segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Trata aos outros como queres ser tratado: indicadores de abuso policial no Brasil



Em 2015 o Conselho Nacional de Justiça lançou o projeto Audiência de Custódia, onde o preso é apresentado rapidamente ao juiz, no caso de uma prisão em flagrante. Na audiência – feita na presença do MP, Defensoria ou advogado do preso, o juiz analisa a legalidade da prisão, sua permanência e eventuais abusos cometidos no momento da prisão, como torturas ou maus tratos.

Analisando as estatísticas coletadas entre 2015 e junho de 2017, no qual foram realizadas 258 mil audiências de custódia, chama-nos a atenção que em mais de 12 mil casos (4,9%), houve a alegação do preso de que houve algum tipo de violência no ato de prisão. Esta porcentagem varia de 0% de casos no Mato Grosso do Sul a 38% dos casos no Amazonas. Assim, este número provavelmente reflete as distintas práticas dos sistemas de justiça criminal durante as audiências: é bastante provável que não haja uma padronização e que em alguns estados os juízes perguntem com mais insistência sobre os maus tratos ou que em alguns estados as condições para relatar os maus tratos por parte dos presos sejam mais adequadas do que em outros.

Podemos imaginar que por um lado, presos tenham uma tendência a relatar abusos para prejudicar seus algozes, o que inflacionaria a porcentagem de relatos. Por outro lado, o temor de represálias em audiências públicas e a falta de anonimato pode levar à subnotificação de casos. Assim, seja por ausência de padronização no judiciário ou por razões que podem levar à super ou subnotificação de casos, não é possível confiar demasiado nas estatísticas produzidas durante as audiências de custódia para estimar a incidência ou prevalência de maus tratos no Brasil. Talvez aqui o exame pericial de corpo de delito fosse um indicador mais seguro do eventual abuso do que testemunhos coletados durante a audiência.

De todo modo, há uma série de outros indicadores conhecidos que sugerem uma incidência elevada de práticas policiais abusivas no Brasil, não só com relação aos suspeitos de crimes, mas com relação à população em geral. Na tabela abaixo reproduzimos alguns destes indicadores, por Unidade da Federação.



Na primeira coluna vemos a % de presos que alegaram ter sofrido abusos durante as audiências de custódia (fonte: CNJ) e na segunda coluna está a taxa de letalidade policial média para os anos de 2015 e 2016, segundo o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em ambos os casos trata-se de indicadores de violências policiais com relação a suspeitos de crime.

Nas três ultimas colunas temos indicadores de abusos com relação à população em geral e que foram coletados pela Pesquisa Nacional de Vitimização do Ministério da Justiça, realizada em 2014. A pesquisa de vitimização perguntou quem sofreu agressão física nos últimos 12 meses e, quando o agressor era conhecido, se se tratava de agressor policial. Perguntava ainda se o entrevistado teve algum tipo de contato formal com a polícia no último ano e, caso positivo, se o policial agiu com agressividade durante o encontro. Observe-se que não são indicadores subjetivos, mas baseados na experiência dos entrevistados com a polícia. Estamos falando aqui da população em geral e não apenas de suspeitos de crimes. Finalmente, a última coluna relata a porcentagem dos entrevistados que afirmam ter medo da Polícia Militar.

No agregado temos 4,9% dos suspeitos relatando maus tratos policiais durante as audiências de custódia, uma taxa de letalidade de 1:7 mortos por 100 mil habitantes, cerca de 2% dos autores das agressões físicas identificados como policiais, 7,9% dos abordados relatando que policiais foram agressivos durante a abordagem e 30% da população relatando ter medo da PM.

Estamos falando de médias e a situação pode ser bastante pior em alguns estados. A Alegação de maus tratos está acima de média no Amazonas, Alagoas e Mato Grosso. A taxa de letalidade policial acima da média no Rio de Janeiro, Amapá, Bahia e Goiás. Agressores identificados como policiais chegam a 5% no Amapá e contatos agressivos superam os 12% no Pará, Amazonas e Amapá. Como “resultado” das práticas anteriores e outras variáveis, a porcentagem dos que temem a polícia supera os 40% em estados como Sergipe, Ceara e Tocantins. A tabela esta ranqueada pela % dos que afirmam que tiveram um contato agressivo durante uma abordagem policial. Note-se que muitos estados que estão na parte superior da tabela estão também acima da média nos demais indicadores, sugerindo um padrão estadual generalizado de abuso. No outro extremo da tabela estão Estados onde a situação geral de abuso está relativamente mais sob controle, exceto por um ou outro indicador.

De um modo geral, os indicadores mostram um cenário geral de abusos e agressividades cometidos pelas polícias brasileiras. Esta agressividade se direciona não apenas aos suspeitos de crimes como para a população como um todo. Existe grande variabilidade regional, sugerindo que este tipo de comportamento não é inexorável e que é possível, através de políticas públicas, melhorar este padrão de tratamento.

São Paulo é um dos estados com melhor desempenho no que tange à redução da criminalidade, em especial dos homicídios, mas no que diz respeito aos abusos policiais aparece acima da média nacional em todos os indicadores, sendo relativamente mais abusiva que a polícia carioca, campeã de letalidade no país. Em ambos os estados, é possível que os indicadores criminais fossem menores se tivéssemos um padrão mais profissional de atuação policial.

A agressividade no tratamento com a população retira legitimidade e afasta a população das polícias. Informação é a matéria prima por excelência do trabalho policial e ela não flui quando a população teme e desconfia da polícia. As polícias se sentem desvalorizadas, mas esta valorização por parte da sociedade só virá quando as policiais oferecerem em contrapartida uma atuação eficiente e profissional. Uma população que se sente desrespeitada tende a não ver com bons olhos investimentos públicos em instituições que elas mais temem do que respeitam.



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