quarta-feira, 10 de julho de 2019

Política de drogas ou droga de políticas?



As ocorrências relacionadas a entorpecentes são as que mais crescem no Estado de São Paulo. Em 1995, quando tem inicio a divulgação das estatísticas trimestrais pela SSP, tínhamos algo em torno de 4 mil ocorrências por trimestre, elevando-se para cerca de 14 mil casos no primeiro trimestre de 2019. Isto representa um crescimento de aproximadamente 220% no período, maior do que todos os outros delitos divulgados.

Se tomarmos especificamente as estatísticas de tráfico de entorpecentes, o aumento é ainda mais impressionante. De uma média de 1700 casos no início da série histórica passamos a 12 mil casos por trimestre em 2019, o que equivale a uma taxa de crescimento de mais de 580%.

Como temos no Estado 90 mil inquéritos por trimestre, isto significa que a porcentagem de inquéritos relacionados a entorpecentes subiu progressivamente no período. Nos anos 90 os casos de entorpecentes representavam aproximadamente 8% dos inquéritos policiais e atualmente representam 15%. Praticamente dobraram, não obstante a razão boletins de ocorrência / inquéritos manter-se estável ao redor de 7:1 nos últimos 24 anos. Em outras palavras, cada vez mais recursos do sistema de justiça criminal são dedicados ao combate ao tráfico de drogas.





No sistema prisional paulista os presos cumprindo pena por crimes relacionados a drogas já são 37%, pois não só temos uma grande quantidade de casos como penas longas, fazendo com que a porcentagem de apenados nesta modalidade de crimes cresça ano a ano. Em meados dos anos 90 os condenados cumprindo pena por crimes relacionados a drogas representavam cerca de 10% da população prisional enquanto hoje são quase quatro em cada 10 presos.

Este crescimento das estatísticas relacionadas a entorpecentes é reflexo tanto do crescimento do consumo de drogas em si quanto, principalmente, do interesse do sistema de justiça criminal por esta modalidade de crime. Cada sociedade e época elegem seu vilão preferencial e o traficante de drogas – qualquer que seja seu tamanho ou lugar na hierarquia - parece ter sido o escolhido nas últimas décadas.

O que pode explicar este crescimento significativo dos crimes relacionados a drogas? Em primeiro lugar, como dito, é possível que tenha havido aumento no consumo, refletindo no aumento do tráfico e nas estatísticas policiais de tráfico. Embora os dados sejam escassos, a UNODC estima que o uso da cocaína aumentou no Brasil de 0,4% em 2001 para 0,7% da população de 15 a 64 anos em 2005. O consumo de maconha aumentou de 1% para 2,6% da população no mesmo período. Parte do aumento se deve ao ajuste de estimativas, mas assim mesmo a UNODC, que analisa dados da pesquisa CEBRID/Senad,  acredita que tivemos um aumento do consumo no país. Dados do IBGE (pesquisa Pense), por seu turno, sugerem que o percentual que jovens de 13 a 15 anos que já usaram drogas ilícitas aumentou de 7,3% em 2012 para 9% em 2015. Pesquisa mais recente produzida pela Fiocruz indica de 9,9% dos brasileiros entre 12 e 75 anos consumiram drogas ilícitas alguma vez na vida – 7,7% maconha, haxixe ou Skank, 3,1% cocaína e 0,9% crack. As metodologias nem sempre são comparáveis, mas é possível que parte da explicação para o aumento das ocorrências resida no aumento do consumo de drogas.

Note-se, contudo, que as pesquisas de cunho epidemiológico mostram taxas de crescimento estáveis ou pequenas no consumo enquanto as estatísticas policiais mostram crescimentos explosivos nas ocorrências relacionadas a entorpecentes. Assim, é preciso buscar explicações que vão além do aumento do consumo pela população, que esta longe de se caracterizar como uma epidemia. Até porque o aumento do consumo de drogas está relacionado ao aumento da renda per capita, que está estacionada no Brasil, pelo menos desde 2011. Se existe uma epidemia, ela se concentra no sistema de justiça criminal e não no sistema de saúde.

Existem diversas hipóteses nesta linha: melhora na eficiência policial, como por exemplo, a criação dos Disque Denúncia, onde a maioria das denúncias diz respeito às drogas; mudanças na legislação, como a Lei de Drogas de 2006, cujo efeito aparente foi aumentar a criminalização de pequenos traficantes e mulas; aumento na proporção de evangélicos na população, cuja pregação contra o risco das drogas na sociedade é intensa; reflexo da ideologia da guerra às drogas, criada nos anos 80 e importada dos EUA; interesse desproporcional da mídia sensacionalista e das bancadas de segurança nos legislativos pelo universo do tráfico; dinâmica interna das agências de combate ao tráfico: mais casos justificam mais recursos, que se traduzem em mais casos e assim por diante; aumento do uso do território brasileiro como rota de tráfico para outros países; percepção de que os homicídios estão majoritariamente relacionados ao tráfico; foco na realidade carioca e nos confrontos cinematográficos entre policiais e traficantes;

O fato é que existe uma espécie de preocupação exagerada da população com relação ao tráfico. Como sugerimos em artigo de 2011, dados de pesquisa de opinião revelam que o tráfico de drogas, na percepção da população, é uma das principais causas da violência no país. O tráfico, além disso, é visto como o delito mais ameaçador. Como discutimos na ocasião, “o crime patrimonial produz apenas um dano temporário e um prejuízo financeiro, que pode ser reposto. O tráfico de drogas, por outro lado, pode trazer consequências permanentes e desastrosas para a estrutura da família: um jovem viciado larga os estudos, o trabalho, anda com maus elementos, furta objetos em casa para sustentar o vício ou se envolve com roubos, aumenta consideravelmente o risco de morte, cria problemas com a polícia e a justiça, etc. As drogas, enfim, implicam no perigo muito maior do que um simples roubo ou mesmo o traumático estupro pelo potencial de desestruturação da família que ele representa.”

Este medo na sociedade explica em parte o que Louic Wacquant chama de “onda punitiva”, que provoca a ascensão do estado penal em muitos países, onde a assistência social é substituída pelo regime prisional. A virada punitiva compreende, segundo o autor, seis traços comuns a esse conjunto de políticas: “a- o fim da era da complacência com as incivilidades (e as perturbações da ordem pública); b- a proliferação de leis, práticas e incorporação de dispositivos tecnológicos e segurança privada; c- a disseminação de um discurso alarmista difundido à exaustão pela mídia comercial, pelos agentes da ordem e os mercadores da segurança pública; d- o aprofundamento do discurso da eficiência na guerra ao crime, na valorização da vítima e na estigmatização de excluídos; e- a substituição da reabilitação pelo gerencialismo de estoques de presos; f- o endurecimento legislativo e judicial.” (Wacquant, 2003).

O diagnóstico coincide em parte com o que David Garland aponta como marcha à ré no processo civilizatório, caracterizado, na esfera da justiça criminal, pelo “a - declínio do ideal de reabilitação; b –o tom emocional na política criminal, centrado na ampliação do medo; c- a centralidade da vítima; d- reinvenção da prisão; e - transformação do pensamento criminológico; f -a expansão da infraestrutura da prevenção do crime e da segurança da comunidade; g- perpétua sensação de crise e h - caldo de cultura para a expansão do neoconservadorismo”. (Garland, 2001).

Assim, este encarceramento massivo de pequenos traficantes tem quer vista também dentro desta lógica punitivista cujas linhas gerais foram delineadas por Wacquant e Garland. Note-se de passagem que esta virada punitiva é acentuada no atual período bolsonariano, mas começa bem antes e esta lógica tampouco foi alterada durante os governos de esquerda e centro-esquerda. Em parte, trata-se de uma resposta ao fracasso da esquerda e centro esquerda em lidar com o problema criminal.

Não se trata obviamente de um inimigo imaginário, mas do que denominamos em outro lugar por "mais repressão". O poder das facções criminais se assenta nos recursos financeiros auferidos com a venda de drogas e parte dos homicídios no país são fruto direto desta disputa no mercado de drogas. Assim, combater o tráfico de drogas é também combater o crime organizado e os homicídios (embora este “combate” gere, em si, muitas mortes nos confrontos entre as polícias e traficantes).

O problema reside na tendência e na proporção que este foco nas drogas vem tomando dentro do sistema de justiça criminal e na qualidade das prisões que tem sido feitas, concentradas em criminosos da baixa hierarquia do tráfico, pegos com quantidades pequenas de droga. Estamos falando aqui em 15% dos polpudos recursos da polícia paulista e em 37% dos recursos do sistema prisional, destinados a aumentar o poderio das facções . Sem falar nos custos para o sistema judiciário. Faz sentido encarcerar milhares de jovens pobres de pouca periculosidade, que no dia seguinte são substituídos no mercado criminal?

É preciso redirecionar estes enormes recursos destinados à repressão às drogas, investindo em prevenção ao consumo e focar a repressão nas lideranças do tráfico. Prender milhares de pequenos traficantes e mulas nas últimas décadas não parece ter reduzido o poder do tráfico no país.

GARLAND, David. A cultura do controle: crime e a ordem social contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2001.
WACQUANT, Loïc (1999). As Prisões da Miséria, Rio de Janeiro: Zahar, 2011, 2ªed.
 WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2003.


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