quinta-feira, 22 de julho de 2021

As polícias e as armas

Há várias pesquisas de opinião nas últimas décadas levantando o que as pessoas acham sobre o porte ou posse de armas de fogo. Em geral, as pessoas pensam de forma abstrata no tema e invocam argumentos filosóficos como “direito de defesa” e garantia contra governos autoritários; ou mais instrumentais como segurança do patrimônio, pessoal e da família. Mas a maioria delas não têm uma arma ou é autorizada a andar com ela todos os dias. A probabilidade de que venham utilizá-la algum dia, de fato é bastante remota. O risco de andar armado também é diferente, uma vez que a arma não está à vista de todos. Para um policial, ou operador do campo da segurança pública ou privada, a situação é bastante diferente. Portar arma é não apenas um direito, como um dever. A arma de fogo é seu instrumento de trabalho e ele a carrega diariamente, publicamente, embora sejam relativamente raras as ocasiões em que fará uso dela. Mas a mera possibilidade de ter que usá-la já altera a forma como a questão do acesso às armas pela população é percebida. O policial corre mais risco de ser vitimado numa tentativa de roubo da sua arma, tem mais chances de sofrer um acidente, vítima de violência doméstica, de suicídio, de latrocínio. Ele foi treinado sobre como armazená-la corretamente, mantê-la em condições de uso, usá-la com segurança. As armas podem tê-lo salvo de situações complicadas, mas também podem ter matado muitos de seus colegas. Operadores de segurança tendem a gostar de armas, ou pelo menos não tem resistência a elas, como muitos na população. Em resumo, a questão do armamento civil para um policial é muito mais presente e complexa do que para alguém que pensa a questão em abstrato, como uma questão de princípio ou política. As armas compradas legalmente acabam no mundo do crime e aí podem ser usadas diretamente contra eles. Por tudo isso, é importante saber o que os policiais pensam sobre a questão: os policiais apoiam mais ou menos do que a população em geral as restrições às armas de fogo? Que tipo de policial? E por quais razões? A pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) procurou explorar como os policiais veem a questão da liberação ou proibição de armas e quais os fatores associados com a maior ou menor adesão a cada posição. “Policial” é um termo muito heterogêneo e as opiniões são matizadas de acordo com a corporação, gênero, nível hierárquico e outros fatores. Outras variáveis, como experiência de ser pessoalmente vitimado ou perdido colegas de trabalho podem afetar as opiniões sobre o tema. Assim como a avaliação que o policial faz do governo Jair Bolsonaro, sabidamente defensor da flexibilização da posse e porte de armas de fogo. Muitos trabalham com segurança durante a folga e precisam de armas particulares para o exercício do bico. Assim, são muitos e diversos os potenciais fatores e os motivos subjacentes para apoiar ou rejeitar o armamento civil. Nas análises subsequentes explorarei apenas relações bivariadas e, como é sabido, tais associações podem ser espúrias, pois não estão controladas por outras variáveis relevantes. Trata-se, portanto, apenas de análise exploratória. Nas tabelas, assinalarei apenas as diferenças em relação ao esperado que se demostraram significativas¹. A intenção é destacar características que aumentam ou diminuem o apoio às armas. Posteriormente, estas variáveis podem ser testadas num modelo multivariado que estime os efeitos simultâneos do conjunto. Por hora, vamos apenas avançar conjecturas. Na amostra completa, observamos que uma minoria de policiais é favorável à posse e porte de armas para todos na população, sem limites de qualquer natureza (10,4%). Por outro lado, é também uma minoria (16%) que defende a proibição e porte de todas as armas de fogo. A grande maioria dos entrevistados (73,6%) defende uma postura condizente com a legislação atual, ou seja, que permita o porte e posse, mas com limites de quantidade de armas e munições, mecanismos de controle e rastreamento de armas, restrição a certos tipos de armamento etc. Nem liberação completa, nem restrição total. Devido a diferenças na redação das perguntas não é possível comparar a opinião dos policiais com as da população em geral. Para dar uma noção das tendências recentes entre a população, a Pesquisa CNT/MDA de fevereiro de 2021 apontou que 68,2% dos brasileiros são contrários ao decreto que flexibilizava o acesso da população à compra de armas de fogo. Em março de 2019 o IBOPE divulgou que 61% da população é contra a flexibilização da posse de armas e o DataFolha de julho de 2019 levantou que 61% da população rejeita a legalização da posse e 73% do porte de arma. (IBOPE, março de 2019; DataFolha, julho de 2019; CNT/MDA, fevereiro de 2021). Existem muitas modulações nas opiniões dos policiais e as tabelas subsequentes exploram os desvios destas porcentagens médias. Há bastante divergência entre as corporações. Polícia Rodoviária Federal, Polícia Científica, Polícia Federal e Polícia Civil apoiam significativamente mais a proibição, enquanto o Corpo de Bombeiros e a Polícia Penal apoiam a liberação incondicional. Os agentes penitenciários sempre reivindicaram o direito de portar armas, o que explica talvez a maior adesão da categoria à tese da liberalização. A Polícia Militar, por fim, adere significativamente mais à proposta da liberalização limitada. Com relação ao gênero, assim como parece ocorrer entre a população em geral², as mulheres são muito mais favoráveis à proibição (28,9%), praticamente o dobro do percentual de homens (13,7%). A diferença é provavelmente decorrência da socialização, uma vez que meninos crescem brincando com armas. Neste aspecto, vemos que a identidade de policial é permeada por outras identidades (de gênero, cor, classe, religião) e que a resultante é uma síntese de todas estas forças sociais. É digno de nota que entre os policiais que se identificaram como pretos o apoio às restrições suba para 20,3%. Enquanto negros, eles parecem ter a consciência de que o impacto da maior circulação de armas na sociedade é bem maior para os jovens negros do sexo masculino, afetando suas opiniões sobre armas. Com relação à religião, duas variações chamam a atenção. Os que se declaram sem religião demonstram um apoio muito maior que a média à proibição de armas (26,2%), sugerindo uma preocupação humanitária superior aos que dizem ter alguma religião. O segundo aspecto é que entre os evangélicos é nítido o menor apoio à proibição total e o maior apoio à liberação das armas, especialmente entre os pentecostais. Isto pode ter relação com alguma afinidade conceitual entre a ética evangélica (como diria Weber) e as teses armamentistas, ou pode ser um efeito indireto, como veremos, do apoio do presidente, que é evangélico, à flexibilização das armas. A escolaridade gerou efeitos contraditórios, com o apoio a proibição sendo maior tanto entre os que têm apenas o fundamental quanto entre os que têm pós-graduação, mas menor entre os que têm ensino médio. A análise por área aponta que os policiais nas capitais favorecem a tese da proibição enquanto os policiais do interior a liberalização. As taxas de criminalidade nas capitais são invariavelmente superiores às do interior e talvez se esperasse – uma vez que armas são consideradas como instrumentos de proteção e que taxas maiores de criminalidade implicam em maior sensação de insegurança – que o apoio às armas fosse maior nas capitais. Esse tópico precisaria ser aprofundado, pois é possível que haja uma terceira variável omitida ou que policiais da capital e do interior tenham visões diferentes sobre armas: nas capitais sendo talvez mais perceptível o impacto das armas sobre a criminalidade e os policiais do interior, menos violento, vendo armas como um direito. Os mais velhos apoiam mais a proibição (27,7%), tendência também captada na Polícia Federal (Borba, 2020). Com relação às diferenças regionais, finalmente, o Nordeste defende menos a liberação (7%) e mais a proibição (21%) enquanto Norte e Sul³ demostram menos adesão à tese proibicionista. Talvez seja digno de menção que as grandes indústrias de armas, como Taurus, estão localizadas no Sul, região de fronteira e de tradição militar, e que a região costuma se destacar como mais favorável ao armamentismo nas pesquisas de opinião com a população. No primeiro grupo de cruzamentos exploramos as variáveis sócio-demográficas clássicas. O questionário, contudo, é bem mais amplo e avança em questões como satisfação com a profissão, racismo, atividades profissionais extras, vitimização, covid e diversos outros. Assim, achamos interessante averiguar como as opiniões com relação às armas são afetadas por estas variáveis. Elas nos dão pistas interessantes sobre eventuais motivos subjacentes. Embora irregular, muitos policiais desempenham outras atividades renumeradas, em especial na esfera da segurança privada. Na segurança privada devem utilizar armas pessoais e a legislação atual impõe uma série de limites a este uso. Assim, não é de estranhar que o apoio à liberalização irrestrita cresça para 18,2% entre os que dizem ter outra atividade em segurança privada. Este apoio é ainda ligeiramente superior à média entre os que têm outra atividade renumerada qualquer e só cai entre os que não desempenham outra atividade. Há, assim, uma razão instrumental para o apoio à liberalização entre os policiais que fazem bico ou estão ligados de algum modo ao setor privado de segurança. Além das razões instrumentais, há um componente afetivo impactando as opiniões. Note-se que entre os policiais que apontaram terem sido baleados em serviço, o apoio à liberalização irrestrita sobe para 17,5%, assim como entre aqueles que disseram terem sido vitimados fisicamente por algum suspeito (12,1%) ou ameaçado de morte ou violência física (11,5%). Ao contrário, o apoio à proibição é nitidamente maior entre os que não foram baleados ou vitimados, bem como entre os que nunca presenciaram a morte de colegas (16,7%). Assim, ter sofrido ou presenciado violência por parte de criminosos parece afetar a predisposição com relação à flexibilização das armas. Parece existir uma conexão entre vitimização, discurso pró-armas e o discurso contra “bandidos” ou direitos humanos, mas infelizmente a pesquisa não permite aprofundar estas conexões4. Finalmente, o questionário traz uma bateria de questões sobre o enfrentamento à covid-19, e particularmente duas que medem indiretamente o apoio ao governo federal. A primeira perguntava ao entrevistado “O quanto você concorda que as medidas como utilização de medicamentos como cloroquina, azitromicina, ivermectina são adequadas para prevenir a covid-19?” e a segunda se o entrevistado “acredita que o Governo Federal está realizando ações para auxiliar seu trabalho na pandemia?”. Embora não sejam perguntas diretas sobre o apoio ao governo Bolsonaro, acreditamos que sejam boas medidas substitutas (proxys) deste conceito. Bolsonaro fez sua carreira política defendendo demandas das polícias e da indústria de armas e sabe-se que existem afinidades eletivas entre o ideário bolsonarista e o ideário policial. Em outras palavras, a hipótese aqui é que o apoio ao governo Bolsonaro aumenta a chance de apoio à liberação irrestrita as armas (ou vice-versa, pois o sentido da associação pode ser inverso). Com efeitos, de todas as variáveis utilizadas estas duas foram as que tiveram maior impacto sobre as opiniões sobre armas. O apoio à liberalização irrestrita sobe para 16,7% entre os policiais que acreditam no tratamento precoce para a covid-19 e para 14,6% entre os que avaliam que o governo federal está atuando para auxiliar na pandemia. Em nítido contraste, o apoio à proibição irrestrita sobe, respectivamente, para 46% e 30,2% entre os que discordam destas afirmações. Resumidamente, existem chances muito grandes de que eu seja a favor da liberalização irrestrita das armas se eu for do Corpo de Bombeiros, homem, evangélico, trabalhar no bico de segurança, ter sido alguma vez vítima de violência e ser simpático ao governo federal. Em contraste, existem chances muito maiores de apoiar a proibição irrestrita se pertencer à Polícia Rodoviária Federal ou Científica, for mulher, negro, sem religião, ter ensino fundamental ou pós, mais de 60 anos e morar no Nordeste. Além de não desempenhar atividade remunerada extra, não ter sido vitimado e discordar das medidas do governo federal. A pesquisa sugere que as opiniões dos policiais sobre armas – como de resto da população em geral – são influenciadas por diversos fatores. Questões de identidade de gênero, cor, região, religião, carreira profissional afetam estas opiniões. Assim como razões de ordem instrumental, afetivas e políticas. Todas as nossas opiniões, sobre qualquer ponto, são um balanço destes múltiplos conflitos e contextos. Como dito inicialmente, trouxemos apenas associações bivariadas e é preciso construir um modelo estatístico mais sofisticado para verificar quais destas associações se mantêm quando controladas por outros fatores. Encontramos apenas uma tese brasileira que utilizou técnicas multivariadas para analisar os fatores que influenciam a opinião dos policiais federais sobre armas de fogo (Borba, 2020). Embora calcado numa amostra de 801 casos de uma única corporação, o modelo de regressão corroborou diversas associações encontradas aqui. De acordo com Borba, percepções favoráveis às armas de fogo estão correlacionadas com o nível de experiência no manuseio, ter presenciado lesão com arma, faixa etária mais velha e grau de religiosidade. Mas diferentemente do encontrado aqui, gênero não se revelou estatisticamente significativo e evangélicos aprovavam a posse de armas numa porcentagem menor do que média (Borba, 2020). Conhecer a opinião dos policiais – que lidam diariamente com armas de fogo e seus efeitos, positivos ou negativos – é importante para refletir sobre a questão. Coisa diferente é considerar, do ponto de vista da construção de uma política pública sobre armas de fogo, que a opinião dos policiais deva pesar mais (ou menos) do que as demais. Como vimos, existem razões econômicas, afetivas e ideológicas que afetam significativamente estas percepções. E estas são péssimas conselheiras quando se trata de defender o bem coletivo. 1 Como critério, usamos o desvio padronizado entre o valor esperado e o valor observado. Mostramos apenas os desvios superiores a 2,64, o que equivale ao nível de significância de .001 2 Na pesquisa IBOPE de 16 de março de 2019, 50% dos homens se disseram a favor do afrouxamento das regras para a posse de armas, em contraste com 27% das mulheres. O mesmo ocorre com relação ao porte. Já em 2005, antes do plebiscito sobre a comercialização de armas de fogo, o Instituto Datafolha observava que as mulheres e os moradores do Nordeste eram mais favoráveis à proibição da venda enquanto homens e moradores do Sul eram proporcionalmente mais contra. https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2005/07/1226824-80-acham-que-o-comercio-de-armas-de-fogo-e-municao-deve-ser-proibido.shtml 3 Na pesquisa IBOPE de 16 de março de 2019, Norte e Sul foram também as Regiões mais favoráveis à flexibilização da posse de armas. 4 Esta associação entre vitimização e aumento da vontade de ter armas também foi observada recentemente no levantamento do Latino Barômetro de 2021 (LAPOP). Na média, 43% responderam que teriam uma arma de pudessem, porcentagem que sobe para 54% entre os que foram vítimas de algum crime nos últimos 12 meses. Referências bibliográficas: Borba, Alessandra. A Percepção de Policiais Federais sobre Armas de Fogo. Mestrado em Administração Pública, UNB, 2020. https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/06/03/ibope-maioria-dos-entrevistados-em-pesquisa-e-contra-a-flexibilizacao-das-regras-de-armas.ghtml https://www.jb.com.br/pais/2019/06/1003171-percentual-de-brasileiros-favoraveis-a-armas-dobra-em-sete-anos–mas-maioria-ainda-e-contra.html https://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2005/07/1226824-80-acham-que-o-comercio-de-armas-de-fogo-e-municao-deve-ser-proibido.shtml

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