Desde os anos 90 o governo
federal coleta informações sobre os presídios e presos no país, realizando uma
espécie e “censo” penitenciário. Coloco censo entre aspas, pois na verdade
trata-se de um censo dos estabelecimentos e as informações sobre os presos são
obtidas apenas de forma agregada.
De 1997 a 1999 participei dos
levantamentos enviando dados de São Paulo, como assessor da Secretaria de
Administração Penitenciária. Depois estive em algumas ocasiões no Depen, em
diferentes gestões, ajudando a aprimorar o instrumento de coleta e metodologia
e finalmente, através do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ajudei a
realizar o Censo e elaborar os relatórios de análise, na edição de 2015. Em
2004 o nome da iniciativa foi mudado para Infopen e em 2014 para Sisdepen, mas trata-se em última instância do
bom e velho Censo Penitenciário dos anos 90, aperfeiçoado tecnologicamente.
Nomenclaturas a parte, trata-se
de um levantamento abrangente que cobre atualmente 1733 variáveis, abrangendo os
1540 estabelecimentos prisionais existentes do país, trazendo informações sobre
presos, funcionários, serviços prestados, incidentes, movimentações e diversos
outros temas. Através dele vemos tendências interessantes, como a relativa
diminuição tanto da taxa de presos por 100 mil habitantes quanto da proporção
de presos provisórios dentro da população carcerária. A última edição é do
segundo semestre de 2023 e é com estes dados, disponíveis para download, que
trabalharemos aqui. https://www.gov.br/senappen/pt-br/servicos/sisdepen/paineis-anteriores
Uma das questões de grande
interesse do ponto de vista da administração é a comparação entre os diferentes
tipos de gestão prisional. Dos 1540 estabelecimentos prisionais, 1435 (93,18%) são
geridos pela administração pública (embora muitos dos serviços sejam
terceirizados), 58 (3,77%) por Organizações sem fins Lucrativos, 42 (2,73%) em
sistema de Cogestão e 5 (0,32%) através de Parcerias Público Privadas. A
pergunta mais relevante é se algum tipo de gestão é “melhor”, levando em conta
custos e benefícios.
Esta mesma pergunta é feita em
diferentes países e não é simples de responder: primeiro é preciso definir o
que se entende por “melhor”, como se mensura e se, filosoficamente, um custo
menor deve ser realmente um critério para este setor, assim como em saúde ou
educação, onde o objetivo não é economizar, mas otimizar o serviço prestado.
Metodologicamente, o desafio é
que estamos falando de estabelecimentos prisionais bastante diferentes entre
si, seja em tamanho, seja em perfil da população encarcerada. Assim, diante de
eventuais desempenhos positivos, ficamos sem saber se isso se deve aos serviços
prestados de forma mais eficiente ou simplesmente a estas diferenças de origem.
Para ter uma ideia destas
diferenças, apenas 7 a cada 1000 presos tem ensino superior, mas esta taxa sobe
para 9,2:1000 nos estabelecimentos geridos por ONGs e cai para 2,4:1000 nas
Parcerias Público Privadas. A taxa de presos já sentenciados é de 401,9:1000
nos estabelecimentos públicos, mas sobe para cerca de 700:1000 nos Ongs e Parcerias
Público Privadas.
Diferenças de perfil da pop.
Prisional, por tipo de gestão – taxa por mil presos
Fonte: Infopen / MJ, 2023
Como sugere a tabela, existem
diferenças entre as populações atendidas pelos diferentes estabelecimentos. Uma
comparação justa e robusta das qualidades e defeitos de cada modalidade de
gestão exigiria, portanto, um “experimento randomizado” ou no mínimo alguma
equiparação a posteriori entre os grupos, de modo a torna-los minimamente
equivalentes.
Observem-se, por exemplo, estes
resultados. A taxa de óbito por motivos criminais é de 0.35:1000 nas prisões
públicas, mas cai para 0.10:1000 na Cogestão e para zero nas outras duas
modalidades de gestão. Os óbitos naturais são também maiores nas unidades
públicas. Na taxa de suicídio, as unidades públicas ficam abaixo da Cogestão,
mas acima das outras modalidades. O problema está em que, como discutido, não
dá para afirmar que esses resultados relativamente piores dos estabelecimentos
públicos são fruto de uma gestão pior, dadas as condições desiguais de
comparação.
Fonte: Infopen / MJ, 2023
Os estabelecimentos geridos por
ONGs, por exemplo, são em média bem menores (92 presos) do que os demais (média
de 542 presos). São praticamente inexistentes os presos provisórios nos estabelecimentos
administrados por ONGs ou PPPs. Só por esses motivos a expectativa é de que
seja mais fácil administrá-los. Avaliar políticas públicas é bastante complexo,
como o exemplo acima sugere e exige design robusto e rigor científico, para não
sermos induzidos a erros, comparando bananas e maçãs.
Tendo estas admoestações em
mente, ainda assim é interessante perguntar aos dados se as diferentes
modalidades de gestão estão realmente fazendo coisas diferentes, por exemplo,
prestando melhores serviços para a população prisional?
O censo penitenciário diz que
sim. Em termos de estrutura, comparado às demais formas de gestão, o sistema
público tem menor porcentagem de unidades que contam com consultórios médicos e
odontológicos – onde supera apenas as ONGs. Menor porcentagem de unidades que
dispõem de sala de aula ou biblioteca. Menor porcentagem de unidade que contam
com um Regimento Interno ou acessibilidade para pessoas com deficiência. Os
estabelecimentos públicos tem também menor porcentagem de unidades com salas de
produção ou locais específicos para visita íntima.
O sistema público só se sai
melhor na porcentagem de unidades com sala de atendimento para serviço social,
quesito em que perde apenas para as Parcerias Público Privadas. Regra geral, as
unidades geridas por Parcerias Público Privadas e ONGs contam com a maioria destas
estruturas listadas (cerca de 80%), seguidas das unidades geridas em Cogestão
(70%) e finalmente as Públicas, onde em média somente 57% contam com tais
equipamentos. Em termos de estrutura física, deste modo, os estabelecimentos
públicos são em média piores do que os outros estabelecimentos.
Estas mesmas diferenças podem ser
observadas quando calculamos o número de profissionais para cada 1000 presos.
De modo geral, as unidades públicas têm taxas por 1000 presos bem inferiores às
demais, quando comparamos a quantidade de psicólogos, dentistas, assistentes
sociais, médicos, pedagogos, professores e advogados. Elas apenas superam as
Ongs no que tange à quantidade de Terapeutas Ocupacionais e Médicos Psiquiatras,
perdendo nas demais profissões.
Taxa de profissionais para cada
1000 presos, por modalidade de gestão
Fonte: Infopen / MJ, 2023
Melhor estrutura física e mais
recursos humanos, por sua vez, se traduzem num maior número de atendimentos e
serviços. Os estabelecimentos prisionais públicos, quando calculamos a taxa de
atendimentos a cada 1000 presos, oferecem menos consultas odontológicas e menos
consultas médicas. Há menos presos estudando em todos os níveis de ensino e
menos presos em atividades laborterápicas internas. O sistema público só se sai
melhor do que as Parcerias Público Privadas no que se refere à quantidade de
consultas psicológicas e melhor do que os sistemas de Cogestão e Ongs quando se
trata de posições de trabalho externos.
Taxa de serviços diversos para
cada 1000 presos, por modalidade de gestão
Fonte: Infopen / MJ, 2023
Assim, não seria estranho se além
de menores índices de mortalidade, encontrássemos menos evasão, menos
indisciplina ou menores taxas de reincidência criminal nas unidades não
exclusivamente públicas. Esse pode ser o resultado não só de condições
originais mais propícias como também de maiores investimentos em
infraestrutura, recursos humanos e serviços. O difícil é isolar uma coisa da
outra. Embora os dados sejam promissores e joguem em favor dos modelos de
gestão alternativos, um julgamento sobre a qualidade da gestão deve ficar em
suspenso, até que se consigam estabelecimentos que sejam adequadamente
comparáveis, sob alguns critérios.
Embora o sistema prisional seja
de responsabilidade estadual, como detentor dos dados caberia ao MJ organizar
uma avaliação rigorosa destas experiências, para decidir em que modelos de
gestão vale ou não a pena investir. Trata-se de um debate onde há muita
ideologia – contra a iniciativa privada, apesar de boa parte dos serviços nos
estabelecimentos ser terceirizada - e pouca evidência, como é comum na
segurança pública.
Poderíamos ter menos fugas,
evasões, mortes no sistema prisional, reincidência – e até reduzir o poder das
facções criminais, que ganham com as condições precárias de ressocialização –
se já tivéssemos investido na avaliação dos atuais sistemas de gestão.
Anexo
Porcentagem de estabelecimentos
que contam com os equipamentos, por modalidade de gestão
Fonte: Infopen / MJ, 2023
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