentes órgãos e sufocar financeiramente as facções. A operação carbono oculto seguiu em parte este modelo de atuação interinstitucional, mas como ação pontual e voluntarista, não by design, como deveria ser.

É nesse espírito que defendemos a proposta de criação de uma Agência Nacional de Combate ao Crime Organizado (ANCCO), com as seguintes linhas gerais. Seria uma autarquia de regime especial, vinculada ao Ministério da Justiça (melhor ainda se dentro de um ministério exclusivo para segurança), mas dotada de autonomia administrativa, orçamentária e técnica. Sua missão seria coordenar e centralizar o combate às organizações criminosas, com foco em inteligência, finanças e integração institucional.

A Agência teria que contar com um número suficiente de servidores próprios e emprestados para formar equipes de investigadores, analistas técnicos e gestores administrativos. Estamos falando em alguns milhares de servidores e não de meia dúzia de gatos pingados que existem hoje em órgão importantíssimos, mas subdimensionado, como o COAF. Sua lógica não é ser mais uma polícia ostensiva, mas sim um centro estratégico capaz de acionar, quando necessário, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, a Força Nacional e as Polícias estaduais.

A agência reuniria em sua estrutura departamentos de Investigação e Operações Especiais, Inteligência e Tecnologia, Recuperação de Ativos e Gestão Patrimonial, Inteligência Prisional, Cooperação Internacional, Prevenção e Prospectiva Criminal, além da área de Administração e Finanças. ABIN, SENAPPEN, SENAD, Receita Federal, COAF, Banco Central, CGU e Ministério Público Federal teriam assento em um Conselho Inter forças e Interagências, garantindo integração e transparência.

Seus poderes seriam específicos e controlados: interceptar comunicações, infiltrar agentes, conduzir operações controladas, acessar dados bancários e fiscais, rastrear criptomoedas e propor confisco alargado de bens. Sempre mediante ordem judicial, em respeito às garantias constitucionais.

Para evitar abusos, a Agência teria mecanismos de controle democrático. Relatórios anuais públicos de resultados, relatórios sigilosos a Comissão de Segurança do Congresso, auditoria do TCU e da CGU, supervisão do Ministério Público Federal e uma Ouvidoria independente para receber denúncias.

A inovação é reunir em uma única agência o que hoje está disperso, seguindo as boas práticas internacionais. A inteligência estratégica da ABIN, o monitoramento prisional da SENAPPEN, a gestão patrimonial da SENAD, o braço financeiro da Receita, COAF e Banco Central, a força policial da PF, PRF e FNSP, e o controle da CGU, MPF e do TCU.

O Brasil precisa parar de combater o crime organizado com um mosaico de instituições que não se falam. Precisamos de um Estado em rede para enfrentar o crime em rede. A ANCCO, enxuta, eficiente e parcialmente blindada contra pressões políticas, pode ser o primeiro passo para reverter o atual jogo em que o crime está sempre à frente. O crime organizado já mostrou sua força. Passou a hora de o Estado brasileiro mostrar a sua.

 

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