terça-feira, 4 de maio de 2021

Tráfico de drogas na percepção policial e os custos para a sociedade

 


 Tulio Kahn. Doutor em Ciência Política

Rodrigo Vilardi. Doutor em Direito Penal e Policial Militar do Estado de São Paulo.

 

Nos diversos programas policiais que ocupam as tardes televisivas de brasileiros, as notícias e imagens mais comuns mostram viaturas em perseguições emocionantes, transmitindo ao público a ideia de que ser policial é viver o tempo inteiro em um filme de James Bond. Embora isso faça parte do cotidiano de um pequeno grupo de policiais, a verdade é que o dia a dia da maioria dos policiais é bem menos emocionante do que a dramatização mostrada pela TV.

Diversas pesquisas criminológicas procuraram retratar o cotidiano típico das polícias, através de formulários onde os próprios policiais respondem quanto tempo do seu dia gastam em cada tipo de atividade. O retrato que emerge destas pesquisas, felizmente, é que na maior parte do tempo os policiais estão engajados em outras atividades, não tão espetaculares tal como a TV mostra. Em suma, para a grande maioria, na maior parte do tempo, as atividades são muito mais burocráticas e menos emocionantes do que parecem.

Essa frequente discrepância entre percepção e realidade recomenda cautela redobrada antes de qualquer conclusão ou abordagem sobre a atividade policial. Recentemente participamos de um projeto que teve por objetivo estimar quais são os custos da repressão ao tráfico de drogas em duas das principais capitais brasileiras: Rio de Janeiro e São Paulo (Um Tiro no PÉ, Cesec, 2021). Chama a atenção a constatação de grande discrepância na avaliação do peso da repressão as drogas, quanto contrastamos as avaliações dos policiais sobre seu cotidiano com os dados administrativos.

Resultados

Com metodologia própria, o levantamento contou com respostas de 151 policiais em ambos os estados. No Rio de Janeiro, o resultado da pesquisa de opinião indicou que, na percepção dos policiais, 58% do tempo seria dedicado ao policiamento ostensivo e 42% a operações. Durante o trabalho de policiamento ostensivo, por sua vez, 46% do tempo dos policiais seria dedicado ao combate ao uso e tráfico de drogas. Finalmente, 54% do tempo destinado a operações seria gasto em ações relacionadas à lei de drogas.

No Estado de São Paulo, por sua vez, cerca de 70% do tempo de policiamento seria dispendido no policiamento ostensivo, em suas diversas modalidades e o restante do tempo (30%) em operações especiais. O combate ao uso e tráfico de drogas, por seu turno, ocuparia, na percepção dos policiais, 35% do tempo em que estão desenvolvendo o policiamento ostensivo rotineiro e 28% do tempo dedicado a operações específicas.

Note-se que no Rio de Janeiro, na percepção dos policiais, foi maior tanto o tempo dispendido em operações, quanto o tempo gasto na repressão às drogas em geral, tanto durante o policiamento ostensivo ordinário quanto em operações, o que parece coincidir com a impressão generalizada de que as operações contra o tráfico no Rio de Janeiro – onde diversas facções disputam territórios de venda - são proporcionalmente mais intensas do que em São Paulo. A se fiar na percepção dos policiais pesquisados, a repressão às drogas comprometeria quase metade do tempo dos policiais no Rio e um terço do tempo de policiamento dos policiais em São Paulo.

Todavia, os dados administrativos levantados na mesma pesquisa trazem um cenário diferente do estimado subjetivamente pelos policiais. Tomando por base o ano de 2017, no Rio, apenas 7,1% dos Boletins de Ocorrência da PM (BOPM) indicam estar relacionados à Lei de Drogas. Em São Paulo, por sua vez, apenas 4% das ocorrências atendidas pela PM (registradas no SIOPM) tem relação com a Lei de Drogas. Nas Polícias Civis o quadro não é diferente: apenas 2,8% dos Registros de Ocorrência no Rio estão relacionados a drogas, porcentagem que cai para 2,2% em São Paulo. Levando em consideração diversos outros indicadores de atividades policiais analisados na pesquisa, em média as polícias no Rio gastariam 3,7% do seu tempo combatendo o tráfico enquanto em São Paulo a porcentagem atingiria 7,7%. Bastante longe das estimativas subjetivas feitas pelos policiais.

A divergência entre os resultados parece indicar que a percepção dos policiais superestima a participação da repressão ao uso e ao tráfico nas atividades de policiamento ou que os dados oficiais subestimam esta atividade. A tabela abaixo compara os resultados do survey de São Paulo com os dados administrativos oficiais das polícias

Repressão ao tráfico: estimativas subjetivas e dados administrativos das PMs do RJ e SP

Questão

Pesquisa PMSP

Dados administrativos SSP-SP

Tempo médio estimado em atividades de repressão ao tráfico

31,5%

7,7%

Em relação aos BOPMs preenchidos por policiais de sua unidade, que percentual desses BOPMs você estima que são referidos a ocorrências relativas a drogas?

21%

4%

Em relação aos REGISTROS DE OCORRÊNCIA (BO/PCs) apresentados nas DELEGACIAS por POLICIAIS MILITARES de sua unidade, que percentual desses BO/PCs você estima que são referidos a ocorrências relativas a drogas?

27%

2,2%

 

Em relação às PRISÕES EFETUADAS por policiais de sua unidade (sejam elas em flagrante ou em cumprimento de mandado judicial), que percentual dessas prisões você estima que são referidas a ocorrências relativas a drogas?

30,4%

16,8%*

Fonte: pesquisa Um Tiro no Pé, Cesec, 2021 * considerando estimativa feita pelo Sou da Paz de que 60% das prisões por drogas são feitas pela PM em conjunto com os números de prisões (flagrante + mandado) e ocorrências de tráfico em 2017.

Supondo que a amostra de 130 policiais seja representativa da situação estadual, a discrepância entre os dados sugere que quando se trata do universo das drogas e do tráfico, as estimativas tornam-se infladas e o componente emocional parece interferir no aspecto cognitivo. As estimativas policiais parecem coincidir mais com o cenário mostrado nos programas policiais da TV e menos com as estatísticas oficiais das instituições.

Estimativas subjetivas exageradas ou dados oficiais subestimados?

Por outro lado, não se pode descartar a possibilidade de que os dados administrativos e as estatísticas oficiais coletadas não coincidam com ou traduzam a realidade do cotidiano policial.

Constatar a inexistência ou precariedade de dados, informações, indicadores a respeito de questões simples do sistema policial ou de justiça criminal revela um cenário desolador. Se tais dados são inexistentes ou se existentes e não são trabalhados e processados, como saber se o tempo ou os recursos policiais estão sendo desperdiçados em tarefas desnecessárias, em duplicidade, em qualquer outro “gargalo” ou “ineficiência” do sistema? Nesta pesquisa, para além dos custos da repressão ao tráfico, também confirmaram-se as dificuldades e fragilidades dos dados administrativos e das estatísticas oficiais, o que pode explicar parte da discrepância constatada entre dados e percepções. 

É preciso aprofundar o fenômeno, mas nossa impressão é que policiais tendem a ser menos objetivos e mais projetivos quando se trata de avaliar a questão das drogas e do tráfico e seu impacto sobre o crime, sobre os homicídios e sobre o trabalho policial. São os criminosos mais temidos e poderosos. O crime mais lucrativo e danoso para as famílias. Quanto instados sobre o tema, os policiais podem estar projetando aquilo que julgam que a sociedade espera deles.

Para além da intrigante questão da discrepância, a estimativa dos recursos policiais efetivamente dispendidos, todos os anos, no combate e repressão às drogas, seja pela percepção dos policiais seja pelos dados administrativos e estatísticas oficiais apresentadas pela pesquisa, revela que eles são significativos. A sociedade, que paga essa conta, precisa de informações para decidir não apenas quanto, mas como os recursos devem ser aplicados.  

 

Bibliografia

Instituto Sou da Paz. APREENSÕES DE DROGAS NO ESTADO DE SÃO PAULO. Um raio-x das apreensões de drogas segundo ocorrências e massa, 2018

LEMGRUBER, Julita (coord.) et al. Um tiro no pé: Impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. Relatório da primeira etapa do projeto "Drogas: Quanto custa proibir". Rio de Janeiro: CESeC, março de 2021.

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