terça-feira, 28 de julho de 2020

Crime e desemprego – vinte e um anos depois




A primeira vez que escrevi sobre a relação entre crime e desemprego foi em 1999, analisando dados de 60 meses coletados para Grande São Paulo entre 1985 e 1989 (Kahn, Cidades Blindadas, 2000). Voltei algumas vezes ao tema economia e crime posteriormente, a última delas em 2012, relacionando ciclos econômicos com variações na criminalidade. (https://www.researchgate.net/publication/265077273_Exploring_the_Relationship_Between_Crime_and_Economic_Performance_in_Brazil_after_1994_Using_Time_Series_Econometric_Techniques).

Mas é muito interessante retomar as hipóteses daquele primeiro artigo de cinco páginas, quando a literatura sobre o tema no Brasil era praticamente inexistente e ver como muitas hipóteses se confirmaram e o artigo continua atual. Entre as observações feitas na ocasião, destaco as seguintes:

1)      Uma taxa elevada e constante de desemprego que se mantenha durante muito tempo tenderá a levar para o mundo do crime pessoas – principalmente jovens – que de outro modo estariam participando do mercado de trabalho. Mais do que o trabalhador que perde seu emprego a certa altura de sua vida profissional, o contingente anual de criminosos é engrossado pela massa de jovens que jamais ocuparam uma vaga no mercado formal de trabalho.;

2)      A maior parte dos infratores adultos e boa parte dos jovens estava trabalhando no momento do crime. Estar trabalhando é assim um elemento inibidor, mas não constitui nenhuma garantia contra o cometimento do crime. Num país como o Brasil onde os salários são frequentemente aviltantes e a qualidade do trabalho precária, o universo dos criminosos se confunde parcialmente com o universo dos trabalhadores;

3)      Os efeitos do desemprego sobre a criminalidade não são imediatos;

4)      Não só a relação não é imediata como também não se manifesta em todo e qualquer tipo de criminalidade: o efeito do desemprego é maior sobre os crimes contra o patrimônio;

5)      O criminoso profissional é de certo modo inflexível com relação às variações no mercado de trabalho. As variações no mercado de trabalho só tenderão a afetar aqueles indivíduos que poderíamos qualificar de criminosos “episódicos”, que se alternam entre o mundo do crime e o mercado de trabalho conforme a disponibilidade de empregos no mercado.

6)      Uma vez tendo ingressado na carreira criminal, fica muito mais complicado voltar ao mercado de trabalho;

É curioso notar que mesmo sem grandes recursos econométricos e usando apenas a boa e velha “imaginação sociológica” preconizada por Wright Mills, o artigo avançava hipóteses que seriam depois efetivamente corroboradas pela literatura posterior sobre o tema no Brasil: de que existe uma relação significativa e positiva entre crime e desemprego - com elasticidades estimadas que variam entre 0,6% e 4%. Esta relação é mais forte entre a população mais jovem, o efeito é maior na primeira ou segunda defasagem, o efeito é maior nos crimes patrimoniais, o efeito é assimétrico, etc.

O Brasil é um país ideal para testar este tipo de relação, uma vez que, diferente dos países desenvolvidos, o emprego aqui é precário, as políticas de proteção ao trabalhador limitadas em extensão e magnitude, a informalidade enorme e os efeitos dissuasórios do sistema de justiça criminal pequenos. Enquanto muitos estudos feitos em países desenvolvidos reportam ausência de relações significativas ou efeitos pequenos em magnitude, a literatura brasileira, em sua maioria, corrobora preponderantemente a ligação entre ambos os fenômenos.

Numa revisão recente da literatura (listada abaixo), encontramos 32 estudos brasileiros que utilizaram o desemprego como variável explicativa ou de controle, em diferentes modelos para a previsão de diversos crimes. Em nada menos que 28 deles (87%) o efeito do desemprego sobre o crime foi positivo e significativo. Em apenas um estudo o resultado foi “negativo”, ou seja, a relação entre crime (homicídios) e desemprego foi inversa (Andrade e Lisboa, 2001), enquanto em três deles não foram encontradas associações significativas (Beato e Reis, 2000; Sapori e Wanderley, 2001; Sachida e Mendonça, 2013).

Temos nestes últimos 25 anos um conjunto robusto de evidências brasileiras – usando os mais diferentes métodos, fontes e níveis de agregação ecológica -  que sugerem que o desemprego afeta positivamente os níveis de criminalidade. Com o passar dos anos, os modelos foram ficando mais sofisticados do ponto de vista metodológico, aumentando a validade dos resultados.

Existem diversas hipóteses sobre os mecanismos pelos quais o desemprego afeta a criminalidade. Pode ser como defendia Becker em 1968, pela redução do custo de oportunidade no cometimento do crime. Neste caso, quanto mais desemprego, mais crimes (relação positiva). Pode ser também por extrema necessidade, para garantir a própria subsistência, como nos crime famélicos. Ou pelo aumento da oportunidade, uma vez que o desempregado tem também mais tempo livre. Por outro lado, uma comunidade onde existam poucos desempregados é economicamente afluente, o que pode implicar também em mais oportunidades criminais, como se observou no caso do aumento da renda (neste caso, a relação entre desemprego e crime é negativa). Ou mesmo pelo estresse emocional derivado da perda do emprego e todos os significados sociais que ele implica, especialmente no caso de crimes de motivação não econômica. (Brito et al, 2020)

As hipóteses não são excludentes e como sempre, é provável que atuem simultaneamente. Quaisquer que sejam os mecanismos os efeitos estão bem estabelecidos e é possível esperar um impacto da criminalidade no período recessivo que se espera para os próximos meses, em razão do desaquecimento da economia provocado pelo COVID-19. O IBRE/FGV estima que a taxa média de desemprego aumente de 11,9% Para 17,8%. Analistas de mercado estimam cenários ainda mais pessimistas.

É difícil estimar a magnitude deste impacto na criminalidade, pois ao contrário das demais recessões e períodos de alta do desemprego, as mudanças agora são globais e diversas variáveis estão mudando de forma intensa e simultânea. Muitos crimes patrimoniais caíram pela metade neste período de isolamento social. Mesmo que haja um impacto do desemprego, ele incidirá sobre os níveis atuais ou sobre os níveis anteriores? Além do desemprego, outros fatores podem acirrar a criminalidade em médio e longo prazo, como a evasão escolar, as separações, a elevação do consumo de álcool e outros fenômenos que estão aparentemente ocorrendo neste momento, a se fiar nas evidências anedóticas. Por outro lado, outros fatores podem mitigar estes efeitos deletérios, como a tendência de preservação do trabalho residencial, os auxílios financeiros governamentais, a introdução de novas tecnologias policiais, etc.. Estudo recente do IBRE/FGV diz, por exemplo, que o auxílio emergencial reduziu a extrema pobreza ao menor patamar em 40 anos. Em alguns municípios mais pobres, o auxílio governamental implicará em aumento da renda média local, de modo que os impactos da crise econômica serão diferenciados segundo o contexto local.

É difícil prever qual será a resultante destas forças opostas, mas os analistas criminais parecem concordar que a recessão será profunda e deve contribuir para o crescimento do crime.

Para quem tiver interesse em exercícios preditivos, criei uma simulação simples estimando como o desemprego pode impactar no crime, que pode ser acessada através deste link: https://public.tableau.com/views/BICrimes/cenrio?:language=pt&:display_count=y&publish=yes&:origin=viz_share_link

O software tableau tem um módulo de previsões temporais baseado em suavização exponencial (escrito alias pelo prof. Rob Hyndman, o mesmo que fez o algoritmo de séries temporais para o pacote R !). O método é baseado em Holt-Winters triplo e leva em conta nível, tendência e sazonalidade (aditiva ou multiplicativa) das séries temporais, se existentes. Não é tão sofisticado como ARIMA que leva em conta, adicionalmente, a existência de autocorrelação com períodos passados ou erros passados, mas é de simples implementação e produz bons resultados preditivos.

Além de trazer série temporal de diversos crimes para diversos Estados e as previsões para os meses futuros, criei dois parâmetros adicionais: “elasticidade” e “% de incremento do desemprego”. Movendo ambos os parâmetros através do cursor, podemos estimar on-line qual o efeito aproximado para o crime e o Estado selecionados. A elasticidade depende do estudo acadêmico escolhido e o incremento do desemprego depende de qual previsão se acredita que será a correta para os próximos meses. É preciso levar em conta todas as admoestações feitas aqui e que não existem estudos reais para todos os crimes e estados que fazem parte da simulação on-line. Tomando-se os devidos cuidados interpretativos, acredito que pode ajudar os tomadores de decisão a lidarem com os impactos futuros do desemprego. Que virão, para quem acredita em modelos preditivos, “impávidos e infalíveis, como Bruce Lee”.


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