Tulio Kahn. Doutor em Ciência Política
Rodrigo Vilardi. Doutor em
Direito Penal e Policial Militar do Estado de São Paulo.
Nos diversos programas policiais que
ocupam as tardes televisivas de brasileiros, as notícias e imagens mais comuns
mostram viaturas em perseguições emocionantes, transmitindo ao público a ideia
de que ser policial é viver o tempo inteiro em um filme de James Bond. Embora isso faça parte do cotidiano de um pequeno grupo
de policiais, a verdade é que o dia a dia da maioria dos policiais é bem menos
emocionante do que a dramatização mostrada pela TV.
Diversas pesquisas criminológicas
procuraram retratar o cotidiano típico das polícias, através de formulários
onde os próprios policiais respondem quanto tempo do seu dia gastam em cada
tipo de atividade. O retrato que emerge destas pesquisas, felizmente, é que na
maior parte do tempo os policiais estão engajados em outras atividades, não tão
espetaculares tal como a TV mostra. Em suma, para a grande maioria, na maior
parte do tempo, as atividades são muito mais burocráticas e menos emocionantes do
que parecem.
Essa frequente discrepância entre
percepção e realidade recomenda cautela redobrada antes de qualquer conclusão
ou abordagem sobre a atividade policial. Recentemente participamos de um
projeto que teve por objetivo estimar quais são os custos da repressão ao
tráfico de drogas em duas das principais capitais brasileiras: Rio de Janeiro e
São Paulo (Um Tiro no PÉ, Cesec, 2021). Chama a atenção a constatação de grande
discrepância na avaliação do peso da repressão as drogas, quanto contrastamos
as avaliações dos policiais sobre seu cotidiano com os dados administrativos.
Resultados
Com metodologia própria, o
levantamento contou com respostas de 151 policiais em ambos os estados. No Rio
de Janeiro, o resultado da pesquisa de opinião indicou que, na percepção dos policiais,
58% do tempo seria dedicado ao policiamento ostensivo e 42% a operações. Durante
o trabalho de policiamento ostensivo, por sua vez, 46% do tempo dos policiais seria
dedicado ao combate ao uso e tráfico de drogas. Finalmente, 54% do tempo
destinado a operações seria gasto em ações relacionadas à lei de drogas.
No Estado de São Paulo, por sua
vez, cerca de 70% do tempo de policiamento seria dispendido no policiamento
ostensivo, em suas diversas modalidades e o restante do tempo (30%) em
operações especiais. O combate ao uso e tráfico de drogas, por seu turno, ocuparia,
na percepção dos policiais, 35% do tempo em que estão desenvolvendo o policiamento
ostensivo rotineiro e 28% do tempo dedicado a operações específicas.
Note-se que no Rio de Janeiro, na
percepção dos policiais, foi maior tanto o tempo dispendido em operações,
quanto o tempo gasto na repressão às drogas em geral, tanto durante o
policiamento ostensivo ordinário quanto em operações, o que parece coincidir
com a impressão generalizada de que as operações contra o tráfico no Rio de
Janeiro – onde diversas facções disputam territórios de venda - são
proporcionalmente mais intensas do que em São Paulo. A se fiar na percepção dos
policiais pesquisados, a repressão às drogas comprometeria quase metade do
tempo dos policiais no Rio e um terço do tempo de policiamento dos policiais em
São Paulo.
Todavia, os dados administrativos
levantados na mesma pesquisa trazem um cenário diferente do estimado
subjetivamente pelos policiais. Tomando por base o ano de 2017, no Rio, apenas
7,1% dos Boletins de Ocorrência da PM (BOPM) indicam estar relacionados à Lei
de Drogas. Em São Paulo, por sua vez, apenas 4% das ocorrências atendidas pela
PM (registradas no SIOPM) tem relação com a Lei de Drogas. Nas Polícias Civis o
quadro não é diferente: apenas 2,8% dos Registros de Ocorrência no Rio estão
relacionados a drogas, porcentagem que cai para 2,2% em São Paulo. Levando em
consideração diversos outros indicadores de atividades policiais analisados na
pesquisa, em média as polícias no Rio gastariam 3,7% do seu tempo combatendo o
tráfico enquanto em São Paulo a porcentagem atingiria 7,7%. Bastante longe das
estimativas subjetivas feitas pelos policiais.
A divergência entre os resultados
parece indicar que a percepção dos policiais superestima a participação da repressão
ao uso e ao tráfico nas atividades de policiamento ou que os dados oficiais
subestimam esta atividade. A tabela abaixo compara os resultados do survey de
São Paulo com os dados administrativos oficiais das polícias
Repressão ao tráfico: estimativas
subjetivas e dados administrativos das PMs do RJ e SP
Questão |
Pesquisa PMSP |
Dados administrativos SSP-SP |
Tempo médio estimado em atividades de repressão
ao tráfico |
31,5% |
7,7% |
Em relação aos BOPMs preenchidos por policiais de
sua unidade, que percentual desses BOPMs você estima que são referidos a
ocorrências relativas a drogas? |
21% |
4% |
Em relação aos REGISTROS DE OCORRÊNCIA (BO/PCs)
apresentados nas DELEGACIAS por POLICIAIS MILITARES de sua unidade, que
percentual desses BO/PCs você estima que são referidos a ocorrências
relativas a drogas? |
27% |
2,2% |
Em relação às PRISÕES EFETUADAS por policiais de
sua unidade (sejam elas em flagrante ou em cumprimento de mandado judicial),
que percentual dessas prisões você estima que são referidas a ocorrências
relativas a drogas? |
30,4% |
16,8%* |
Fonte: pesquisa Um Tiro no Pé,
Cesec, 2021 * considerando estimativa feita pelo Sou da Paz de que 60% das
prisões por drogas são feitas pela PM em conjunto com os números de prisões (flagrante
+ mandado) e ocorrências de tráfico em 2017.
Supondo que a amostra de 130
policiais seja representativa da situação estadual, a discrepância entre os
dados sugere que quando se trata do universo das drogas e do tráfico, as
estimativas tornam-se infladas e o componente emocional parece interferir no aspecto
cognitivo. As estimativas policiais parecem coincidir mais com o cenário
mostrado nos programas policiais da TV e menos com as estatísticas oficiais das
instituições.
Estimativas subjetivas exageradas ou dados oficiais subestimados?
Por outro lado, não se pode
descartar a possibilidade de que os dados administrativos e as estatísticas
oficiais coletadas não coincidam com ou traduzam a realidade do cotidiano
policial.
Constatar a inexistência ou
precariedade de dados, informações, indicadores a respeito de questões simples
do sistema policial ou de justiça criminal revela um cenário desolador. Se tais
dados são inexistentes ou se existentes e não são trabalhados e processados, como
saber se o tempo ou os recursos policiais estão sendo desperdiçados em tarefas
desnecessárias, em duplicidade, em qualquer outro “gargalo” ou “ineficiência” do
sistema? Nesta pesquisa, para além dos custos da repressão ao tráfico, também confirmaram-se
as dificuldades e fragilidades dos dados administrativos e das estatísticas
oficiais, o que pode explicar parte da discrepância constatada entre dados e
percepções.
É preciso aprofundar o fenômeno,
mas nossa impressão é que policiais tendem a ser menos objetivos e mais
projetivos quando se trata de avaliar a questão das drogas e do tráfico e seu
impacto sobre o crime, sobre os homicídios e sobre o trabalho policial. São os
criminosos mais temidos e poderosos. O crime mais lucrativo e danoso para as
famílias. Quanto instados sobre o tema, os policiais podem estar projetando
aquilo que julgam que a sociedade espera deles.
Para além da intrigante questão
da discrepância, a estimativa dos recursos policiais efetivamente dispendidos,
todos os anos, no combate e repressão às drogas, seja pela percepção dos
policiais seja pelos dados administrativos e estatísticas oficiais apresentadas
pela pesquisa, revela que eles são significativos. A sociedade, que paga essa
conta, precisa de informações para decidir não apenas quanto, mas como os
recursos devem ser aplicados.
Bibliografia
Instituto Sou da Paz. APREENSÕES
DE DROGAS NO ESTADO DE SÃO PAULO. Um raio-x das apreensões de drogas segundo
ocorrências e massa, 2018
LEMGRUBER, Julita (coord.) et al.
Um tiro no pé: Impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de
justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. Relatório da primeira etapa do
projeto "Drogas: Quanto custa proibir". Rio de Janeiro: CESeC, março
de 2021.
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