A primeira
vez que escrevi sobre a relação entre crime e desemprego foi em 1999,
analisando dados de 60 meses coletados para Grande São Paulo entre 1985 e 1989
(Kahn, Cidades Blindadas, 2000). Voltei algumas vezes ao tema economia e crime
posteriormente, a última delas em 2012, relacionando ciclos econômicos com
variações na criminalidade. (https://www.researchgate.net/publication/265077273_Exploring_the_Relationship_Between_Crime_and_Economic_Performance_in_Brazil_after_1994_Using_Time_Series_Econometric_Techniques).
Mas é
muito interessante retomar as hipóteses daquele primeiro artigo de cinco
páginas, quando a literatura sobre o tema no Brasil era praticamente
inexistente e ver como muitas hipóteses se confirmaram e o artigo continua
atual. Entre as observações feitas na ocasião, destaco as seguintes:
1)
Uma taxa elevada e constante de desemprego que
se mantenha durante muito tempo tenderá a levar para o mundo do crime pessoas –
principalmente jovens – que de outro modo estariam participando do mercado de
trabalho. Mais do que o trabalhador que perde seu emprego a certa altura de sua
vida profissional, o contingente anual de criminosos é engrossado pela massa de
jovens que jamais ocuparam uma vaga no mercado formal de trabalho.;
2)
A maior parte dos infratores adultos e boa
parte dos jovens estava trabalhando no momento do crime. Estar trabalhando é
assim um elemento inibidor, mas não constitui nenhuma garantia contra o
cometimento do crime. Num país como o Brasil onde os salários são
frequentemente aviltantes e a qualidade do trabalho precária, o universo dos
criminosos se confunde parcialmente com o universo dos trabalhadores;
3)
Os efeitos do desemprego sobre a criminalidade
não são imediatos;
4)
Não só a relação não é imediata como também não
se manifesta em todo e qualquer tipo de criminalidade: o efeito do desemprego é
maior sobre os crimes contra o patrimônio;
5)
O criminoso profissional é de certo modo
inflexível com relação às variações no mercado de trabalho. As variações no
mercado de trabalho só tenderão a afetar aqueles indivíduos que poderíamos
qualificar de criminosos “episódicos”, que se alternam entre o mundo do crime e
o mercado de trabalho conforme a disponibilidade de empregos no mercado.
6)
Uma vez tendo ingressado na carreira criminal,
fica muito mais complicado voltar ao mercado de trabalho;
É curioso
notar que mesmo sem grandes recursos econométricos e usando apenas a boa e
velha “imaginação sociológica” preconizada por Wright Mills, o artigo avançava
hipóteses que seriam depois efetivamente corroboradas pela literatura posterior
sobre o tema no Brasil: de que existe uma relação significativa e positiva
entre crime e desemprego - com elasticidades estimadas que variam entre 0,6% e
4%. Esta relação é mais forte entre a população mais jovem, o efeito é maior na
primeira ou segunda defasagem, o efeito é maior nos crimes patrimoniais, o
efeito é assimétrico, etc.
O Brasil é
um país ideal para testar este tipo de relação, uma vez que, diferente dos
países desenvolvidos, o emprego aqui é precário, as políticas de proteção ao
trabalhador limitadas em extensão e magnitude, a informalidade enorme e os efeitos
dissuasórios do sistema de justiça criminal pequenos. Enquanto muitos estudos
feitos em países desenvolvidos reportam ausência de relações significativas ou
efeitos pequenos em magnitude, a literatura brasileira, em sua maioria,
corrobora preponderantemente a ligação entre ambos os fenômenos.
Numa
revisão recente da literatura (listada abaixo), encontramos 32 estudos brasileiros que
utilizaram o desemprego como variável explicativa ou de controle, em diferentes
modelos para a previsão de diversos crimes. Em nada menos que 28 deles (87%) o
efeito do desemprego sobre o crime foi positivo e significativo. Em apenas um
estudo o resultado foi “negativo”, ou seja, a relação entre crime (homicídios)
e desemprego foi inversa (Andrade e Lisboa, 2001), enquanto em três deles não
foram encontradas associações significativas (Beato e Reis, 2000; Sapori e
Wanderley, 2001; Sachida e Mendonça, 2013).
Temos nestes
últimos 25 anos um conjunto robusto de evidências brasileiras – usando os mais
diferentes métodos, fontes e níveis de agregação ecológica - que sugerem que o desemprego afeta
positivamente os níveis de criminalidade. Com o passar dos anos, os modelos
foram ficando mais sofisticados do ponto de vista metodológico, aumentando a
validade dos resultados.
Existem
diversas hipóteses sobre os mecanismos pelos quais o desemprego afeta a
criminalidade. Pode ser como defendia Becker em 1968, pela redução do custo de
oportunidade no cometimento do crime. Neste caso, quanto mais desemprego, mais
crimes (relação positiva). Pode ser também por extrema necessidade, para
garantir a própria subsistência, como nos crime famélicos. Ou pelo aumento da
oportunidade, uma vez que o desempregado tem também mais tempo livre. Por outro
lado, uma comunidade onde existam poucos desempregados é economicamente afluente,
o que pode implicar também em mais oportunidades criminais, como se observou no
caso do aumento da renda (neste caso, a relação entre desemprego e crime é
negativa). Ou mesmo pelo estresse emocional derivado da perda do emprego e
todos os significados sociais que ele implica, especialmente no caso de crimes
de motivação não econômica. (Brito et al, 2020)
As
hipóteses não são excludentes e como sempre, é provável que atuem
simultaneamente. Quaisquer que sejam os mecanismos os efeitos estão bem
estabelecidos e é possível esperar um impacto da criminalidade no período
recessivo que se espera para os próximos meses, em razão do desaquecimento da
economia provocado pelo COVID-19. O IBRE/FGV estima que a taxa média de
desemprego aumente de 11,9% Para 17,8%. Analistas de mercado estimam cenários
ainda mais pessimistas.
É difícil
estimar a magnitude deste impacto na criminalidade, pois ao contrário das
demais recessões e períodos de alta do desemprego, as mudanças agora são
globais e diversas variáveis estão mudando de forma intensa e simultânea.
Muitos crimes patrimoniais caíram pela metade neste período de isolamento
social. Mesmo que haja um impacto do desemprego, ele incidirá sobre os níveis
atuais ou sobre os níveis anteriores? Além do desemprego, outros fatores podem
acirrar a criminalidade em médio e longo prazo, como a evasão escolar, as
separações, a elevação do consumo de álcool e outros fenômenos que estão
aparentemente ocorrendo neste momento, a se fiar nas evidências anedóticas. Por
outro lado, outros fatores podem mitigar estes efeitos deletérios, como a
tendência de preservação do trabalho residencial, os auxílios financeiros
governamentais, a introdução de novas tecnologias policiais, etc.. Estudo recente
do IBRE/FGV diz, por exemplo, que o auxílio emergencial reduziu a extrema
pobreza ao menor patamar em 40 anos. Em alguns municípios mais pobres, o
auxílio governamental implicará em aumento da renda média local, de modo que os
impactos da crise econômica serão diferenciados segundo o contexto local.
É difícil
prever qual será a resultante destas forças opostas, mas os analistas criminais
parecem concordar que a recessão será profunda e deve contribuir para o
crescimento do crime.
Para quem
tiver interesse em exercícios preditivos, criei uma simulação simples estimando
como o desemprego pode impactar no crime, que pode ser acessada através deste
link: https://public.tableau.com/views/BICrimes/cenrio?:language=pt&:display_count=y&publish=yes&:origin=viz_share_link
O software
tableau tem um módulo de previsões temporais baseado em suavização exponencial
(escrito alias pelo prof. Rob Hyndman, o mesmo que fez o algoritmo de séries
temporais para o pacote R !). O método é baseado em Holt-Winters triplo e leva
em conta nível, tendência e sazonalidade (aditiva ou multiplicativa) das séries
temporais, se existentes. Não é tão sofisticado como ARIMA que leva em conta,
adicionalmente, a existência de autocorrelação com períodos passados ou erros
passados, mas é de simples implementação e produz bons resultados preditivos.
Além de
trazer série temporal de diversos crimes para diversos Estados e as previsões
para os meses futuros, criei dois parâmetros adicionais: “elasticidade” e “% de
incremento do desemprego”. Movendo ambos os parâmetros através do cursor,
podemos estimar on-line qual o efeito aproximado para o crime e o Estado
selecionados. A elasticidade depende do estudo acadêmico escolhido e o
incremento do desemprego depende de qual previsão se acredita que será a
correta para os próximos meses. É preciso levar em conta todas as admoestações
feitas aqui e que não existem estudos reais para todos os crimes e estados que
fazem parte da simulação on-line. Tomando-se os devidos cuidados interpretativos,
acredito que pode ajudar os tomadores de decisão a lidarem com os impactos
futuros do desemprego. Que virão, para quem acredita em modelos preditivos,
“impávidos e infalíveis, como Bruce Lee”.
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